RESUMO
Este artigo irá a partir de uma análise histórica, elencar os principais fatores que legitimam o jus puniendi do Estado, ressaltando que este poder/dever precisa ser operacionalizado de forma a garantir o respeito aos preceitos constitucionais, os quais também estão contidos na Lei 7.210/84, em especial, os Direitos Fundamentais.
PALAVRAS – CHAVE: análise histórica; jus puniendi; direitos fundamentais.
INTRODUÇÃO
Ao longo dos anos, múltiplos foram os fundamentos que justificaram a punição. Esta diversidade se deu e ainda é notória porque cada sociedade tem a sua cultura e moral própria, os comportamentos sociais tendem a se reiterarem no meio recebendo um valor que, dependendo da época e cultura, pode ser socialmente aceitável ou reprovável.
Os efeitos da criminalidade amedrontam a sociedade, traz conseqüências que devoram as certezas acerca da existência e atuação das instituições jurídicas. O criminoso, em tese, expressa a rebeldia ao sistema.
O Direito Penal, enquanto, segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos que são perniciosos à coletividade e que colocam em risco valores fundamentais para a convivência social, deve estar rechaçado de normas e meios que garantam a sua efetiva aplicabilidade, de forma que seja observado o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, o qual limita o exercício do jus puniendi do Estado, mas que na maioria das vezes é violado, em estrito desrespeito a Lei 7.210/84 e em especial, a Constituição Federal.
Adiante passaremos a uma análise acerca dos fundamentos que justificavam o poder de punir do Estado desde o século XVII até os dias atuais, com um olhar crítico para que possamos perceber que na maioria das vezes, o indivíduo que é punido por ter praticado um fato típico, ilícito e culpável, não tem os seus diretos fundamentais resguardados.
1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE PUNIR
O Direito Penal vigente no ordenamento jurídico brasileiro vigora, pelo menos em tese, para proteger os valores fundamentais a subsistência do corpo social. Por isso, se celebram compromissos éticos entre o Estado e o indivíduo, pelos quais se consigna o respeito às normas, não somente por receio de punição, mas também pela convicção da sua necessidade e justiça.
O criminoso, em termos jurídicos, é o indivíduo condenado pelo ordenamento por ter praticado um fato típico, ilícito e culpável, que teve assim sua conduta relatada à polícia, registrada, investigada, fez gerar um inquérito/peças de informação e a conseqüente denúncia/queixa crime, sendo a partir daí levado a julgamento, cabendo ao Juiz sentenciar a sua liberdade ou condenação.
Partindo de uma análise histórica podemos perceber que este não era o trajeto para que se apontasse o indivíduo como sendo ou não um criminoso e passível, portanto, de sanção. Até o século XVII a ideia do crime e da punição estava atrelada a religião, ao pecado, a violação a um preceito divino. Nesse aspecto Tatiana Viggiani Bicudo informa:
No século XVII o crime era visto como pecado ou falta moral, e a criminalização de condutas estava intrinsecamente ligada à religião e à moral. A punição era tida como forma de expiação dos pecados, de fatos praticados no passado. Além disso, as penas eram numerosas e, em geral, pesadas, não havendo uma proporção entre o crime cometido e a pena aplicada. (p.53).
A punição, neste momento de nossa história estava atrelada ou a qualidade da pessoa que cometia a ação tida como violadora dos preceitos morais e religiosos ou a qualidade da pessoa ou bem lesados pela ação. A arbitrariedade era constante, e o estereótipo do indivíduo era determinante para qualificá-lo como sendo ou não criminoso, algo que não se distancia de nossa realidade, porque, embora cause perplexidade, o Estado, via de regra, seleciona os punidos entre as pessoas menos abastadas, gerando um hiato ente os delinquentes de fato e os punidos.
Não aceitando esta noção de que o poder de punir está atrelado ao pecado, a violação de um preceito moral, e a figura do criminoso, surge Cessare Beccaria e Jereny Benthan e rompem este paradigma, trazendo ideais significativos para fundamentar o crime e a pena.
A partir de então houve a laicização do direito penal e as penas deixaram de serem verdadeiros suplícios, pois, separou-se o delito do pecado, e se teve a noção de uma justiça mais humana, fundada no dano causado a sociedade.
O que justifica o poder de punir é a preservação da segurança e tranquilidade geral. Atrela-se a esse fundamento a ideia do contrato social, no qual cada um abdica um pouco de sua liberdade para viver harmonicamente em sociedade. Assim, a partir do momento que o indivíduo viola esse pacto deve ser punido. Vê-se, pois, que o Direito não devia se ocupar com as coisas da religião ou pensamento.
Nega-se o sistema penal até então vigente que não estava atrelado à devida proporcionalidade das penas nos delitos cometidos, bem como, o devido reconhecimento das garantias da pessoa humana.
Não obstante ao contexto histórico, verifica-se que as teses defendidas por Cessare Beccaria e Jereny Benthan permanecem até hoje, uma vez que a partir daí desenvolveu-se uma elaboração jurídica assegurando que só será considerado crime aquela violação ao contrato social previamente definida em lei e que só existirá sanção se houver previa cominação legal. Vê-se, portanto, a intrínseca ligação das suas teses com os princípios da legalidade, anterioridade e dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Becaaria, na obra Do delito e das penas informou:
Quando as leis forem fixas e literais, quando apenas confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos do cidadão, para indicar se estes atos são conformes à lei escrita, ou se a contrariam; quando, finalmente, a regra do justo e do injusto, que deve orientar em todos os seus atos o homem sem instrução e o instruído, não constituir motivo de controvérsia, porém simples questão de fato, então não se verão mais os cidadãos submetidos ao poder de uma multidão de ínfimos tiranos (2006, p. 23).
Este novo modelo de punição defende a tese de que as penas devem ser aplicadas conforme a gravidade do crime, pois, se assim não for, aqueles sujeitos que forem voltados para o crime procurarão cometer os que mais lhe forem vantajosos, sabendo que diferença alguma fará se o crime for mais, ou menos grave, aniquilando do meio social a idéia de moral e de valor.
Por fim, reputaram ainda a necessidade de processos criminais mais céleres, a fim de que a aplicação da pena seja mais justa e útil. Esta utilidade tem o intuito de frear qualquer pensamento criminoso dos demais, certificando-os de que não existe crime sem castigo, precisando-se apenas ter o grau de rigor suficiente para afastar o homem da cena do crime.
Não se distanciando das propostas de Cessare Beccaria e Jereny Benthan, Franz Von Liszt e Claus Roxin aparecem no cenário penal, o primeiro com a noção de que o delito é reflexo da periculosidade do homem, periculosidade esta que pode ser corrigida com a adequada punição e o segundo traz a idéia de que legítima é a punição que visa à ideia do garantismo, uma vez que a política criminal vigente é menos garantidora dos direitos fundamentais, sendo mais intimidadora. Informa ainda que isto tem uma razão de ser, afinal a política criminal interessa aos detentores do poder, e opera de forma a propiciar a manutenção do status destes. Esta discussão será mais desenvolvida no tópico a seguir.
2 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO NO SÉCULO XXI E O SISTEMA PENITENCIARIO BRASILEIRO VERSUS A LEI 7.210/84
Conforme analisado, diversas foram as correntes de pensamentos que buscaram explicar o porquê de se punir determinadas condutas, sendo todas uníssonas no sentido de que se deve buscar atingir uma convivência harmônica, embora tenham sido diferentes as perspectivas.
Embora legítima a punição diante de determinadas condutas, a realidade nos mostra que a punição não vem atingindo a sua dupla função de ressocializar o indivíduo que pratica um crime e prevenir que outros venham a incorrer na mesma conduta daquele que fora punido. Como conseqüência disso, o direito penal é posto em discussão, uma vez que cada vez mais se aumenta a sensação da falta de segurança e se viola as garantias constitucionais.
Vivenciamos a crise do Direito Penal, pois, este não vem cumprindo com a sua função, qual seja, conservar a segurança pública e pacificar a sociedade. Um dos fatores que contribuem para esta realidade reside no fato de que o Estado distribuiu a ideologia de uma segurança jurídica simbólica, ao tempo em que não investe em medidas que visem de fato alternar os níveis vigentes da sociedade de risco, da qual fazemos parte.
Beneficia-se um sistema para o qual a corrupção e a prevaricação predominam. É utopia acreditarmos na real pretensão do aperfeiçoamento, reforma do sistema penal, embora prevaleça à ideologia instituída de que temos um sistema jurídico coerente, que visa à harmonia, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o julgador é axiologicamente neutro, imparcial em suas decisões. Ideologia porque quem dita as leis são os detentores do poder e estes, em sua maioria, visam conservar o seu status socioeconômico, e não reverter à realidade caótica do país.
Sob o pretexto da segurança jurídica, seleciona-se o status do criminoso, em geral, pretos, pobres e prostitutas, e se agem como se estes não fossem sujeitos de direitos e garantias instituídas no ordenamento.
O indivíduo detento por ter praticado um crime, a depender do seu status, terá sua integridade física ameaçada, será vítima de torturas, da arbitrariedade policial e nada poderá fazer para reverter à situação, afinal, aquele inserido na classe baixa não tem recursos para contratar um bom advogado para que possa defendê-lo. O sistema age desta forma para que o indivíduo confesse a autoria do crime e o problema seja solucionado, não importa qual o método utilizado, institucionaliza-se a extorsão de confissões, embora esta seja oficialmente proibida e punida pela lei.
A prepotência e a brutalidade atingem o ápice. O contrário acontece com os indivíduos com um patamar econômico e social estável. Estes, por terem pessoas de “influência” para defendê-los, são de certo modo respeitados. Dispõe de advogados capazes de gerar receios aos policiais. A violência vem perpetuando-se de tal forma que a presença de um Promotor digno interfere, mesmo que inconscientemente, a atividade policial. Fixou-se a idéia de que sem o uso da violência na investigação da autoria criminal, nada se prova de modo concreto. A cerca desta problemática Foucault adverte:
Sob a aparente pesquisa de uma verdade urgente, encontramos na tortura o mecanismo regulamentado de uma prova; um desafio físico que deve decidir sobre a verdade; se o paciente é culpado, os sofrimentos impostos pela verdade não são injustos; mas ela é também uma prova de desculpa se ele for inocente. Sofrimento, confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática da tortura; trabalham em comum o corpo do paciente. A investigação da verdade pelo suplício do “interrogatório” é realmente uma maneira de fazer aparecer um indício o mais grave de todos - a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitória de um adversário sobre o outro que “produz” ritualmente a verdade. A tortura para fazer confessar tem alguma coisa de inquérito, mas tem também de duelo (2005. p. 37).
A ideologia dominante está pautada na idéia do poder de cura do sistema carcerário, uma vez que o objetivo deste é, em tese, ressocializar, reeducar o indivíduo para a convivência comum e harmônica na sociedade. Todavia, paradoxalmente, é adotada nas penitenciárias a prática de tratamentos desumanos para aqueles que nestas habitam – sabe-se que os homens não são melhoráveis por meio de agressões.
Estatui-se nestas um verdadeiro regime totalitário, em que ordens são estabelecidas e o detento não tem o direito de julgá-las. Consolidou-se o princípio da “obediência cega”, princípio este que geralmente não é seguido e propicia ainda mais a proliferação da desordem. Na realidade as prisões tornaram-se necessárias, desde quando instituídas, para ofuscar a miséria social causada pelo sistema de exploração. É demagogia acreditarmos na finalidade de reeducar e ressocializar da prisão, afinal, pesquisas comprovam que esta reproduz o crime.
O sistema penitenciário é marcado por um rol de ilegalidades que se faz presente durante toda permanência do indivíduo neste. Viola-se expressamente a lei de execução penal, a qual prevê uma série de direitos aos presos, como assistência social, jurídica, à saúde, à educação. O art. 40, da lei. 7210/84 é expresso ao afirmar que “impõe-se as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”. Por sua vez, o art. 41, elenca os direitos do preso, para tanto vejamos:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
I - alimentação suficiente e vestuário;
II - atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - Previdência Social;
IV - constituição de pecúlio;
V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
XI - chamamento nominal;
XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.
Paradoxalmente, nas cadeias brasileiras é notória a superpopulação, a existência de celas mal ventiladas, sem cama ou colchonetes, a falta de manutenção dos banheiros e da rede de esgoto, a má distribuição de material de limpeza, a precariedade dos alimentos, bem como a proliferação de doenças, fatos estes que constituem exemplos da ilegalidade existencial Percebe-se assim que os detentos vivem numa contínua situação de tortura física e mental, têm a sua dignidade violada.
Os detentos residem num ambiente paradoxal entre o isolamento e a vida em massa, vêem rompidos ao longo do tempo os seus direitos, as garantias previstas no ordenamento, conforme salienta Pierre Bourdieu, o tempo só é realmente sentido quando se rompe com a incidência quase automática entre as esperanças e as oportunidades (2001, p. 256). A prisão que deveria ser apenas um meio de deter o cidadão e reeducá-lo está sendo sinônimo de uma cruel mansão do desespero, da fome e da perda de oportunidades.
A ordem jurídica social ao restringir os direitos individuais, deve agir com moderação, mediante as formas legitimadas pelo Direito. É salutar que o Estado invista nas causas do problema da criminalidade, ou seja, atue para efetividade dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal, como moradia, educação, saúde, vida digna, para que diminua a ocorrência da criminalidade.
3 CONCLUSÃO
A função da lei é preservar o bem estar social, qualquer vantagem oriunda da sociedade deve ser distribuída equitativamente entre os seus membros. A partir do momento que o homem viola o ordenamento surge o direito de punir do Estado. Tornou-se evidente que o poder diretivo de punir na maioria das vezes, é utilizado de forma arbitrária, o que propicia o surgimento de uma justiça criminal discriminatória, incompatível como o regime democrático e igualitário sob o qual estamos inseridos.
O indivíduo, independentemente de sua posição social, deve ser punido quando mediante sua conduta venha a violar um bem juridicamente tutelado. Por isso, é salutar, para que haja a efetiva aplicação da lei penal, que se resguarde os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, independentemente de qual tenha sido a sua conduta, para que desse modo, a sanção seja útil e ressocialize o cidadão. As nações serão felizes quando a moral sã estiver inteiramente ligada à política, uma vez que toda espécie de crime é prejudicial à sociedade, o homem deve ter preservada a sua honra, arbítrio moral.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução por Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2007.
BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria Geral da Pena. São Paulo: Saraiva, 2010.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalinas. Rio de Janeiro: Bertranal Brasil, 2001.
BRASIL. Lei n° 7.210/1984, 11 jul. 1984. Institui a Lei de Execução Penal. In: Vade Mecum. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 30.ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
Estagiária do Ministério Público de Cicero Dantas/BA (2ª Promotoria) vara criminal.Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Ages.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REIS, Ana Helena Santos dos. O direito de punir do estado e a Lei 7.210/84 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 set 2011, 08:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25529/o-direito-de-punir-do-estado-e-a-lei-7-210-84. Acesso em: 23 dez 2024.
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