Sumário: 1. Introdução – 2. A finalidade da prova no processo – 3. O ônus da prova e suas consequências – 4. Os aspectos do ônus da prova – 5. A distribuição do ônus da prova: 5.1. A regra geral de distribuição do ônus da prova; 5.2. A inversão do ônus da prova; 5.3. A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova – 6. O momento de distribuição do ônus da prova – 7. Ônus da prova e custeio da prova – 8. A redação do anteprojeto do Código de Processo Civil – 9. Conclusão – 10. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho tem por finalidade analisar o ônus da prova pela ótica moderna que influencia o direito processual civil brasileiro.
Para tanto, primeiramente se analisará qual a finalidade das provas para o processo, para então se conceituar o próprio termo ônus da prova e entender suas consequências práticas.
De vital relevância para o tema será o estudo dos aspectos do ônus da prova, pois vão determinar a concepção moderna que guia o processo civil para se tornar cada vez mais um instrumento eficaz de solução de litígios.
A partir daí se passará a verificar as regras de distribuição do ônus da prova, abordando-se questões como a possibilidade de sua inversão e estudando a moderna teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, que melhor possibilita a busca da verdade real.
Após essa análise, admitindo-se a possibilidade de inversão do ônus da prova, busca-se entender qual é o momento adequado para aplicá-la.
Ainda se verificará se o ônus probatório abrange também o ônus de custear as despesas da realização da prova, e, por fim, serão demonstradas quais relevantes mudanças sobre o tema serão trazidas pelo anteprojeto do novo Código de Processo Civil.
2. A finalidade da prova no processo
Ao se configurar uma pretensão resistida, as partes têm a faculdade de recorrer ao juiz (facultas exigendi), para que este, investido de jurisdição, decida qual delas tem o direito (subjetivo material). Para que o magistrado tenha condições de proferir seu julgamento, deve analisar questões exclusivamente de direito, ou questões de direito e de fato, conforme o caso.
As questões de direito serão resolvidas com base nas fontes do direito (leis, analogia, princípios gerais de direito, jurisprudência, doutrina e etc.). Para concluir essa missão, o juiz se valerá da hermenêutica jurídica. Mas o conhecimento do direito objetivo (norma agendi) é obrigação do julgador, não devendo, em regra, depender de qualquer demonstração das partes (com exceção do direito estadual, municipal, estrangeiro ou consuetudinário, conforme artigo 337 do Código de Processo Civil).
Já os fatos, por outro lado, o juiz não é obrigado a conhecer previamente. Os fatos devem ser levados pelas partes ao processo. Uma vez adquirindo o conhecimento dos fatos e tendo o conhecimento do direito, o magistrado terá condições de julgar a causa, aplicando a subsunção (aplicação direta da fonte primária do direito – a lei – aos fatos) ou a integração normativa (aplicação das fontes secundárias do direito aos fatos).
Existem fatos que não necessitam de prova. São aqueles elencados nos três primeiros incisos do artigo 334 do Código de Processo Civil (fatos notórios, confessados e incontroversos).
Ocorre que, por vezes, os fatos trazidos pelas partes ao processo são controvertidos e não notórios, obstando a imediata formação de convicção do juiz. É neste momento que surgem as questões de fato, e a prova passa a ser necessária e fundamental para eliminar as controvérsias e permitir que o julgador aplique adequadamente o direito objetivo ao caso concreto.
Daí porque Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover e Antonio Carlos de Araújo Cintra ensinam que “a prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo”.[1]
3. O ônus da prova e suas consequências
Primeiramente, é importante esclarecer que ter “ônus” não significa ter “obrigação”. A obrigação nasce do descumprimento de um dever jurídico. Quem não cumprir uma obrigação voluntariamente será compelido a prestá-la. Se existe uma obrigação, é porque existe um direito subjetivo de alguém.[2] É o caso do devedor (que tem a obrigação de pagar) e do credor (que tem o direito de receber).
Já o ônus não pressupõe a existência de direito de outrem. Em verdade, o detentor do ônus é quem tem interesse em cumpri-lo, pois, se não o fizer, pode sofrer as consequências.[3]
O ônus da prova é, pois, o encargo, atribuído a uma das partes, de demonstrar a existência ou inexistência daqueles fatos controvertidos no processo, necessários para o convencimento do juiz.
Quando o magistrado se depara com uma questão de fato, duas podem ser as possibilidades:
a) a existência ou inexistência do fato é comprovada, e o julgador, tendo formado seu convencimento, aplica o direito objetivo ao caso concreto (subsunção ou integração normativa);
ou
b) a existência ou inexistência do fato não é comprovada, trazendo uma dúvida insanável. Neste caso, o juiz não forma sua convicção quanto às questões de fato. Entretanto, como não pode se eximir de julgar (vedação ao non liquet), deverá decidir em desfavor daquele a quem incumbia provar os fatos. O juiz, então, aplica o direito objetivo ao caso concreto, presumindo que são inverídicos os fatos alegados por quem tem o ônus da prova.
Portanto, a consequência para quem se desincumbir do ônus da prova é o julgamento desfavorável, sempre que o juiz não se convencer acerca das questões de fato.[4]
4. Os aspectos do ônus da prova
Segundo os ensinamentos de Marcus Vinicius Rios Gonçalves, “o ônus da prova pode ser encarado sob o aspecto subjetivo e o objetivo”.[5]
O subjetivo se refere à distribuição do ônus às partes. Assim, sob este aspecto, o ônus da prova somente interessa ao autor e ao réu, mas não ao juiz. As partes, cientes do seu ônus, devem tomar as medidas necessárias para cumpri-lo, sob pena de ter o pronunciamento desfavorável, como já vimos no item anterior.
Já sob o aspecto objetivo, o ônus da prova interessa não às partes, mas ao magistrado, que tem o dever de buscar a verdade dos fatos para formar sua convicção, independentemente da iniciativa das partes. Assim sendo, o juiz, com base no artigo 130 do Código de Processo Civil, deverá determinar de ofício as provas necessárias a formar seu convencimento. Se mesmo assim não formar sua convicção, deverá sentenciar com base no ônus da prova, julgando a favor de quem não tem o ônus.
O processo civil moderno deve analisar o ônus da prova sob os dois aspectos conjuntamente, atribuindo ao julgador a incumbência de buscar as provas, e, às partes o ônus de produzi-las sempre que tiverem condições, diminuindo assim, aqueles julgamentos em que o sujeito perde a demanda somente porque tinha o ônus de provar determinados fatos, os quais jamais foram elucidados.
É a busca da verdade real cada vez mais presente no processo civil atual, o que implica, consequentemente, na mitigação do principio dispositivo em razão do principio da livre investigação das provas.[6]
Marcus Gonçalves, a respeito dessa concepção moderna do ônus da prova, conclui que “o juiz deve usar primeiro os poderes que o CPC, art. 130, outorga-lhe e só supletivamente, em caso de impossibilidade de apuração da verdade real, valer-se dar regras do art. 333”.[7]
A Ministra Nancy Andrighi, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.125.621/MG (3ª T, j. 19/08/2010), demonstrou seu entendimento de que o aspecto objetivo deve prevalecer:
“O Processo Civil moderno enfatiza, como função primordial das normas de distribuição de ônus da prova, a sua atribuição de regular a atividade do juiz ao sentenciar o processo (ônus objetivo da prova). Por conduzirem a um julgamento por presunção, essas regras devem ser aplicadas apenas de maneira excepcional.
As partes, no Processo Civil, têm o dever de colaborar com a atividade judicial, evitando-se um julgamento por presunção. Os poderes instrutórios do juiz lhe autorizam se portar de maneira ativa para a solução da controvérsia. As provas não pertencem à parte que as produziu, mas ao processo a que se destinam.
O processo não pode consubstanciar um jogo mediante o qual seja possível às partes manejar as provas, de modo a conduzir o julgamento a um resultado favorável apartado da justiça substancial. A ênfase no ônus subjetivo da prova implica privilegiar uma visão individualista, que não é compatível com a teoria moderna do processo civil”.
5. A distribuição do ônus da prova
5.1 A regra geral de distribuição do ônus da prova
O ônus da prova, em regra, é atribuído à parte que alega os fatos. Assim, o autor tem o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito (artigo 333, I do Código de Processo Civil), e o réu, sempre que formular defesa de mérito indireta [8], ou seja, alegar fatos novos que impedem, modificam ou extinguem o direito do autor, atrairá para si, o ônus da prova em relação a tais fatos (artigo 333, II do Código de Processo Civil). Contudo, se o réu formular defesa de mérito direta [9], apenas negando o direito do autor ou negando os fatos alegados pelo autor, não atrairá o ônus da prova.
Moacyr Amaral Santos, entretanto, adverte que há casos pelos quais o réu, mesmo ao apresentar defesa de mérito direta, atrairá o ônus da prova. Tal hipótese ocorrerá sempre que o réu negar os fatos constitutivos do direito do autor com base em uma afirmativa, devendo, portanto, “fazer a contraprova ou prova contrária”. Por este raciocínio, a única hipótese em que o réu fica desincumbido de qualquer ônus da prova ocorre quando apresentar defesa de mérito direta por “negativa absoluta, ou indeterminada”.[10]
5.2 A inversão do ônus da prova
Inverter o ônus da prova significa distribuí-lo de forma diversa da regra geral, contida no artigo 333, I e II do Código de Processo Civil. Existem três espécies de inversão do ônus da prova: convencional, legal e judicial.
A inversão do ônus da prova convencional ocorre por acordo de vontades entre as partes. Conforme artigo 333, parágrafo único do Código de Processo Civil, essa inversão é vedada nas causas em que versar sobre direito indisponível, bem como nos casos pelos quais se torne excessivamente difícil o exercício do direito de uma das partes.
A inversão legal se dá nos casos de presunção, nos termos do artigo 334, IV do Código de Processo Civil. Exemplos de tais presunções são as regras contidas nos artigos 232 do Código Civil (trata da presunção da veracidade dos fatos quando a parte contrária se recusa a se submeter à perícia médica) e também do artigo 2º-A da Lei nº 8.560/92, estabelecendo que “a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”.[11] Também ocorre nos casos de responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, por norma expressa dos artigos 12, § 3º e 13, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor.
Em tais casos, ocorre a inversão do ônus da prova porque se trata de presunção relativa, admitindo-se prova em contrário. No entanto, há casos de presunção que não implicam em inversão do ônus da prova, pois são absolutas, como por exemplo, a norma contida no artigo 659, § 4º do Código de Processo Civil, a qual traz situação em que o terceiro não poderá alegar desconhecimento do fato de o imóvel adquirido estar penhorado, em razão de sua anterior averbação no ofício imobiliário.[12]
A inversão judicial do ônus da prova ocorre por decisão do juiz, com base em texto legal contido no artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), que preceitua, in verbis:
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.
Aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor no caso concreto, o juiz poderá inverter o ônus, desde que presentes um dos requisitos, quais sejam, a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor.
Ao contrário do que se pode pensar, essa inversão não é automática. Nesse sentido, explica o Ministro Luis Felipe Salomão (REsp 720.930/RS, 4ª T, j. 20/10/2009):
“Com efeito, ainda que se trate de relação redigida pelo CDC, não se concebe inverter-se o ônus da prova para, retirando tal incumbência de quem poderia fazê-lo mais facilmente, atribuí-la a quem, por impossibilidade lógica e natural, não o conseguiria”.
A hipossuficiência do consumidor não precisa ser necessariamente econômica. Pode ser também técnica. Sempre que o consumidor tiver dificuldades ou impossibilidade de produzir a prova em razão da falta de conhecimento técnico, caberá ao fornecedor produzi-las, até mesmo porque é ele quem detém todas as informações a respeito do produto que comercializa.[13]
Ademais, para que o juiz aplique o referido dispositivo legal, é necessário que esteja presente a relação de consumo.[14]
Poderia se chegar à conclusão de que a distribuição do ônus da prova somente seria diversa da regra geral nas situações supracitadas de inversão do ônus. Mas não é assim. É possível que o ônus da prova seja distribuído de forma diversa da contida no artigo 333 do Código de Processo Civil, excepcionalmente, mesmo em relações que não sejam de consumo, ainda que não haja hipótese de presunção relativa ou convenção das partes, com base na integração normativa, utilizando-se uma interpretação sistemática e sociológica do ordenamento processual civil moderno, consubstanciada na teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova (ou da carga probatória dinâmica).
5.3 A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova
A teoria da distribuição (ou carga) dinâmica do ônus da prova, ou ainda, teoria das cargas probatórias dinâmicas é uma construção doutrinária, desenvolvida pelo argentino Jorge W. Peyrano, em sua obra Cargas Probatorias Dinámicas [15], a qual vem sendo ratificada pela jurisprudência. Consiste em atribuir o referido ônus à parte que possui melhores condições de produzir a prova, independentemente de quem alega os fatos.
Tereza Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina ensinam o seguinte:
“A sociedade e o direito material, consoante se observou, encontram-se em intensa transformação, razão pela qual a regra disposta no art. 333 do CPC, concebida para a realidade existente na década de 1970, não pode ser aplicada de modo inflexível, a qualquer hipótese, como se os sujeitos da relação jurídica se encontrassem, sempre, em condições de igualdade”.[16]
Cabe ressaltar que a referida teoria não deve ser considerada, absolutamente, como espécie de inversão do ônus da prova. Isso porque a parte contrária não assume totalmente o encargo de provar, mas somente de produzir aquela prova que lhe é mais fácil. Dessa forma, a título de exemplo, o autor pode ter alegado os fatos X e Y em sua inicial, e pode ter o ônus de provar somente o fato X, enquanto o ônus probatório em relação ao fato Y pode ser atribuído ao réu, por possuir melhores condições para tanto.
O Tribunal de Justiça de São Paulo tem vasta jurisprudência reconhecendo a aplicação da teoria (Apelação nº 9064684-68.2006.8.26.0000, 8ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Luiz Ambra, j. 04/05/2011, v.u.; Apelação n° 0003535-38.2004.8.26.0408, 26ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 27/04/2011, v.u.; Apelação n° 9203036-40.2005.8.26.0000, 27ª Câm. Dir. Priv., rel. designado Des. Gilberto Leme, j. 05/04/2011, m.v.; Apelação nº 0000467-40.2009.8.26.0397, 26ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 01/03/2011, v.u.; Agravo de Instrumento n° 0405015-36.2010.8.26.0000, 21ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Itamar Gaino, j. 02/02/2011, m.v.).
Mas de todas as decisões, destaca-se o v. acórdão proferido no Agravo de Instrumento nº 0068563-66.2011.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Beretta da Silveira, julgado em 14/04/2011. Transcreve-se a ementa:
“Ação de indenização - Vícios de construção - Legitimidade ativa mantida do Condomínio - Prescrição ou decadência afastada - Prazo de 10 anos - Artigo 618 do Código Civil - Súmula nº 194 do Superior Tribunal de Justiça - Ônus da prova - Inversão mantida – A produção da prova deve ser carreada à parte que apresente melhores condições de produzi-la, à luz da chamada Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas - Decisão mantida - Negado seguimento (art. 557 do CPC)”.
O relator, em seu voto, explica que a teoria é aplicável a qualquer caso, e não somente às relações de consumo. Ademais, salienta a diferença entre a teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório e da inversão do ônus da prova. Vejamos suas palavras na íntegra:
“Caracterizando, aqui, relação de consumo, pois o agravado deve ser tido como destinatário final, tem plena incidência a norma do código consumerista que determina a inversão do ônus da prova (Inciso VIII, do artigo 6º do CDC).
Ainda que assim não fosse, há necessidade de flexibilização das regras, para que possa ser encontrada a verdade real e para que questões formais não superem as de fundo.
Por isso, à luz de moderna orientação doutrinária, a produção da prova deve ser carreada à parte que apresente melhores condições de produzi-la, à luz da chamada Teoria das Cargas Probatórias Dinâmicas.
Observe-se que tal teoria não se confunde inteiramente com a inversão do ônus da prova, tendo em vista que este não é repassado por inteiro à parte contrária, que, apenas, fica incumbida de complementar a prova no interesse da elucidação dos fatos”. (grifei)
Percebe-se que a teoria está também fundamentada no direito fundamental de ação, previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, bem como em um importante principio geral do direito processual, o da instrumentalidade das formas.
Dessa forma, ao se atribuir o ônus da prova à parte que tiver melhor condições de produzi-la, se garantirá o acesso à justiça, bem como se evitará a utilização do processo como fim em si mesmo, fazendo com que se atinja, cada vez mais, a sua finalidade de proporcionar a prestação jurisdicional de acordo com a verdade real.
Além disso, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova visa repelir a chamada prova diabólica ou prova impossível. Não é porque a letra da lei processual impõe um ônus a uma das partes, que esta deve ser penalizada, se é possível descobrir a verdade. Se a parte que não tem o ônus possui condições de produzir a prova e trazer a verdade dos fatos, enquanto a parte que originariamente teria o ônus não dispõe de meios para produzi-la, então distribui-se o ônus de forma a se privilegiar a possibilidade de aplicação do direito material.
O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou pelo entendimento da teoria supracitada em acórdãos de relatoria da Ministra Nancy Andrighi (REsp 896.435/PR, DJe 09/11/2009; e REsp 1.189.679/RS, DJe 17/12/2010).
6. O momento de distribuição do ônus da prova
O fato de ser possível a inversão do ônus probatório, parcial ou total, traz uma nova problemática. Qual é o momento para que o juiz aplique essa distribuição diversa?
Há duas correntes, que dividem a doutrina e a jurisprudência.
A primeira corrente entende que o ônus da prova é regra de julgamento (segundo o aspecto objetivo do ônus da prova). E, por isso, o juiz deve inverter o ônus probatório na sentença, oportunidade que terá para analisar a valoração das provas, o que seria essencial para formar sua convicção quanto à necessidade da inversão. Por essa visão, as partes têm a obrigação de produzir todas as provas necessárias à formação de convicção do juiz, independentemente de carregarem ou não o ônus probatório. Esse é o entendimento atual da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
A segunda corrente, por sua vez, tem o entendimento de que o ônus da prova é regra de procedimento e deve ser invertido em momento anterior à abertura da instrução probatória ou na própria fase de instrução, pois, dessa forma, se evita surpresas às partes, e se prestigia os princípios do contraditório e do devido processo legal. Esse é o entendimento consolidado da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.
O entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça começou a se consolidar por ocasião do julgamento do Recurso Especial 422.778/SP (rel. Min. Castro Filho, rel. para acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 19/06/2007).
No referido julgamento, os Ministros Castro Filho, Carlos Alberto Menezes Direito e Humberto Gomes de Barros entenderam que o ônus deveria ser invertido antes da abertura da instrução probatória.
São as palavras do Ministro Castro Filho:
“Assim, a meu sentir, a inversão do ônus da prova deve ser decretada pelo juiz antes da sentença, pois se configura regra de procedimento, cuja finalidade é de possibilitar que as partes passam melhor se conduzir no processo, especialmente para que saibam a qual delas toca o ônus de produzir a prova.
Na verdade, o que não pode ser admitido é que o magistrado, presentes os requisitos do dispositivo de regência, não defira a inversão no momento da dilação probatória, para fazê-lo em outro, após passada a fase probatória, haja vista caracterizar violação ao princípio do contraditório”.
Em seu voto, o Ministro também invocou ensinamentos de Humberto Theodoro Junior (in Direitos do Consumidor, 2ª ed., Ed. Forense, 2001, pg. 140-141).
Contudo, a Ministra Nancy Andrighi e o Ministro Ari Pargendler divergiram, no sentido de que o ônus da prova deve ser invertido no momento do julgamento.
Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi trouxe vasta jurisprudência no mesmo sentido, com ensinamentos de Kazuo Watanabe, Nelson Nery Jr., José Carlos Barbosa Moreira, João Batista Lopes, entre outros, para fundamentar seu entendimento de que a inversão do ônus da prova “é regra de julgamento” e de que “a inversão do ônus da prova no momento do julgamento da causa não ofende as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa”.
A partir de então, a 3ª Turma consolidou seu entendimento, proferindo diversos acórdãos neste mesmo sentido (REsp 949.000/ES, rel. Min Humberto Gomes de Barros, DJ 23/05/2008; AgRg nos EDcl 977.795/PR, rel. Min Sidnei Beneti, DJ 13/10/2008; AgRg no Ag 1.028.085/SP, rel Min. Vasco Della Giustina, DJ 16/04/2010; REsp 1.125621/MG, rel Min. Nancy Andrighi, J. 19/08/2010).
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, começou a firmar entendimento em sentido contrário, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 662.608/SP (rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 12/12/2006). São as palavras do relator:
“Mesmo que controverso o tema, dúvida não há quanto ao cabimento da inversão do ônus da prova ainda na fase instrutória - momento, aliás, logicamente mais adequado do que na sentença, na medida em que não impõe qualquer surpresa às partes litigantes -, posicionamento que vem sendo adotado por este Superior Tribunal, conforme precedentes”.
A partir daí, outros acórdãos da 4ª Turma foram proferidos no mesmo sentido (REsp 881.651/BA, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 21/05/2007; AgRg no REsp 1.095.663/RJ, rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 17/08/2009; REsp 720.930/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ 09/11/2009).
Para a Ministra Nancy Andrighi, (conforme seu voto no REsp 1.125621/MG), cumpre às partes produzir todos os meios de prova que estiverem ao seu alcance para a elucidação dos fatos, facilitando o trabalho do magistrado na realização da justiça, com base no dever de lealdade processual. Diante dessa ótica sob o aspecto objetivo do ônus da prova, a Ministra conclui não ser necessário que as partes sejam comunicadas previamente de que terão a incumbência de provar, já que têm o dever de colaboração de produzir todas as provas possíveis de qualquer forma. Ademais, entende ser prudente que o juiz decida de quem será o ônus da prova apenas quando tiver condições de valorá-las, ou seja, no julgamento.
Apesar de concordar com a posição de que as partes devem agir com base em uma conduta de lealdade processual, produzindo todas as provas necessárias para a busca da verdade real, bem como com a importância do aspecto objetivo do ônus da prova, entendo, assim como Tereza Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina [17], que a distribuição do ônus da prova no momento do julgamento não é a melhor opção.
É verdade que a decisão do magistrado apenas com base no ônus da prova, sem que tenha formado convicção quanto às questões de fato, não é o melhor julgamento, e deve ocorrer apenas excepcionalmente.
No entanto, há situações em que, mesmo o juiz aplicando todos os seus poderes instrutórios, não consegue desvendar os fatos, e permanece com a chamada dúvida insanável. E, nessas situações, aplicará a regra do ônus probatório, impondo julgamento desfavorável a quem o detiver. Quando isso ocorrer, a parte não pode ser surpreendida. Deve saber antes do julgamento que não se convencendo o juiz da veracidade dos fatos, terá ela o ônus. Mais do que isso, deve ter a oportunidade de demonstrar, ainda na fase instrutória, se for o caso, que a parte contrária é a que detém melhores condições de produzir a prova e deverá carregar o ônus.
Dessa forma, o magistrado distribui o ônus probatório por meio de decisão interlocutória, permitindo à parte que produza a prova ou tente impugnar a decisão por meio de agravo, inclusive com a possibilidade de retratação do juiz. Não se trata da questão de valorar a prova em si, mas sim de verificar quem tem as melhores condições de produzi-la.
7. Ônus da prova e custeio da prova
O ônus da prova, que é a incumbência de produzir a prova, não se confunde com o ônus de custear as provas. O Código de Processo Civil prevê regra específica para o custeio das provas, especificamente no artigo 33.
Basicamente, cada parte deve custear as provas que requerer. E o autor, deverá adiantar as provas requeridas por ambas as partes ou pelo juiz.
Em regra, por consequência lógica, a parte que detém o ônus probatório arcará com os custos da prova requerida. Entretanto, há situações em que a parte que não possui ônus de provar é quem requer a produção da prova. Neste caso, mesmo não tendo o ônus de provar, se requereu a produção da prova, deverá arcar com as suas despesas, pois a regra do artigo 33 do Código de Processo Civil se aplica de forma independente.
Nesse sentido, ementa de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.063.639/MS, rel. Min. Castro Meira, 2ª T, DJ 04/11/2009):
“PROCESSUAL CIVIL. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. HONORÁRIOS DO PERITO. RESPONSABILIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA.
1. A simples inversão do ônus da prova, no sistema do Código de Defesa do Consumidor, não gera a obrigação de custear as despesas com a perícia, embora sofra a parte ré as conseqüências decorrentes de sua não-produção. (REsp 639.534/MT, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJU 13.02.6). Precedentes.
2. Recurso especial provido”.
Nesse mesmo sentido, REsp 1.073.688/MT, 1ª T, rel Min. Teori Albino Zavascki, DJ 20/05/2009, REsp 661.149/SP, 3ª T, rel Min. Nancy Andrighi, DJ 04/09/2006, entre outros.
O Tribunal Paulista possui decisões no mesmo sentido, como por exemplo, Agravo de Instrumento nº 0386242-40.2010.8.26.0000, 1ª Câm. Dir. Púb., rel. Des. Castilho Barbosa, j. 24/05/2011 e Agravo de Instrumento n° 0003517-33.2011.8.26.0000, 24ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Salles Vieira, j. 12/05/2011.
8. A redação do anteprojeto do Código de Processo Civil.
O anteprojeto do novo Código de Processo Civil, finalizado em junho de 2010 pela comissão de juristas instituída pelo ato do Presidente do Senado Federal nº 379/2009, prevê as mesmas regras gerais a respeito do ônus da prova, incluindo ainda, a possibilidade de aplicação da teoria da distribuição dinâmica.
O texto do artigo 333 do atual Código de Processo Civil foi reproduzido, incluindo-se o termo “ressalvados os poderes do juiz”, no artigo 261:
“Art. 261. O ônus da prova, ressalvados os poderes do juiz, incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.
O parágrafo único do atual artigo 333 foi transportado para outro artigo, o de nº 263, com a ressalva de que o juiz também não poderá inverter o ônus naquelas hipóteses.
E, finalmente, o artigo 262 do anteprojeto traz a possibilidade de aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, prestigiando o entendimento de que a decisão que inverte o ônus probatório é de procedimento e não de julgamento, pois determina que o juiz observe o contraditório e dê oportunidade para que a parte, a quem foi atribuído o ônus, produza a prova. Dessa forma, com a vigência do novo Código, se essa ocorrer, o momento para a distribuição da prova diversamente da regra geral, ocorrerá na fase de instrução. Vejamos:
“Art. 262. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, observado o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la.
§ 1º Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do disposto no art. 261, deverá dar à parte oportunidade para o desempenho adequado do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A inversão do ônus da prova, determinada expressamente por decisão judicial, não implica alteração das regras referentes aos encargos da respectiva produção”.
9. Conclusão.
Conclui-se que numa visão processual moderna as regras gerais de atribuição do ônus da prova devem ser relativizadas, permitindo a constante busca pela verdade real.
Para tanto, permite-se que o ônus probatório seja distribuído para a parte que melhor tenha condições de produzir a prova, mesmo que esta não tenha alegado os fatos que se pretende provar. Isso pode se dar com a inversão do ônus da prova, por meio consensual, legal ou judicial, bem como com a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, também chamada de teoria das cargas probatórias dinâmicas. Tal teoria, hoje, ainda é aplicada com base na doutrina e na jurisprudência, mas contará com previsão expressa caso o anteprojeto do novo Código de Processo Civil seja convertido em lei.
O principio dispositivo não impede que o magistrado busque as provas, investigando ativamente os fatos, com a força de seu poder instrutório. Aliás, o juiz tem o dever de investigar e determinar as provas necessárias para que todas as questões de fato sejam solucionadas, e o direito objetivo possa ser satisfatoriamente aplicado ao caso concreto.
As partes, por sua vez, têm o dever de agir com lealdade processual, cooperando com a atividade da justiça, produzindo todas as provas necessárias para o deslinde da questão, sob pena de sofrerem com a atribuição do ônus da prova, e consequente perda da demanda, caso as questões de fato não sejam elucidadas. Situação esta, que deve ocorrer excepcionalmente.
Não obstante haja divergência na doutrina e na jurisprudência, parece ser mais correto o entendimento, hoje consolidado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de que a decisão de se atribuir diversamente o ônus da prova é de procedimento e não de julgamento, e, portanto, deve ocorrer na fase de instrução, momento em que será possível à parte produzir a prova que até então não achava necessária, ou até mesmo impugnar a decisão por meio de agravo. Esse entendimento deve prevalecer com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, se o texto do anteprojeto não for modificado e for aprovado no Congresso Nacional.
A inversão do ônus não interfere nas regras de custeio das provas, que sempre obedecerão às normas do artigo 33 do Código de Processo Civil, ou seja, deve arcar com as despesas da prova a parte que a requereu, ou o autor, se for requerida por ambas as partes ou pelo juiz.
Diante de tais considerações, percebe-se que o direito processual civil brasileiro caminha na busca da garantia de uma prestação jurisdicional efetiva à sociedade, com decisões seguras, pautadas na realidade dos fatos, e não mais em presunções criadas por normas apegadas ao excesso de formalismo. E, incumbe aos operadores do direito o ônus de levar adiante e fazer prevalecer essa tendência moderna e positiva.
10. Referências bibliográficas.
[1] Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros, 2011, p. 377.
[2] Flávio Tartuce, Direito Civil – Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil, São Paulo: Método, 2010, p. 62.
[3] Marcus Vinicius Rios Gonçalves, Novo Curso de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 413.
[4] Ibidem, p. 414.
[5] Ibidem, mesma página.
[6] Cândido Rangel Dinamarco; Ada Pellegrini Grinover; Antonio Carlos de Araujo Cintra, op. cit., p. 70.
[7] op. cit., p.415.
[8] Código de Processo Civil Interpretado, coordenação de Antonio Carlos Marcato, São Paulo: Atlas, 2008.
[9] Ibidem, mesma página.
[10] Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 362.
[11] Teresa Arruda Alvim Wambier; José Miguel Garcia Medina, Processo Civil Moderno – Parte Geral e Processo de Conhecimento, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 248.
[12] Ibidem, mesma página.
[13] Marcus Vinicius Rios Gonçalves, op. cit., p. 419.
[14] Teresa Arruda Alvim Wambier; José Miguel Garcia Medina, op. cit., p. 251.
[15] Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni apud Ibidem, p. 250.
[16] Ibidem, p. 249.
[17] op. cit., p. 252.
Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Site: www.alexravache.net.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAVACHE, Alex Quaresma. O ônus da prova no processo civil moderno Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2011, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24697/o-onus-da-prova-no-processo-civil-moderno. Acesso em: 23 dez 2024.
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