O homem, no curso de sua existência, desde o seu surgimento na terra até os dias correntes, tem empreendido esforços sistemáticos e constantes no sentido da superação do seu estágio primordial. Não foi fácil o incremento de tal intento nesse período em que ele vivia sob o império elementar de forças animais, onde o paradigma único para sobreviver em grupo era o da força bruta na hierarquia do mais forte, tendo como moto propulsor de sua ação tão somente os instintos. Tal superação começa a definir-se num processo civilizatório lento e complexo, que o homem, tateante em sua experiência de vida, ao embalo dos fluxos e refluxos de erros e acertos na construção de sua história, vai tornando-o cada vez mais sofisticado. Disso tudo resulta que, a espécie hominídea no curso de tal processo civilizatório vai depurando-se num gênero de ser, hoje denominado “humano”, que consagra a performance sócio existencial mais elevada da qual participamos hoje. Dito de outra maneira, se pode afirmar que o “humano” é um tipo de ser superior em qualidade e elevação na escala de dignidade ontológica ao ser hominídeo, a despeito de termos nos originados dele. Temos dignidades distintas. Assim como, se considerarmos, da perspectiva Darwiniana, que somos uma ramificação do tronco de onde se originaram os símios, não significa que o macaco tenha a mesma dignidade que nós, os humanos. A termos que considerar digno toda a nossa ancestralidade, acabaremos concluindo pela dignidade da bactéria, a partir da qual tem início a história da nossa origem na Terra. Muito embora todo humano seja um hominídeo, não necessariamente todo hominídeo seja um humano, uma vez que este constitui uma superação daquele assim como o hominídeo é uma superação do símio. Todavia, alguns espécimes em razão de características intrínsecas singularíssimas não realizaram esse sucesso evolutivo, decorrente do processo civilizatório, promotor da humanização da espécie hominídea em larga escala. Pelo processo de reprodução natural, referidos espécimes refratários a evolução civilizatória foram se replicando paralelamente aos espécimes bem sucedidos na humanização. Hoje os dois espécimes convivem numa dramática e, muitas vezes, trágica interação social, protagonizando ocorrências de violência e pura irascibilidade de causar espanto até aos nossos ancestrais símios, do ramo que não evoluiu para nossa espécie.
Os “SKINHEAD” plasmam no mais alto grau de pureza esse tipo que fracassou no processo de humanização da espécie hominídea.
Toda essa questão vem a propósito da definição do conceito de dignidade humana, ensejando muitas polêmicas, ambigüidades, imprecisões, que acabam por colocar em risco a própria exeqüibilidade da definição conceitual que se busca. Afinal, todo e qualquer conceito se presta a delimitar de forma delineadora o ente da realidade na qual precisa ser destacado para adquirir identidade própria no contexto em que ele se situa. Em assim não acontecendo, fica difícil separar conceitualmente uma cadeira de uma mesa, de um criado mudo, de uma estante, de uma cristaleira etc., porque sendo cada um desses seres algo que encerra uma essência distinta em característica e finalidade, um único conceito não poderá abarcar a todos num só gênero. Se eu, a quem quer que eu me dirija, me referir a uma cadeira, denominando-a de móvel doméstico, o meu interlocutor não identificará com precisão o objeto referido. Posso estar falando de uma mesa, de uma cadeira ou de uma estante. A denominação do objeto em questão terá que representar o conceito específico de cadeira. E neste conceito não caberá a inclusão de nenhum outro objeto que se oponha em sua característica e essencialidade identificadora a idéia exata do que é entendido por cadeira em todo o mundo e por qualquer pessoa.
O que faz com que as tentativas de enquadrar conceitualmente o termo “humano” acabem em fracasso ou em resultados pífios, é exatamente a dificuldade de muitos, talvez inibidos por escrúpulos excessivos das mais diversas ordens, em delimitar de forma precisa as fronteiras que destaquem esse ente (o humano) do contexto em que ele se insere, conferindo lhe uma identidade clara e lógica.
No dicionário “Houaiss” o verbete humanizar tem as seguintes significações expressas;
Tornar(-se) humano, dar ou adquirir condição humana; humanar(-se) - a fábula humaniza os animais - segundo muitas religiões Deus se humanizou na figura do cristo - 2 t.d.e pron. Tornar(-se) benévolo, ameno, tolerável; humanar(-se) - h. um trabalho - a cidade se humanizou com a criação de novos parques - 3 t.d. e pron. Tornar(-se) mais sociável, mais tratável; civilizar(-se), socializar(-se) - h. um selvagem - ele se humanizou na convivência de seus novos amigos .
O verbete humanidade tem as seguintes significações expressas;
1-conjunto de características específicas à natureza humana. 2-sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em ralação aos desfavorecidos; 3- conjunto de seres humanos; 4-qualidade de quem realiza plenamente a natureza humana.
Diante do que reproduzimos literalmente do “Houaiss” referente aos respectivos verbetes citados anteriormente, salta-nos de pronto à consciência, o espanto que nos causa, o empenho delirante de certas correntes de pensamento em tentar ampliar o alcance de abrangência do conceito de humano a entes de perfil tão bestial, o que configura uma violência e um escárnio a quem realmente se enquadra nessa categoria por merecimento e características essenciais. As conseqüências disso, de se tentar incluir no conceito de “humanos” espécimes que se apresentem com características opostas, dentre eles, em suas essencialidades, são de, por fim, esvaziar sua realidade, de significado. O conceito que deveria delinear, destacando para definir o “humano”, no intento de a tudo querer abranger, mesmo características essencialmente excludentes, acaba por perder sua função classificatória e sua razão de existir. Todo e qualquer conceito é por definição excludente. A idéia de círculo, por exemplo, não pode incluir características do quadrado.
Quando alguém se referindo ao termo humano quer abranger espécimes com características individuais que apontam para um perfil de natureza expressadora do sentimento de bondade, benevolência em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade em ralação aos desfavorecidos; de alguém benévolo, ameno, tolerável, sociável, tratável, civilizado, mas que incluem também um perfil de natureza cruel, perversa, hedionda, aberrante, de alguém que se compraz em promover o sofrimento alheio, estuprador de crianças ou de qualquer adulto etc., fica então a pergunta pelo significado que representam os seguintes termos: humanizar, desumanizar, humanar. O não delineamento do conceito cria confusão de significado. Se for pedido a alguém para circular o item correto numa questão de prova, esta solicitação com certeza será compreendida por qualquer pessoa instantaneamente porque o conceito de círculo está no domínio intelectivo de todo o mundo em razão de sua precisão e clareza. Porém se alguém me incumbir de humanizar vários indivíduos de uma comunidade originária de um lugar selvagem onde o processo civilizatório não aconteceu ainda; quais caminhos poderão ser seguidos tomando por base tudo que comporta o conceito elástico de ”humano” na perspectiva magnânima de certos pensadores? Contratar alguns SKINHEADS para me auxiliarem na humanização de referidas criaturas seria uma possibilidade? Afinal de contas estes tipos de espécimes, no entendimento de muita gente, se enquadram no conceito de humanos por suas características intrínsecas. Tecnicamente não deixariam de ser modelos humanos para uma alternativa de humanização!
Hodiernamente, é possível que estejamos a carecer da coragem ética necessária para resgatarmos o conceito “humano” na sua autenticidade valorativa e com a precisão taxiológica que cabe a todo conceito, para que seja assimilado e respeitado.
No reino animal, o homem é o único suscetível de se revestir de dignidade porque é o único capaz de criar valores. Sua dignidade é refém dos valores que criou, do contrário seria apenas um animal de uma espécie como todas as demais. Cada homem ao internalizar os valores socialmente urdidos já manifestos como tais, e, expressá-los em sua conduta pessoal, na realidade, está replicando-os, num ato participativo da grandeza que o dignifica. O que faz do homem um ser “humano” é o seu ato de apropriar-se do patrimônio sócio cultural compreendido por todos os valores, especialmente os mais nobres e fundamentais, já consagrados no estágio atual do processo civilizatório. É assim que o homem constrói e consolida a sua dignidade. Esta não constitui nenhuma entidade inexprimível ou imperscrutável e seus fundamentos não são de natureza enigmática. É algo muito mais próximo da realidade existencial concreta em que vivemos. E deve ser compreendida em seu caráter contingencial, algo que se conquista com empenho e disposição de espírito com vista a se tornar membro dessa grande família “humana”. Se ela se constituísse num atributo incondicional e necessário de alguém, pelo simples fato dele existir, ficaria em perspectiva para este indivíduo a opção de cometer os atos mais hediondos e bárbaros com seus semelhantes e sua dignidade estaria absolutamente preservada como a de um santo. Admitir isto como algo sensato e normal, se não chega a ser, beira o delírio.
Já deu para perceber que tanto o conceito de “humano” quanto o de dignidade não é de caráter biológico, uma vez que não se pode, nesse campo de estudo, apreender do caráter humano e de suas disposições de dignidade, observando o dinamismo fisiológico e metabólico do corpo do homem. Se não são de base biológica, não são atributos ontológicos já prontamente constituídos e dados por ocasião do nosso nascimento. São conceitos filosóficos e antropológicos. Seus conteúdos e fundamentos constituem objetos de pesquisa e estudo em um amplo espetro de disciplinas que se conjugam. Então vem a pergunta; se nossa dignidade emana do compromisso que assumimos com o etos, no qual internalizarmos os valores culturais que moldam nosso caráter pessoal, como fica o caso do embrião, do feto, da criança desde recém nascida que não se autodeterminam vistos não terem tido tempo e amadurecimento necessários em meio à vivência sócio interativa, para alcançar um nível razoável de civilidade? Neste caso, eles são investidos de dignidade por ascrição, isto é, pela atribuição de dignidade pessoal outorgada, não por uma decisão individual, mas de um juízo comunitário, cultural. É justo o entendimento de que; se a criança não se anunciou ainda por seus méritos, merecedora de dignidade, pelo mesmo paradigma ela também não se anunciou por sua postura, de forma indigna. A criança é a promessa de uma dignidade futura conquistada que vem confirmar a dignidade anteriormente outorgada (ascrição). Então, dignidade não pode ser um atributo que o Papai Noel, com o seu saco cheio dele, vem e distribui gratuitamente para todo mundo indiscriminadamente porque ele é muito bonzinho. De graça, que eu conheça, e de valor radical, só existe uma única coisa na terra por enquanto: o ar que respiramos. Quanto ao mais, tudo que quisermos na vida haveremos que conquistar com muita luta e empenho por meios lícitos sem que venhamos a prejudicar ninguém. Esta é a única forma possível de lastrearmos a nossa dignidade para que ela faça sentido e tenha valor. E assim devemos caminhar pela sua senda. Os desdobramentos que decorrem dessa moda atualmente dominante nos meios intelectuais, de se enxergar de maneira incondicional e indiscriminada em todo e qualquer indivíduo, a despeito do horror de sua história, dignidade, sem que saibamos o que a fundamenta, são lamentáveis. O cidadão comum, aquele que trabalha duramente para merecer o seu sustento e o da sua família, que respeita todas as regras de convivência social como pré- requisito do acolhimento que espera ter, que exercita a alteridade como estilo de conduta, que é honesto, quando observa que determinados bandidos, promotores dos atos mais hediondos e cruéis numa manifestação inequívoca de desprezo pelo ser humano, são tratados e considerados de maneira a ombrear-se com ele na categoria de dignidade, deve se sentir muito humilhado e insignificante. Talvez até se pergunte pelo sentido da escolha que fez em ser o cidadão que é e, quem sabe, se sinta até ridículo. Sem falar na sensação de impunidade que perpassa toda a sociedade em razão dos julgamentos de vários processos de casos chocantes que culminam em resultados surpreendentes. Essa realidade conspira contra a formação social de uma consciência que contemple valorativamente a performance de um existir legitimamente digno, inspirado em valores que realmente qualifiquem o homem humano. A pós-modernidade criou uma vala comum em que todos são nivelados por baixo, o que gera um sentimento difuso da irrelevância meritória dos que optaram pelo mais custoso, todavia mais nobre. É como se ficasse no ar que não há nenhuma glória em você, pelo fato de pautar a sua vida por valores e princípios éticos fundamentais, ser correto com todo o mundo e nunca abrir mão da decência, a despeito das dificuldades que tenha de enfrentar na luta pela sobrevivência. Honestamente, a nossa dignidade é consoante e proporcional ao que resulta manifesto do nosso esforço em transcendermos com vista a superação do animal básico, primitivo, que trazemos dentro de nós. Tudo mais, além disso, é mera hipocrisia.
Profº de Filosofia c/ Pós-Graduação em Filosofia da Ciência e da Linguagem. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, José da Silva. A Dignidade Humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2011, 08:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25772/a-dignidade-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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