RESUMO
A Constituição Federal de 1988 conferiu à união estável status de entidade familiar, por conseguinte, merecedora de proteção pelo Estado. Não obstante tal previsão, veio a legislação ordinária ferir o disposto na Carta Magna, ao elaborar normas sucessórias para os companheiros em desconformidade com as atinentes ao casamento, ferindo, de imediato, o princípio constitucional da igualdade. Se a própria Lei Fundamental estabeleceu tratamento isonômico para as instituições referidas, não há razão para uma lei infraconstitucional estabelecer discriminações. No ordenamento jurídico pátrio, onde há a hierarquia das normas, lei inferior deve respeitar lei superior, estando a Constituição Federal no topo do ordenamento jurídico, servindo como base para todas as demais normas jurídicas Diante dessa problemática, procurou-se demonstrar, por meio de pesquisa bibliográfica, a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, tendo em vista que a Lei Maior traçou expressamente os princípios aos quais todos os demais atos normativos devem se submeter, cabendo a aplicação destes de forma imperativa e imediata, em face da indiscutível supremacia do texto constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: União Estável; Direito das Sucessões; Constituição.
ABSTRACT
The Federal Constitution of 1988 conferred to the steady union status of familiar entity, therefore, deserving of protection for the State. Not obstante such forecast, came the usual legislation to wound the made use one in the Great Letter, when elaborating successory norms for the friends in disconformity with the atinentes to the marriage, wounding, immediately, the constitutional principle of the equality. If the proper Basic Law established isonômico treatment for the related institutions, does not have reason a infraconstitutional law to establish discriminations. In the native legal system, where it has the hierarchy of the norms, inferior law must respect superior law, being the Federal Constitution in the top of the legal system, serving as base for all the too much rules of law Ahead of this problematic one, was looked to demonstrate, by means of bibliographical research, the unconstitutionality of article 1,790 of the Civil Code, in view of that the Federal Constitution of 1988 express traced the principles to which all the too much normative acts must be submitted, fitting the application of these of imperative and immediate form, in face of the unquestionable supremacy of the constitutional text.
KEY WORDS: Steady union; Inheritance law; Constitution.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, S3º, reconheceu a instituição da união estável como entidade familiar, equiparando-a ao casamento. Nesta guisa, foi o primeiro documento a conferir essa prerrogativa ao que se chamava de concubinato, passando a ter reconhecimento e proteção do Estado.
Assim é que a Lei Fundamental confere direitos e deveres ao novo tipo de família instituído pela Carta Magna.
Não obstante, apesar do reconhecimento a nível constitucional, pautado no princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros, o Código Civil, ao tratar da matéria sucessória atinente à espécie, versou de forma discriminatória, atribuindo ao casamento direitos mais vantajosos em detrimento da união estável.
Ocorre que o tratamento diferenciado traduz incomensurável transgressão aos preceitos estabelecidos na Constituição pátria, sobretudo no tocante aos princípios da dignidade da pessoa humana, isonomia e supremacia da Constituição.
Diante dessa problemática, é de se questionar a constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil.
A escolha do tema, portanto, apresenta-se relevante para toda a sociedade, tendo em vista que as pessoas, independentemente da importância e crescente quantidade de uniões fundadas sob o prisma da união estável no mundo moderno, têm que ter o conhecimento necessário sobre os direitos, inclusive os post mortem do (a) seu (a) companheiro (a), oriundos deste tipo de relacionamento para, a partir daí e com base no princípio da liberdade, escolher qual tipo de entidade familiar quer formar.
2 UNIÃO ESTÁVEL
As uniões livres entre pessoas de sexo diferentes existem desde o início da civilização, podendo estas ser caracterizadas como aquelas que não precisam preencher as solenidades exigidas, pelo Estado, para o matrimônio (cf. PEREIRA, 1997).
No entanto, a doutrina não considerava o concubinato como sendo uma instituição do direito de família, relegando-o, no máximo, ao direito das obrigações (cf. WALD, 2004).
Antigamente, a união estável era denominada de concubinato. Apesar da discriminação conferida a ela, correspondia a um fato social marcante na sociedade e que, por isso, ganhou juridicidade frente ao ordenamento jurídico pátrio (cf. DIAS, 2007).
Segundo Arnold Wald (2004), o concubinato, em nosso país, se deu pela coexistência de três fatores predominantes, quais sejam as formalidades exigidas para o matrimônio, a exemplo da habilitação, o inconformismo da Igreja no tocante à realização do casamento civil como requisito preliminar ao casamento religioso, bem como a vedação de novas núpcias à pessoa divorciada. Ressaltou, ainda, as situações de miséria e ignorância em que vivem as pessoas, principalmente nos países chamados de Terceiro Mundo.
A regulamentação do divórcio, somente surgida em 1977, também constituiu uma das causas, senão a mais importante, para a multiplicação do concubinato, pois como antes não havia a sua possibilidade, face à sua inexistência, várias pessoas desquitadas ou até mesmo separadas ligavam-se a outras pessoas, numa relação duradoura, havendo ou não filhos, constituindo um patrimônio (cf. RODRIGUES, 2002).
Apesar da grande ocorrência de uniões extramatrimoniais, o Código Civil de 1916 não as regulou, tendo por objetivo maior proteger a família oriunda do casamento, restando, ademais, por punir aquelas, a exemplo da vedação a doações do homem casado à concubina (cf. DIAS, 2007).
A primeira vez em que houve a tentativa de legalizar a união estável foi em 1942, com o Decreto nº. 4.737, o qual tratou sobre o reconhecimento dos filhos naturais. Posteriormente, a lei de acidentes do trabalho concedeu um tratamento benéfico à companheira. Em matéria previdenciária, cada vez mais foram surgindo leis reconhecedoras de direitos da concubina (cf. MONTEIRO, 2004).
Houve até uma evolução no que se refere aos direitos não patrimoniais, advinda da Lei de Divórcio (Lei nº. 6015/77), a exemplo da possibilidade da concubina utilizar o nome do companheiro, configurada a união estável entre eles (cf. WALD, 2004).
Suprindo a ausência de tratamento do instituto em estudo pelo legislador, veio a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, S3º, equiparar a união estável ao casamento, gozando de proteção do Estado e constituindo-se em uma das formas de constituição de família. O dispositivo supratranscrito declarou: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”.
Diz Arnold Wald (2004) que muita polêmica surgiu em torno deste dispositivo, ante a dúvida quanto à eficácia da norma constitucional ser limitada ou de aplicabilidade imediata. Visando à garantia da segurança jurídica, formou-se um consenso no intuito da elaboração de uma lei ordinária que complementasse o preceito da Carta Magna.
A partir de 1988, as uniões estáveis, que antes eram discriminadas perante a sociedade e ao Direito, passaram a ter novo status dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Contudo, foi muito mais tarde que a matéria tratada por norma constitucional passou a ser regulamentada por legislador ordinário infraconstitucional. Isto ocorreu por meio da edição das Leis nº. 8.971/94 e 9.278/96.
Com o advento do Código Civil de 2002, houve a revogação das Leis 8.971/94 e 9.278/96, haja vista ter disciplinado integralmente a matéria concernente à união estável, em seus artigos 1.723 a 1.726. Apenas o que permaneceu em vigor foi o teor do artigo 9º, da Lei 9.278/96, que não foi tratado na Lei 10.406/02 (cf. MONTEIRO, 2004).
Sem dúvida, tanto antigamente como atualmente são freqüentes as uniões entre duas pessoas de sexos opostos, que resolvem estabelecer uma relação na qual assumem um estado semelhante ao dos cônjuges, respeitando os direitos e obrigações que a estes últimos são devidos (cf. RODRIGUES, 2002).
3 DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
O artigo 1.790 do Estatuto Civil está localizado no Livro V (Do Direito das Sucessões), Título I (Da Sucessão em Geral), Capítulo 1 (Disposições Gerais).
Acerca do assunto, preleciona Venosa (2002.p.118):
A impressão que o dispositivo transmite é de que o legislador teve rebuços em classificar a companheira ou companheiro como herdeiros, procurando evitar percalços e críticas sociais, não os colocando definitivamente na disciplina na ordem de vocação hereditária. Desse modo, afirma eufemisticamente que o consorte da união estável ‘participará’ da sucessão, como se pudesse haver um meio-termo entre herdeiro e mero ‘participante’ da herança.
Ao ter regulado a matéria sucessória atinente à união estável, a Lei Civil deveria ter se adaptado aos passos da doutrina e jurisprudência, corrigindo os problemas até então existentes, porém não foi isso que aconteceu. Em relação à posição mais vantajosa que os companheiros desfrutavam perante os cônjuges, através das Leis de 1994 e 1996, o novo Código Civil não deu solução a esse problema. Aliás, a Lei 10.406/02 foi responsável pela inclusão do (a) companheiro (a) em local de extrema inferioridade, comparado ao que deu a sucessão hereditária na instituição do casamento (cf. RODRIGUES, 2003).
Diz o artigo 1.790, verbis:
A companheira ou companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I- se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II- se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daqueles;
III- se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV- não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Da análise do caput pode-se concluir que o direito à sucessão que o companheiro pode dispor limitar-se-á aos bens adquiridos durante a união estável de forma onerosa, vale ressaltar (cf. RODRIGUES, 2003).
Ou seja, caso não tenha havido aquisição de nenhum bem a título oneroso durante o tempo de convivência, não herdará o (a) companheiro (a) sobrevivente nada, ainda que o falecido tenha deixado patrimônio, mas tenha sido produto de época anterior à união estável (cf. GONÇALVES, 2007).
No que tange ao direito real de habitação, há uma discussão acerca do seu não- reconhecimento pelo Código Civil, em face da previsão anteriormente feita na Lei 9.278/96. A controvérsia gira em torno da hipótese de o autor da sucessão não ter adquirido bens durante a convivência da relação ou tendo assim adquirido, somente os concretizou a título gratuito. Como a Lei 10.406/2002 reporta-se à aquisição a título oneroso, o companheiro (a), em tais situações, ficaria à mercê de uma possível desocupação involuntária do imóvel, onde residia com o seu parceiro (cf. GONÇALVES, 2007).
Nesse mesmo sentido é o Enunciado 117 do Conselho da Justiça Federal (GONÇALVES, 2007, p. 170):
O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do artigo 1.831, informado pelo artigo 6º, caput, da CF/88.[1]
4 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL
4.1 Princípios importantes acerca das considerações do tema
4.1.1 Princípio da supremacia da Constituição
Por força do princípio da supremacia da Constituição, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade, nem mesmo nenhum ato internacional que deva produzir efeitos em território nacional pode ter validade se for incompatível com a Lei Maior, qual seja, a Constituição Federal. Isso decorre da tese da superioridade jurídica da constituição frente a todos os outros atos normativos oriundos do poder estatal (cf. BARROSO, 2006).
4.1.2 Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público
Em suma, o princípio da constitucionalidade das leis e dos atos normativos do poder público gera uma presunção relativa de que os atos emanados dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) são pautados na obediência aos ditames da Constituição, o que os torna presumidamente válidos desde a sua origem (cf. BARROSO, 2006).
4.1.3 Princípio da interpretação conforme a Constituição
Este postulado tem como escopo a busca de uma interpretação do ato legislativo que não venha de encontro à Constituição. Todavia, esta interpretação não deve ser a mais lógica possível, ou seja, aquela decorrente de uma leitura do dispositivo (cf. BARROSO, 2006).
A interpretação conforme a constituição terá aplicabilidade quando existir um preceito infraconstitucional e este comportar várias interpretações diferentes, sendo uma ou mais delas contraposta a Lei Maior. Na ocorrência desta situação hipotética, deverá o Poder Judiciário declarar qual é a interpretação cabível ao caso concreto (cf. BARROSO, 2006).
4.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
Encontra previsão no artigo 1º, III, da Constituição Federal. É o princípio fundante do Estado Democrático de Direito, sendo consagrado ao valor nuclear da ordem constitucional, donde se busca o enaltecimento dos direitos humanos e a conseqüente justiça social (cf. DIAS, 2007).
No tocante às relações familiares, o princípio da dignidade da pessoa humana está atrelado à idéia de que todas as entidades familiares devem receber igual tratamento digno, não podendo haver a discriminação de um tipo de constituição de família em face de outro (cf. DIAS, 2007).
4.2.5 Princípio da proibição do retrocesso social
O princípio em tela objetiva impedir o retorno a um estado que se apresente menos vantajoso do que o já estabelecido, ou seja, uma vez assegurado pelo texto constitucional, através do Poder Constituinte, direitos sociais, não se pode sofrer o retrocesso em prejuízo de uma situação mais benéfica (cf. DIAS, 2007).
Essa imposição é cabível tanto para o legislador infraconstitucional em observância à Constituição como também para o Poder Constituinte Originário, que, ao elaborar uma nova carta constitucional, não pode dar um alcance jurídico social inferior ao estabelecido na Lei Fundamental anterior (cf. DIAS, 2007).
4.3 Inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil
Certo é que o artigo 1.790 do Código Civil encontra-se em vigor, produzindo efeitos, tendo em vista que todas as leis ou atos normativos do Poder Público gozam de uma presunção de constitucionalidade, só admitindo o título de inconstitucionalidade caso venha a ser assim declarado pelo Poder Judiciário.
Todavia, inúmeras são as críticas ao artigo supracitado, seja no que se refere à sua posição topográfica na Lei Civil, seja porque é considerado um abuso ao princípio da vedação do retrocesso social ou, ainda, por ferir o princípio da isonomia.
Nessa perspectiva, Rodrigues (2003, p. 119) escreve:
Em suma, o Código Civil regulou o direito sucessório dos companheiros com enorme redução, com dureza imensa, de forma tão encolhida, tímida e estrita, que se apresenta em completo divórcio com as aspirações sociais, as expectativas da comunidade jurídica e com o desenvolvimento de nosso direito sobre a questão.
Veloso (2006, p. 243) aduz:
Restringir a idéia do direito sucessório do companheiro sobrevivente aos bens adquiridos onerosamente pelo de cujus na vigência da união estável não tem nenhuma razão, não tem lógica alguma e quebra todo o sistema, podendo gerar conseqüências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época em que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro se este não adquiriu outros bens durante o tempo da convivência.
Nessa vereda, notável é a desconformidade com o princípio da vedação do retrocesso social, pois lei ordinária anterior tinha previsto direito que lei ordinária posterior veio a restringir, prejudicando os companheiros em matéria sucessória.
Acerca disto, enunciou Wald (2007, p. 97):
[...] Deve-se considerar, sobre o tema, que o dispositivo (art. 1.790 do CC de 2002) é inconstitucional materialmente, porquanto no lugar de dar especial proteção à família fundada no companheirismo (art. 226, caput e S3º, da CF), ele retira direitos e vantagens anteriormente existentes em favor dos companheiros. O correto seria cuidar, em igualdade de condições às pessoas dos cônjuges, a sucessão em favor dos companheiros. Tal conclusão decorre da constatação de que desde o advento das Leis n. 8.971/94 e 9.278/96, os companheiros e os cônjuges passaram a receber igual tratamento em matéria de direito das sucessões: ora como sucessores na propriedade, ora como titulares de usufruto legal, ora como titulares de direito real de habitação. Desse modo, considerando que, por força de normas infraconstitucionais, desde 1996 existe tratamento igual na sucessão entre cônjuges e na sucessão entre companheiros, deveria ter sido mantido tal tratamento para dar efetividade ao comando constitucional contido no art. 226, caput, da Constituição Federal.
Pelas mesmas razões, ponto que também merece destaque é o direito real de habitação previsto na lei da união estável 9.278/96 e que foi omitido na Lei 10.406/2002 (cf. WALD, 2007).
Digno de encômio é o questionamento de Veloso (2006, p. 247):
Se o princípio da igualdade obriga a que se coloquem no mesmo plano tanto a família constituída pelo casamento quanto a que decorre da convivência pública, contínua e duradoura; se o cônjuge é herdeiro, e herdeiro necessário, concorrendo, inclusive, com descendentes e ascendentes do falecido, como se pode admitir tamanha discriminação no tratamento conferido aos companheiros?
O texto constitucional conferiu especial proteção do estado à união estável, sendo esta como o casamento detentora do mesmo valor jurídico perante a ordem jurídica, não podendo haver discriminações. No entanto, a situação é outra.
Quanto à inconstitucionalidade do artigo 1.790 do diploma civil, destaque-se excerto jurisprudencial da lavra do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, publicado no Diário Oficial da Justiça no dia 24/09/2007, a fim de respaldar as alegações já abalizadas:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ABERTURA DA SUCESSÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO CIVIL. APLICABILIDADE DA NOVA LEI, NOS TERMOS DO ARTIGO 1.787. HABILITAÇÃO EM AUTOS DE IRMÃO DA FALECIDA. CASO CONCRETO, EM QUE MERECE AFASTADA A SUCESSÃO DO IRMÃO, NÃO INCIDINDO A REGRA PREVISTA NO 1.790, III, DO CCB, QUE CONFERE TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE COMPANHEIRO E CÔNJUGE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Preliminar não conhecida e recurso provido. (Agravo de Instrumento Nº 70020389284, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 12/09/2007)
Na mesma linha é outra jurisprudência proferida pelo Egrégio Tribunal referido, publicada no Diário da Justiça no dia 08/03/2007, a seguir:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. BEM DOADO. ASCENDENTE. INAPLICABILIDADE DO ART. 1790, DO CC/02. Não se conhece de parte do recurso onde é pleiteado o direito real de habitação, matéria não abordada nas razões recursais do agravo de instrumento. Não se aplica a regra contida no art. 1790 do CC/02, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Como é irrelevante para o direito sucessório do cônjuge o regime de bens adotado, não se deve discutir se houve ou não conjugação de esforços para a obtenção do patrimônio dos companheiros, pois o que é relevante é se houve união estável, não importando a origem do bem. Logo, a companheira sobrevivente tem direito a eventuais bens recebidos pelo falecido por herança de sua mãe, tal como ocorreria se se tratasse de cônjuge supérstite. Recurso conhecido em parte, e nesta provido. (Agravo Nº 70018505313, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 01/03/2007)
Diante de tais argumentos, cumpre somente asseverar que não se pretende afirmar que o artigo comentado deixe de ter aplicabilidade de imediato, uma vez que a competência para tanto é exclusivamente do Poder Judiciário, presumindo o preceito constitucional até que se prove o contrário. Busca-se, em verdade, a vivificação dos seus fundamentos, eis que se encontra na Constituição Federal, esta sim, hierarquicamente superior a todos os demais atos normativos.
5 CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, percebe-se que a união estável foi equiparada à entidade familiar, devendo receber o mesmo tratamento conferido ao casamento, em todos os seus aspectos.
Apesar do artigo 226, S3 º, da Constituição Federal prever a possibilidade da conversão da união estável ao casamento, a qualquer tempo, mediante requerimento dos conviventes, isto não faz com que o instituto em tela seja inferior ao matrimônio, não podendo, portanto, serem atribuídos direitos que lhes sejam desfavoráveis em relação aos cônjuges.
No entanto, não é assim que se vê no Código Civil, valendo ressaltar o tratamento sucessório conferido aos companheiros no seu artigo 1.790.
Em primeiro lugar, o próprio dispositivo já merece críticas quanto a sua colocação na Lei Civil, haja a vista a sua inserção em Capítulo que dispõe sobre as disposições gerais do Direito das Sucessões, quando, em verdade, merecia ser enquadrado nos artigos 1.829 e seguintes, assim como foi feito com os cônjuges.
Ademais, as leis que regulamentaram a união estável, no que se refere à matéria sucessória foram mais benéficas do que a nova Lei Civil, a qual não conferiu direito real de habitação, não reservou a condição de herdeiro necessário ao companheiro, não sendo incluído na ordem de vocação hereditária, tendo suas quotas-partes diferenciadas das dos cônjuges, somente vindo a ter direito de receber a totalidade da herança quando não houver parentes sucessíveis.
Houve um notável retrocesso social, pois as legislações de 1994 e 1996 igualou companheiros e cônjuges, no que se refere ao direito das sucessões, tendo, em alguns momentos, até mesmo atribuído mais direitos ao companheiro do que ao cônjuge.
Não poderia, então, lei ordinária posterior retroceder ao que já tinha disposto lei anterior, conferindo situações menos vantajosas, até mesmo visando evitar o desrespeito ao princípio constitucional da vedação do retrocesso social.
A lei não poderia ter versado a união estável de forma discriminatória, tendo em vista que a própria Constituição prevê a igualdade das relações familiares, que em tese são fundadas no afeto, amor, solidariedade, respeito. Tanto a união estável como o casamento são dignas de respeito, consideração, dignidade, nas mesmas proporções. Percebe-se a afronta aos princípios da isonomia, bem como ao do pluralismo das entidades familiares.
Também merece destaque o importantíssimo princípio da supremacia da Constituição, presente nas constituições rígidas, a exemplo da Carta Magna de 1988, determinando ser a Constituição superior a todos os demais atos normativos. Nesta guisa, não poderia o Código Civil, lei infraconstitucional, ir de encontro ao estabelecido na carta constitucional, como se vê do confronto entre o artigo 1.790, do Estatuto Civil e artigo 226, S3º da Lei Maior.
Desta forma, notável é o vício de inconstitucionalidade que contém o artigo 1.790 do Código Civil, contudo somente poderá assim ser declarado após decisão judicial, o que até então pelo princípio da constitucionalidade dos atos normativos é considerado constitucional, produzindo efeitos, devendo ser observado pela sociedade.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 08 set. 2007.
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento Nº 70020389284. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 18 nov. 2007.
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento Nº 70018505313. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 18 nov. 2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2007.v.7.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 37. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva: 2004.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e União Estável. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
______. Direito Civil: Direito das Sucessões. 26. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva: 2003.
RODRIGUES, Sílvio Rodrigues. Direito Civil: Direito de Família. 27. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva: 2002, v.6.
VELOSO, Zeno. Do Direito Sucessório dos Companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord). Direito de Família e o Novo Código Civil. 4. ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 235-249.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
WALD, Arnoldo. O Novo Direito das Sucessões. 13. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2007.
______. O Novo Direito de Família. 15. ed. rev. atual.São Paulo: Saraiva, 2004.
[1] Artigo 6º, caput, da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SíLVIA TAMARA MENDONçA, . A inconstitucionalidade do artigo 1.790 do novo Código Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2011, 08:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/26746/a-inconstitucionalidade-do-artigo-1-790-do-novo-codigo-civil. Acesso em: 30 set 2024.
Por: Bruno Sposito Berjas
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