RESUMO:
O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a possibilidade de alteração do nome civil dos transexuais, submetidos à cirurgia de trangenitalização, a luz dos princípios constitucionais e dos direitos de personalidade. Dessa forma, poderemos esclarecer um pouco mais sobre um tema pouco conhecido e extremamente carregado de preconceitos.
palavras chave: Direitos de Personalidade. Dignidade da Pessoa Humana. Transexuais. Cirurgia. Nome. Respeito.
summary:
The present work has as main objective to analyze the possibility of changing the legal name of transsexuals who underwent surgery trangenitalização, the light of constitutional principles and rights of personality. Thus, we will explain a little more about a subject little known and extremely full of prejudices.
KEY WORDS: Personality Rights. Dignity of the Human Person. Transsexuals. Surgery. Name. Respect.
1 - Visão da metamorfose do direito
Em meio ao atual desenvolvimento científico e tecnológico, podemos notar a rapidez com que as transformações acontecem no seio da sociedade, mudando em um piscar de olhos, o que outrora, demoraria meses, anos ou até décadas para ser alterado. Tais acontecimentos sejam no campo da engenharia nuclear, da biotecnologia ou da computação, acarretam complacentes metamorfoses nas relações sociais, ou seja, as mudanças acontecem diuturnamente com maior intenção e impacto, levando-nos a conclusão de que habitamos em um mundo que não vive o presente, mais sim, o presente futuro. Como bem exemplifica o citado anteriormente, podemos apresentar a seguinte frase: “Chega de ação. Queremos promessas (autor anônimo)” O Direito, como um fruto coercitivo das relações sociais, deve atuar como um órgão regulador, almejando uma convivência harmônica entre os homens, seja através da prevenção ou da repressão. Para isso, é necessário que o Direito desenvolva-se no mesmo ritmo das mudanças sociais, só assim, poderemos chegar ao seu verdadeiro objetivo, ou seja, a Justiça.
Com isso, o presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade da mudança do nome dos transexuais a luz dos princípios constitucionais, mais precisamente do Princípio Dignidade da Pessoa Humana, e sob a ótica dos Direitos de Personalidade. Pois, tendo em vista as barreiras sociais enfrentadas pelos transexuais e os seus consequentes problemas e constrangimentos, não podemos, como membros da sociedade e especialmente como juristas, ficar inertes em face de tais situações.
2 - A Constitucionalização do Direito
Passando a ocupar um lugar de extrema importância e de notória influência no ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal, deixou de ocupar na Europa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e no Brasil, desde o fim do período de Regime Militar e início da redemocratização, a simples posição de documento essencialmente político e passando a localizar-se no ápice do ordenamento jurídico, ou seja, o que até então era considerado como puras indicações legislativas sem força coercitiva, passou a ser considerado, para o Direito infraconstitucional, como a lente superior e imperativa que deve ser usada na interpretação de todos os ramos do direito.
De acordo com o professor Luiz Roberto Barroso, uma das grandes mudanças ocorridas durante o século XX, foi à atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica dotada de supremacia formal e material, ou seja, “as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado”. Com isso, podemos citar o Fenômeno da Filtragem Constitucional, que consiste na analise e entendimento das normas existentes, através do gargalo constitucional, fazendo com que os seus princípios sejam aplicados em todas as relações infraconstitucionais, ou seja, em todas as normas do direito. Como uma forma de sintetizar toda a passagem da constituição para o centro do sistema jurídico e as suas consequências, faço minhas as palavras de Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, “Ontem os códigos; hoje a constituição. A revanche da Grécia contra Roma”.
Além disso, devemos enfatizar que dentre as contribuições trazidas pelo Neoconstitucionalismo, o reconhecimento de normatividade dos princípios foi uma das mais significativas, pois, devido o seu caráter geral e valorativo, constituindo-se por indicar fins públicos a serem realizados por diferentes meios, conseguimos nos livramos dos grilhões das regras descritivas e específicas e passamos a interpretar o direito com mais amplitude e coerência em relação a nossa realidade metamorfósica. Como leciona Barroso, “a definição do conteúdo das cláusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficiência também transferem para o interprete uma dose importante de discricionariedade”.
Com o Direito Civil Brasileiro, podemos notar que não houve diferença quanto ao panorama apresentado anteriormente, ou seja, todas as normas civilistas ganharam uma nova roupagem, passando do patrimonialismo dos séculos passados, para uma análise principiológica constitucionalista, em que muitas alterações, sejam no que diz respeito à propriedade, a família, ao contrato ou ao nome, foram sentidas fortemente. Como leciona Luiz Roberto Barroso, a aproximação existente entre o Direito Constitucional e o Direito Civil, aconteceu de forma gradual e progressista, revelando o explícito e inevitável, e, tal aproximação foi amplamente absorvida através da jurisprudência e da doutrina. Contudo, assinala Francisco Amaral sobre o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil:
Essa constitucionalização significa que os princípios básicos do direito privado emigram do Código Civil para a Constituição, que passa a ocupar uma posição central no ordenamento jurídico, assumindo o lugar até então privilegiadamente ocupado pelo Código Civil, transformando-se este num satélite do sistema constitucional.
3 - Direito de Personalidade
Visto o atual panorama do Neoconstitucionalismo no Brasil, devemos, para que seja possível o entendimento do objetivo do presente trabalho, entender a estreita ligação dos princípios constitucionais com os direitos de personalidade, com ênfase no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III) e no princípio da isonomia. Contudo, nunca pode ser deixado de lado, ou até mesmo ser esquecido, que o objetivo maior do direito é a garantia de justiça, e, como consequência, de uma boa qualidade de vida, assegurando-se assim, fatores essenciais ao bem estar individual, e dentre eles está alocado o direito ao nome condizente com a realidade não só física, mas também, e especialmente, psicológica.
Os direitos de personalidade devem ser visto como direitos inerentes ao homem, não se ligando simplesmente ao seu patrimônio, mas, dando ênfase ao indivíduo como pessoa humana detentora de direitos viscerais. Como pontifica Gilberto Haddad, citado por Sílvio de Salvo Venosa, “os direitos da personalidade são, diante de sua especial natureza, carentes de taxação exauriente e indefectível. São todos indispensáveis ao desenrolar saudável e pleno das virtudes psicofísicas que ornamentam a pessoa” (Venosa, 2010: 170). Todavia, “o direito de personalidade é o direito da pessoa defender o que lhe é próprio, como a vida, a identidade, a liberdade, a imagem, a privacidade a honra etc” (Diniz, 2010: 121/122).
Configurando-se por ter aplicação geral e a todas as pessoas, os direitos de personalidade ainda podem ser classificados como inatos porque se adquirem a partir do nascimento, vitalícios porque se ampliam por toda a vida e alguns até após a morte, são relativamente indisponíveis, pois estão parcialmente fora do comércio e não possuem valor econômico, são irrenunciáveis, ou seja, não podem ser negados, visto pertencerem à própria vida e não podendo dela separar-se, são intransmissíveis e impenhoráveis, visto não poderem ser transmitidos para outro indivíduo e serem insuscetíveis de penhora. Ou seja, os direitos de personalidade funcionam como uma forma de proteger as pessoas como reais seres humanos e não como objetos a margem de todas as aspirações humanas, que muitas vezes são desrespeitosas, indignas e inacreditáveis. De acordo com os ensinamentos de Clóvis Beviláqua, trazido à colação por Carlos Roberto Gonçalves, os direitos de personalidade são definidos como “a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrair obrigações” (Gonçalves, 2009: 70).
Enfatizando o caráter enaltecedor das características humanas protegidas pelas referidas garantias civilistas, profetiza Godoffredo Telles Junior:
A personalidade, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar as condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens.
Descritos formalmente nos artigos 11 a 21 do Código Civil e elencados de forma genérica e até mais abrangente em alguns incisos do artigo 5°, em especial no seu caput, da Constituição Federal, somos, após análise de suas características e aplicações, levados a enxergar o seu real objetivo, ou seja, “os direitos de personalidade são os que resguardam a dignidade humana” (Venosa, 2010: 171). No entanto, faço minhas as palavras do saudoso professor Flávio Tartuce:
Acreditamos que o novo Código Civil não supere todo o tratamento esperado em relação aos direitos da personalidade, que sequer podem ser concebidos dentro de um modelo ou rol taxativo de regras e situações. De qualquer forma, os onze artigos que constam da atual codificação privada já constituem um importante avanço quanto à matéria, merecendo estudo aprofundado pelos aplicadores do direito.
4 - ENFIM, O QUE É UM TRANSEXUAL?
Acima de todas as suas características que o diferenciam dos heterossexuais, homossexuais e dos bissexuais, devemos ressaltar que o indivíduo portador do distúrbio que acarreta o transexualismo é uma pessoa como qualquer outro cidadão, sendo igualmente portador de direitos, deveres e respeito no seio da sociedade. Por isso, não é admissível a sua exclusão social por motivos meramente preconceituosos e arraigados a preconceitos ultrapassados e geradores de desarmonia entre os indivíduos.
Visto que o nosso trabalho gira em torno da discussão a respeito da possibilidade de mudança do nome do transexual após cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários, é necessário que possamos entender o que é um transexual. A seguir, apresentaremos as palavras usadas pelo Conselho Federal de Medicina, na sua resolução CFM nº 1.652/2002 para responder objetivamente a nossa pergunta, “Considerando ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou autoextermínio”.
Claramente é a opinião de Maria Helena Diniz, em relação ao tema em análise:
Transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama jurídico-existencial, por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica.
O transexualismo, definido como patologia pela Classificação Internacional de Doenças, consiste em uma anomalia da identidade sexual, em que o indivíduo se identifica psíquica e socialmente com o sexo oposto ao que lhe fora determinado pelo registro civil. Ou seja, a incompatibilidade existente entre o sexo físico e o psicológico é diuturnamente repudiada pelo indivíduo, levando-o a desejar a mudança de suas características físicas, diminuindo assim, os sofrimentos e as angústias acarretadas internamente ou através da sociedade. Em consonância com o nosso pensamento, é possível lembrar-se das palavras de Elimar Szaniawski, citado do Sílvio de Salvo Venosa: “O transexual não resignado vive em situação de incerteza, de angústias e de conflitos, o que lhe dificulta senão o impede, de exercer as atividades dos seres humanos”.
Inúmeros problemas podem ser ocasionados pela incompatibilidade do sexo físico e psicológico nos casos dos transexuais, dentre eles é importante lembra inicialmente das constantes ofensas e preconceitos direcionados por pessoas que, por motivos diversos, tentam bloquear a realidade e buscam com base em irracionais preconceitos, impedir o bem estar de terceiros e consequentemente impossibilitando um importante passo em relação a Dignidade da Pessoa Humana. Dentre os problemas mais notórios estão as patologias psicológicas e seus reflexos práticos, como a tendência ao isolamento social, depressões, à automutilação ou autoextermínio e entre outras.
Dessa forma, torna-se notório que o Poder Judiciário não pode deixar de lado a importante contribuição da medicina e da psicologia em relação aos casos de transexuais e suas necessárias e consequentes cirurgias e alterações dos nomes civis. Digo consequentes, pois os passos a serem seguidos pelo transexual para que possa livrar-se das suas angústias e sofrimentos psicológicos, devem ser a cirurgia e posteriormente a alteração do nome, visto que a primeira está diretamente ligada a segunda, não sendo admissível e explicável que uma aconteça sem a consumação da outra, sob pena de ferir mais ainda a Dignidade da Pessoa Humana e contribuindo para a criação e a atenuação de mais sofrimentos e situações vexatórias.
O grande problema do Direito em relação a possibilidade da mudança de nome seria facilmente resolvido se colocássemos em prática o posteriormente citado princípio constitucional, pois com ele podemos ver toda e qualquer pessoa de forma mais garantidora e humana, respeitando as suas diferenças e assegurando os seus direitos inerentes. Logo, segue o referido dispositivo constitucional:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
5 - Cirurgia de trangenitalização
A cirurgia de mudança de sexo, conhecida cientificamente como cirurgia de trangenitalização, é vista como o início para o fim dos sofrimentos, dos traumas e das situações vexatórias, as quais o transexual está submetido diuturnamente. No entanto, tal intervenção é encarrada com extrema delicadeza, pois as suas consequências são marcantes e irreversíveis, necessitando assim, de um apoio multidisciplinar para que seja possível a sua concretização e, além disso, deve-se analisar o paciente de forma cuidadosa, obedecendo alguns requisitos previstos em lei.
Para entendermos a cirurgia de trangenitalização de forma clara e objetiva, tornando-se possível o esclarecimento de possíveis dúvidas, fazemos uso das palavras José Francisco Oliosi da Silveira, citadas por Bárbara Martins Lopes e Bruno Henning Veloso:
A mudança cirúrgica masculino para feminino é facilmente feita e pode, na maioria dos casos, ser feita em somente um tempo cirúrgico. O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixando a glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessariamente será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris. Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma, ensejando um resgate do orgasmo mais facilmente.
A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer necrose ou infecção em pós-operatório imediato, sempre teremos tecido disponível para novo procedimento. Na eventualidade da uretra profusa, a mesma poderá em um segundo tempo, ser novamente encurtada.
Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para a retirada dos testículos e funículo espermático. Todo o escroto, excetuando-se a camada vaginal, será usado para a construção da vagina.
No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma incisão em cruz ou em "v", abortando-se o espaço imediatamente cranial ao reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado, e através de dilatadores de Hegar, é criado um pertuito que será a nova vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério. Nestas condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo espaço, com sutura tão cranial quanto possível.
Um molde metálico ou siliconado é revestido com gaze e introduzido no orifício, de tal sorte a manter hemostasia e prevenir eventual colamento da cavidade. No pós-operatório, o paciente, sistematicamente, dilatará a neovagina com artefato siliconado, até sua estabilização.
Logo, podemos contatar a dificuldade existente para a materialização da cirurgia de trangenitalização, necessitando de uma boa estrutura física e de qualificados profissionais, para que seja dado apoio antes, durante e após a devida intervenção. Além disso, é necessário apontar alguns dispositivos da Resolução CFM nº 1.652/2002, do Conselho Federal de Medicina:
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Contudo, ressaltamos que a intervenção cirúrgica citada anteriormente é a mais comum, ou seja, a mudança do sexo masculino para o feminino é a mais praticada. Com tais transformações, temos como consequência a necessidade da mudança do nome do paciente, caso contrário, as situações vexatórias e os preconceitos existentes aumentarão em escala geométrica.
6 - Direito ao Nome
Como uma das ramificações dos direitos de personalidade, o Direito ao Nome, desempenha não só um papel singular, ou seja, não se limitam apenas ao âmbito de interesse do indivíduo, pois, além de exteriorizar a sua personalidade por todo o meio social, individualizando-o de forma exclusiva, a referida garantia tem como intuito possibilitar o controle do Estado para com os seus habitantes, sendo possível identifica-los através de sua principal forma de identificação, configurando-se como um importante requisito de estabilidade e segurança. Seguindo a lição de Silvio Romero Beltrão:
O nome possibilita a identificação da pessoa diante da sociedade, nos diversos núcleos possíveis, permitindo a individualização da pessoa evitando a confusão com outras. Assim, os elementos de identificação vão facilitar a localização da pessoa em sua família e perante o Estado, possibilitando a verificação de sua condição pessoal e patrimonial.
Para que possamos entender de forma clara e precisa a referida garantia, é necessário que os seus elementos integrantes sejam analisados e conceituados, facilitando assim, a interpretação e posterior aplicação do direito. A importância dada aos elementos compositores do nome é vista quando analisamos o aumento histórico da complexidade social e os seus consequentes problemas para identificar os indivíduos de forma exclusiva, pois, passamos de uma sociedade em que um único nome era suficiente para distinguir um indivíduo em dada localidade, para uma sociedade em que, visto o grande número de pessoas, é necessário o uso de nomes complementares, facilitando, através da restrição, a sua identificação. Como pontifica Carlos Alberto Bittar, citado por Silvio Romero Beltrão:
No plano pessoal, o nome compreende: o patronímico, o apelido de família, ou ainda, o sobrenome (que designa o núcleo a que pertence o ser); o prenome (o nome propriamente dito das pessoas); o pseudônimo (nome convencional fictício, sob o qual oculta a sua identidade o interessado, para fins artísticos, literários, políticos, desportivos); e a alcunha (ou, na linguagem comum, o apelido: designação dada por terceiros, que compreendem algum aspecto ou faceta especial do ser). Também são protegidos os títulos de identificação e honoríficos (como títulos acadêmicos, profissionais ou de nobreza) e os sinais figurativos (como o sinete, com iniciais da pessoa, e o brasão, ou escudo, com os símbolos e as cores da família). Acrescenta-se, ainda, o nome artístico (adotado no âmbito das artes, mediante composição), que, em face de sua expressão, merece também proteção especial, reconhecida na jurisprudência.
Diante do exposto, devemos lembrar que a escolha do nome é um ato de liberdade dos pais ou responsáveis, sendo possível a sua determinação através da livre preferência. No entanto, é necessário ressaltar que há uma única restrição, ou seja, não é permitida a opção por nomes que exponham o seu titular ao ridículo. Fundamentando a ressalva citada, temos o parágrafo único do artigo 55 da Lei Nº 6.015/73:
As jurisprudências são passivas em relação à possibilidade de mudança do nome em casos de exposição a situação vexatória ou ao ridículo, como demonstra o seguinte entendimento:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PRENOME. EXPOSIÇÃO AO RIDÍCULO. ART. 55 DA LEI 6015/73. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. À luz dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos apresenta-se possível, em casos excepcionais, a alteração de prenome quando este, por seu próprio significado, exponha o seu portador ao ridículo. (Apelação Cível nº 25.087-4/05 (12.881), 3ª Câmara Cível do TJBA, Rel. Carlos Cintra. j. 20.10.2005).
Ao nascermos, não somos os responsáveis pela nossa denominação no seio social, ou seja, recebemos uma identificação dada por terceiros, e essa, em regra, é imutável para o resto da vida e até posteriormente a ela, pois se configura, como citado anteriormente, como uma forma de garantir a estabilidade e a segurança. Além disso, o nome deve ser tratado com muita atenção, pois, acima de tudo, retrata a exteriorização da sua personalidade.
7 - Análise Jurisprudencial
A doutrina e a jurisprudência desenvolvem um papel de fundamental e singular importância para o ordenamento jurídico brasileiro, pois são elas que acompanham de forma instantânea as mudanças sociais e as suas aspirações, permitindo que conceitos sejam diuturnamente criados e alterados no seio social. Visto as suas imediatas e dinâmicas inovações, devemos salientar a suas influências nas definições dos futuros passos galgados pelos nossos legisladores, especialmente em casos complexos e de grandes repercussões, tais como o aborto de fetos anencefálicos, eutanásia e em relação à mudança do nome dos transexuais submetidos a intervenções cirúrgicas de trangenitalização.
A seguir, apresentaremos algumas jurisprudências que autorizaram a mudança do nome civil de transexuais submetidos a cirurgias de mudança de sexo:
EMENTA: REGISTRO CIVIL - Retificação - Assento de nascimento - Transexual - Alteração na indicação do sexo - Deferimento - Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental - Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo". (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 209.101-4 - Espirito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de Direito Privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V.).
EMENTA: RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO - TRANSEXUAL - CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO JÁ REALIZADA - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - MUDANÇA DE NOME - NECESSIDADE PARA EVITAR SITUAÇÕES VEXATÓRIAS - INEXISTÊNCIA DE INTERESSE GENÉRICO DE UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA À INTEGRAÇÃO DO TRANSEXUAL. - A força normativa da constituição deve ser vista como veículo para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, que inclui o direito à mínima interferência estatal nas questões íntimas e que estão estritamente vinculadas e conectadas aos direitos da PERSONALIDADE. - Na presente ação de retificação não se pode desprezar o fato de que o autor, transexual, já realizou cirurgia de transgenitalização para mudança de sexo e que a retificação de seu nome evitar-lhe-á constrangimentos e situações vexatórias. - Não se deve negar ao portador de disforia do gênero, em evidente afronta ao texto da lei fundamental, o seu direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de seu nascimento. V.V.
- A construção doutrinária e pretoriana que tem admitido a mudança ou alteração do prenome em todos os casos, sem qualquer restrição temporal, inclusive por fatos havidos posteriormente ao registro, o faz porquê é vedado o emprego de prenome imoral ou suscetível de expor ao ridículo o seu portador (art. 55, § único, da LRP).- Nosso ordenamento jurídico não autoriza a retificação do sexo da pessoa no registro de nascimento pelo fato daquela ter realizado cirurgia de mudança de sexo e/ou por esta afirmar sofrer preconceitos e constrangimentos.
(Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 1.0024.05.778220-3/001 (1) - 7ª CÂMARA CÍVEL - Relator: DES. WANDER MAROTTA - Data do Julgamento: 06/03/2009).
Contrariamente as decisões citadas, devemos apresentar um posicionamento contrário a alteração do nome civil de transexuais submetidos a intervenção cirúrgica:
8 – considerações finais
Após a cirurgia de trangenitalização, é necessário que o magistrado autorize a mudança do nome do transexual, levando em um momento posterior os nossos legisladores a aceitação desse novo, normal e inevitável fato social. Pois, é inconcebível que após a concretização da cirurgia, o indivíduo ainda seja obrigado a portar um nome que gerará cada vez mais constrangimentos e situações vexatórias.
Contudo, os casos das mudanças dos nomes dos transexuais devem ser analisados com destreza e habilidade por parte do meio legislativo e jurídico, visto que estamos tratando com seres humanos detentores de direitos e deveres, e normalmente portadores de diferenças. No entanto, essas diferenças não podem ser motivos para constrangimentos, preconceitos e banalizações.
Dessa forma, devemos impulsionar o direito em direção ao acompanhamento da atual realidade social, não nos apegando a velhos, tradicionais e discriminatórios preconceitos. Logo, visto que o principal objetivo do direito é a justiça, não podemos fechar os olhos para o tema em análise. Concluindo, faço minhas as palavras do Filósofo Platão:
As almas dos homens, antes de terem caído neste sepulcro que é o corpo, conseguiram vislumbrar – umas mais de perto, outras de maneira menos precisa – a Pureza, a Justiça, a Sabedoria. Decaíram, corromperam-se, encheram-se de vícios ao se ligarem com o corpo. Guardam, todavia uma tênue recordação do que antes contemplaram e tendem, sempre, para aquela perfeição que um dia contemplaram.
9 – Referências
Curso de direito civil brasileiro, volume 1: teoria geral do direito civil / Maria Helena Diniz. – 27. ed. – São Paulo: Saraiva, 2010.
DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. Um novo Código Civil? Breve análise do Novo Código Civil frente à constitucionalização e fragmentação do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3263>. Acesso em: 4 jun. 2011.
Direito Civil: parte geral / Sílvio de Salvo Venosa. – 10. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. – (Coleção direito civil; v. 1)
Direito Constitucional Esquematizado / Pedro Lenza – 14. ed. Ver. Atual. e ampli. – São Paulo: Saraiva, 2010.
Direitos de Personalidade: de acordo com o Novo Código Civil / Silvio Romero Beltrão. – São Paulo: Atlas, 2005.
LOPES, Bárbara Martins; VELOSO, Bruno Henning. Dignidade e respeito reciprocamente considerados: a mudança do nome por transexual na comunidade brasileira. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 624, 24 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6504>. Acesso em: 4 jun. 2011.
Planalto – Lei 6.015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L6015.htm>. Acesso em: 15-06-2011.
PEREIRA, Rafael D'Ávila Barros. O transexualismo e a alteração do registro civil. Disponível em: <http://wwwia.com.b.iuspedr>. Acesso em: 16-06-2008.
Redação Científica: a prática de fichamentos, resumos, resenhas / João Bosco Medeiros. – 9. ed. – São Paulo: Atlas, 2007.
Resolução CFM nº 1.652/2002. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2002/1652_2002.htm>. Acesso em: 16-06-2011.
Acadêmico do curso de Direito pela UFRN/CERES. Estagiário no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte - Fórum Amaro Cavalcanti.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDEIROS, Artur Felipe de. Os transexuais e o direito a alteração do nome civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2011, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24938/os-transexuais-e-o-direito-a-alteracao-do-nome-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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