RESUMO: O rol das famílias foi significativamente ampliado com o advento da Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, passando da família patriarcal, heteronormativa e matrimonializada para um conceito amplo e aberto, que tem como prioridade a realização dos seus componentes. Apesar desse novo momento para o direito das famílias, o conceito de família segue sendo constantemente alargado, seja pela doutrina ou seja pela jurisprudência, visando corresponder a todos os anseios e as realidades da nossa sociedade. Assim, a evolução do direito de família deixa de se apegar a um marco histórico para seguir como uma instituição em movimento, tutelando, agora, o afeto dos seres humanos com seus fiéis escudeiros, seus animais. Portanto, é necessário compreender como o direito se portará frente a esta nova dinâmica da instituição fundante e prioritária do Estado, a família, analisando a evolução histórica até o atual estado das coisas.
Palavras-chave: Direito de família. Direito das famílias Tutela do afeto. Direito dos animais. Dimensão ecológica. Dignidade humana.
Durante os séculos, a conexão entre matrimônio e paternidade revelou-se muito mais profunda do que se poderia supor. O matrimônio existia, principalmente, para preservar um estado estabelecido, além de garantir a geração de descendentes.
As mudanças sociais, econômicas, culturais e jurídicas, evoluíram com o conceito de família e de filiação, garantindo a adequada tutela jurídica do afeto, entendendo este como como um elemento constituidor e fundamental na estruturação das relações familiares.
Um exemplo de evolução no conceito de família, via jurisprudência pátria, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal que consolidou os institutos da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva, rompendo novamente a concepção e o modelo clássico de família, como já havia feito em diversos julgados de famílias homoafetivas por exemplo, para dizer que a nova ordem constitucional se preocupou de proteger a todos os tipos e estruturas de família e todos os vínculos de parentesco, conforme fora decidido no Tema de Repercussão Geral 622 do Supremo Tribunal Federal.
Embora seja uma realidade contemporânea nas famílias brasileiras, persiste um debate social e legal sobre os direitos dos animais, suas definições, exigências e outros aspectos, que resultam da discussão ainda não consolidada sobre a natureza jurídica e os direitos desses seres, bem como de uma visão de sociedade que ainda entende o modelo tradicional de família antropocentrada como o nosso modelo social.
O trabalho em questão foi desenvolvido por meio do método dedutivo, envolvendo a análise de doutrinas, ordenamento jurídico pátrio e decisões judiciais. A investigação adotou o método histórico e a pesquisa documental indireta, fundamentando-se no referencial teórico de vários autores da área em foco.
Portanto, a pesquisa tem o objetivo de compreender a tutela jurídica dos direitos dos animais pelo direito de família, analisando e avaliando a evolução histórica da família como instituto e o atual estado da arte.
1.A CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA AO LONGO DOS TEMPOS
A primeira e mais antiga forma de estrutura social que se sabe, desde as sociedades primitivas, é a família que, naquele momento histórico, se liga com base no instinto sexual e/ou de sobrevivência, além de proteger, sobretudo, os filhos. A partir destes fatos, parece errônea a afirmação de que a família é uma instituição emanada da religião ou do Estado, uma vez que nasceu antes destes e também permaneceu sem eles.
Partindo da premissa sociológica, a família é uma entidade histórica, dinâmica, com estruturas, funções e formatos em constante modificação. Nesse sentido, as lições de
Luiz Edson Fachin (1999, p.11): “é inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta, na sua evolução histórica, desde a família patriarcal romana até a família nuclear da sociedade industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais”.
Paulo Lôbo nos ensina que
A constituição de família é o objetivo da entidade familiar, para diferenciá-la de outros relacionamentos afetivos, como a amizade, a camaradagem entre colegas de trabalho, as relações religiosas, o apadrinhamento. aferido objetivamente e não a partir da intenção das pessoas que as integram. (Lôbo, 2017, p. 77)
O desenvolvimento da noção família trouxe novas possibilidades, como uma maior igualdade entre os membros integrantes de um mesmo núcleo, além de avançar na concepção de tutela e proteção jurídica destes. Sendo a família o espaço de desenvolvimento do ser e da sua personalidade, a função da família deve ser, portanto, atender as necessidades destes indivíduos para que possam alcançar o ápice do seu desenvolvimento individual.
Lya Luft afirma que:
Constituir um ser humano, um nós, é um trabalho que não dá férias nem concede descanso: haverá paredes frágeis, cálculos malfeitos, rachaduras. Quem sabe um pedaço que vai desabar. Mas se abrirão também janelas para a paisagem e varandas para o sol. O que se produzir – casa habitável ou ruína estéril – será a soma do que pensaram e pensamos de nós, quanto nos amaram e nos amamos, do que nos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudar isso [...] Marcados pelo que nos transmitem os outros, seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é tecida de dois fios enlaçados: um nasce dos que nos geraram e criaram; o outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança. (grifos nosso)
O que a autora pretende mostrar é a similitude dos processos, uma vez que a construção do ser humano e de uma residência são parecidos, mas sobre nós, paira a incerteza do processo e dos seus resultados. Assim, só permanece em pé uma casa calcada em bons alicerces, com bases sólidas e firmes, da mesma forma que é necessário fazer com o ser humano no desenvolvimento das suas potencialidades, eis que essenciais para assegurar o sucesso da construção do ser.
O ser humano tem a necessidade de ser cuidado pelo outro. Sendo assim, o afeto desenvolvido pela relação de cuidado é um fator primordial no estabelecimento do conceito de família.
Na lição de Maria Berenice Dias,
Sob o aspecto histórico da entidade mais antiga do mundo o ser humano por instinto mais primitivo se une com o intuito de proteção, por receio da solidão, e de igual modo como forma de perpetuação da espécie, se unir em grupos com relações de afeto vai além da manutenção dos vínculos afetivos verdadeiramente se mostra como prerrogativa para felicidade humana. (DIAS, 2017, p. 21)
Carlos Roberto Gonçalves assevera que
O Direito de Família é o mais humano de todos os ramos do Direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões, como preleciona Rodrigo da Cunha, ‘é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cuja base e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania’. A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, acrescenta o mencionado autor, que ainda enfatiza: ‘Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um declínio do patriarcalismo e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as instituições democráticas. (GONÇALVES, 2005, p. 228)
Assim, e considerando a importância dos movimentos que ressignificaram a posição da mulher na sociedade, a ideia de família é calcada, também, nas inovações produzidas por estes movimentos e que refletem diretamente na concepção de casamento e de família.
O conceito de família pré-Constituição Federal de 1988 era calcado nos preceitos da Igreja Católica, tendo a indissolubilidade do casamento como uma de suas características primordial. Tal afirmação é reforçada pelo fato do Brasil ser o único pais a incluir em sua Constituição a impossibilidade da dissolução do matrimônio.
Com o advento da República, temos o Código Civil de 1916, que pouco sobre filiação e outros tópicos de família além do casamento e, quando nas suas poucas disposições, o fazia de maneira discriminatória. O casamento foi idealizado para contribuir com o crescimento econômico da burguesia.
Maria Berenice Dias leciona sobre a concepção de família no marco do Código Civil de 1916. Vejamos:
Sob a égide de uma sociedade conservadora e fortemente influenciada pela igreja, justificava-se a concepção do casamento como instituição sacralizada. Quando da edição do Código Civil de 1916, o enlace juramentado era indissolúvel. A única possibilidade legal de romper com o matrimônio era o desquite, que no entanto, não o dissolvia. Permanecia intacto o vínculo conjugal, a impedir novo casamento, mas não novos arranjos familiares, pois cessavam os deveres de fidelidade e manutenção da vida em comum sob o mesmo teto. Remanescia, no entanto, a obrigação de mútua assistência, a justificar a permanência do cargo alimentar em favor do cônjuge inocente e pobre. (DIAS, 2015, p. 202)
Adriana Caldas do Rego Freitas Maluf assevera, de maneira assertiva, que:
a segunda metade do século XX assistiu a um processo sem precedentes de mudanças na história do pensamento e da técnica, que levaram a uma alteração paradigmática no modo de se pensar a sociedade e suas instituições. Chega, assim, a família, à era contemporânea, em que, através da mudança dos costumes, seus valores se modificam, passando a sua gênese a estar mais fincada no afeto e na valorização da dignidade da pessoa humana. (MALUF, 2010, p. 25, grifos nosso).
É a instauração de um novo marco teórico utilizando de um novo paradigma: pela primeira vez uma Constituição Brasileira abordará o Direito de Família em sentido amplo.
1.1 A Constituição Federal de 1988 e a tutela do afeto: uma análise do Direito Civil Constitucionalizado
Com o avanço tecnológico do século XXI, as mudanças nas dinâmicas sociais e a evolução dos meios de comunicação, surgiram condições favoráveis para a adoção de novas Constituições. O declínio da Igreja católica aproximou as Constituições da realidade política, econômica, cultural e social da época, buscando transformá-la em um instrumento vivo e atual.
Partindo deste pressuposto, contata-se a necessidade de abarcar novas estruturas familiares, de maneira a garantir proteção jurídica às situações consolidadas na sociedade.
Silvio de Salvo Venosa afirma que “em nosso país, a Constituição de 1988 representou, sem dúvidas, o grande divisor de águas do direito privado, especialmente, mas não exclusivamente, nas normas de direito de família” (VENOSA, 2006, p. 30)
O art. 226 da Constituição Federal dispõe que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Trata-se de uma clara mensagem à sociedade brasileira: a dignidade da pessoa humana, a tutela do afeto e a proteção jurídica da família alcançam um novo paradigma, sendo protegida com especial prioridade pelo texto constitucional.
Rodrigo da Cunha Pereira ensina que
A família à margem do casamento é uma formação social merecedora de tutela constitucional porque apresenta as condições de sentimento da personalidade de seus membros e a execução da tarefa de educação dos filhos. As formas de vida familiar à margem dos quadros legais revelam não ser essencial o nexo família-matrimônio: a família não se funda necessariamente no casamento, o que significa que casamento e família são para a Constituição realidades distintas. A Constituição apreende a família por seu aspecto social (família sociológica). E do ponto de vista sociológico inexiste um conceito unitário de família. (CUNHA PEREIRA, 2008, p. 8)
A instauração de um novo paradigma pela Constituição Federal de 1988 possibilita a produção de um novo marco teórico na proteção jurídica dos bens e dos indivíduos: a direito civil constitucional ou direito civil constitucionalizado. Há um chamado constitucional de temas que antes pertenciam apenas ao Código Civil por estarem na seara do direito privado, elevando temas sensíveis ao mais alto nível de proteção estatal.
É o que diz Rodrigo da Cunha Pereira:
Com a nova Carta Magna fez-se presente a crise nas categorias jurídicas pré-constitucionais, que entraram em choque com as recém-criadas, cuja tônica e preocupação era com a preservação da dignidade da pessoa humana. Isto fez que com que fossem revistos as regras e institutos do Direito Civil, a partir de uma despatrimonialização e de uma ênfase na pessoa humana, isto é, na compreensão da dignidade como cerne do sujeito e consequentemente das relações jurídicas. Neste sentido, ampliou- se o campo de aplicação da autonomia privada, que também se curva sobretudo no âmbito das relações familiares.
No seio da família, são os seus integrantes que devem ditar o regramento próprio da convivência. Desta órbita interna exsurgem disposições que farão com que a sociedade e o Estado respeitem e reconheçam tanto a família, enquanto unidade, como os seus membros individualizadamente. (PEREIRA, 2004, p. 110)
Importante ressaltar certa resistência pelos juízes em aplicar a Constituição Federal em detrimento do Código Civil de 1916, resistência essa que não guardava proteção jurídica, uma vez deve prevalecer a supremacia do texto constitucional e a segurança jurídica com uma aplicação uniforme da lei.
Mister a consideração feita por Paulo Lôbo
No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução "constituída pelo casamento" (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional "a família", ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução "a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos". A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. [...] O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias "ilícitas", desse modo consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único (casamento), em torno do qual o direito de família se organizou. "A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial". O caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade (2002, p. 58-59)
Reforçando tal tese, Cristiano Chaves de Farias assevera que
Fica claro, portanto, que a interpretação de todo o texto constitucional deve ser fincada nos princípios da liberdade e igualdade, despida de qualquer preconceito, porque tem como "pano de fundo" o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado logo pelo art. 1o, III, como princípio fundamental da República (motor de impulsão de toda a ordem jurídica brasileira). Sem dúvida, então, a única conclusão que atende aos reclamos constitucionais é no sentido de que o rol não é, e não pode ser nunca – taxativo, por deixar sem proteção inúmeros agrupamentos familiares, não previstos no texto constitucional, até mesmo por absoluta impossibilidade. Não fosse só isso, ao se observar a realidade social premente, verificando-se a enorme variedade de arranjos familiares existentes, apresentar-se-ia outro questionamento: seria justo que os modelos familiares, não previstos em lei, não tenham proteção legal? (grifos nossos)
Pietro Perlingieri (2017, p. 5) elenca dois papeis importantes desempenhados pela Constituição Federal de 1988, quais sejam, o enfraquecimento do patriarcado e da rígida estrutura matrimonializada da família. Souza dispõe, reforçando a afirmação de Pierlingeri, que
Agora o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo. Cada vez mais, a idéia de família se afasta da estrutura do casamento. (SOUZA apud, DIAS, 2005, p. 39)
O artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 eleva o princípio da dignidade da pessoa humana ao patamar de fundamento da República Federativa do Brasil, corroborando com o paradigma contemporâneo de família, que visa a proteção jurídica dos direitos dos indivíduos, a dignidade e o livre desenvolvimento da personalidade
Importante, ainda, é que o legislador consiga se manter sintonizado com os anseios e as demandas da sociedade, conforme afirma Maria Berenice Dias.
A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 §3o) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 §4o), que começou a ser chamada de família monoparental. No entanto, os tipos de entidades familiares explicitados são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. [...]. Dita flexibilização conceitual vem permitindo que os relacionamentos, antes clandestinos e marginalizados, adquiram visibilidade, o que acaba conduzindo a sociedade à aceitação de todas as formas que as pessoas encontram para buscar a felicidade. (DIAS, 2007, p. 38)
Por fim, importante ressaltar o papel que a Constituição Federal atribuiu à família em seu art. 226, ao estabelecer o princípio da função social da família. Nesse sentido, o dever primordial e fundamental da família é a realização social e pessoal daqueles que a integram com absoluto respeito às diferenças.
Leonardo Barreto Moreira Alves traz uma importante lição ao tratar sobre a autonomia privada e a autonomia da vontade na constituição das famílias.
O ordenamento jurídico permitiu que a vontade dos componentes de uma entidade familiar tivesse força suficiente para construí-la, independente, portanto, da constituição de um vínculo jurídico formal. (ALVES, 2010, p. 155)
A Constituição Federal não previu expressamente a tutela das famílias homoafetivas, entretanto, em 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 132), reconheceu por unanimidade a união estável homoafetiva.
Neste julgamento, a Corte Suprema decidiu conferir interpretação conforme a Constituição e entendeu que qualquer expressão que impedisse o reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo contida no art. 1.723 do Código Civil deveria ser extirpada. Os autores das ações alegaram que o não reconhecimento da união homoafetiva ofenderia os preceitos fundamentais de igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana, além do art. 3º, IV da Constituição que veda a discriminação de qualquer tipo, protegendo, assim, os direitos humanos e os direitos das minorias.
A Constitucionalização do direito civil impõe um novo olhar sobre as relações familiares: o que antes era uma estrutura rígida e engessada passa a ser uma instituição dinâmica e plural!
A tutela do afeto passa a ser o elemento fundador da família e que conecta os indivíduos. Esta é a lição de João Baptista Vilela:
Reconhecer a família, contudo, não é apenas abrir-lhe espaço nas constituições e nos códigos, para, ao depois, sujeita-la a regras de organização e funcionamento. É, antes, assegurar sua faculdade de autonomia e, portanto, de autoregramento. O casamento e a família só serão o espaço do sonho, da liberdade e do amor à condição de que os construam os partícipes mesmos da relação de afeto. [...] Já notaram os senhores o quão pouco se fala de amor em sede de direito de família, como se este não fosse seu ingrediente fundamental? O amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. (1997, grifo nosso)
No término do século passado, em uma análise além do seu tempo, Luiz Edson Fachin já delineava os desafios que as novas formas de família imporiam ao poder judiciário, uma vez que “em poucas décadas, portanto, os paradigmas do direito de família são diametralmente modificados” (FACHIN, 1999, p.7).
Christiano Cassettari traz à discussão a natureza das normas de direito de família
As normas de Direito de Família são essencialmente de ordem pública, pois estão relacionadas ao direito existencial da pessoa humana. [...] Outra prova disso é a parentalidade socioafetiva, objeto do nosso estudo, e como ela é baseada no afeto, verifica-se que o Direito de Família moderno é baseado mais na afetividade do que na estrita legalidade. (2014, p. 27, grifos nossos)
A família é um elemento vivo da sociedade, em permanente transformação e com um dinamismo próprio, que é delineado pelos seus integrantes. O seu conceito resulta de um processo multifacetado, envolvendo a história, a sociedade, a cultura e o conhecimento jurídico, pois, como elemento vivo que é, se modifica com o passar do tempo e está em permanente construção. Deixa de ser um direito de família para ser um direito das famílias.
Maria Berenice Dias adentra em uma importante seara: a desnecessidade da ingerência indevida e excessiva do Estado nas famílias.
No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem razões morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais que justifiquem a excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas. (DIAS, 2009, p. 53, grifos nossos)
Ao passo que a família passou a gozar de tutela constitucional e proteção especial para a sua constituição e livre desenvolvimento, atribuiu-se direito subjetivo público oponível ergma omnes: nenhum indivíduo ou o Estado pode intervir na família, exceto para proteger a instituição e seus integrantes. O centro da família passa a ser, portanto, os seus integrantes.
2.O NOVO PARADIGMA BIOCÊNTRICO: A PROTEÇÃO JURÍDICA PARA ALÉM DO SER HUMANO
2.1 A natureza como objeto de proteção: a tutela constitucional do meio ambiente
Utilizando-se da concepção tradicional do direito civilista, o meio ambiente seria apenas um bem jurídico corpóreo, uma vez que somente o ser humano pode ser sujeito de direitos na relação jurídica. O bem jurídico, de outra sorte, é aquele colocado à disposição do ser humano, gozando de utilidade e valor econômico.
Os arts. 79 e 82 do CC/02 considera alguns elementos do meio ambiente como bens. Vejamos:
Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
No art. 82 do CC é onde encontra-se guarida para a atual tutela dos animais, que são vistos como bens móveis, também chamados de semoventes.
No que diz respeito aos direitos dos animais, duas são as vertentes que atuam no movimento de reconhecimento destes direitos, quais sejam, a concepção da libertação animal e o abolicionismo animal.
O filósofo australiano Peter Singer escreveu uma obra, publicada em 1973, chamada de Libertação Animal. Ao tratar das péssimas condições a que eram submetidos animais em laboratórios científicos, o autor traz um novo dinamismo para a defesa dos direitos dos animais, inaugurando um novo marco filosófico na temática.
A obra esclarece a necessidade de os movimentos de proteção animal avançarem na temática, deixando de atuar apenas no que diz respeito aos maus tratos e práticas cruéis, lançando novos olhares, também, para o tratamento dos animais domésticos. É nesse marco filosófico que se passa a reivindicar a proteção dos direitos dos animais de forma ampla.
De acordo com Oliveira (2012, p.37), escancara-se a dificuldade de tratar temas morais em relação aos animais, uma vez que se privilegia as tradições culturais em detrimento do avanço dos debate ético.
É no marco do pai do utilitarismo como filosofia moral, Jeremy Bentham, que o autor cria uma teoria de justiça para os animais alicerçada no princípio moral cunhado como “princípio da igual consideração de interesses semelhantes”, de modo que os interesses de cada ser afetado por uma ação devem ser considerados e receber o igual peso que os interesses semelhantes de qualquer outro (SINGER, 2010, apud SOUZA, 2017, p. 97).
Peter Singer se aproxima do utilitarismo de Jeremy Bentham, uma vez que ambos entendem que o interesse e o requisito para um ser estar na comunidade moral é a capacidade de experimentar dor, prazer ou bem-estar, cunhando uma teoria teleológica, uma vez que as ações são corretas ou incorretas de acordo com as suas consequências (REGAN, 2001, apud SANTANA, 2006, p. 71; SANTANA, 2006, p. 72).
De mais a mais, o autor faz uma importante ressalva acerca da interpretação social do princípio da igualdade: por mais que a maioria da sociedade entenda como imprescindível ser contra as arbitrariedades causadas pelas discriminações, tal entendimento não é universalizado, sendo relativizado de acordo com o caso concreto (OLIVEIRA, 2012, p. 38).
Assim, a obra traz um relevante conceito para o princípio da igual consideração de interesses, defendido pelo seu autor, de modo que deve-se considerar os interesses dos demais seres que possuam a mesma capacidade que a pessoa humana, de sentir e de sofrer, levando em consideração o sofrimento de qualquer ser, em termos de igualdade com sofrimento semelhante, dentro dos limites de comparação possíveis (SINGER, 2004, apud SILVA, 2015, p. 53).
Assevera Singer (2010, p. 14) que:
Se um ser sofre, não pode haver justificativa moral para deixar de levar em conta esse sofrimento. Não importa a natureza do ser; o princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado da mesma maneira como o são os sofrimentos semelhantes - na medida em que comparações aproximadas possam ser feitas - de qualquer outro ser.
Ultrapassa-se, portanto, a noção de proteção dos animais apenas dos maus tratos e tratamentos cruéis, passando a considerar os animais como seres sencientes, atribuindo um novo papel à sociedade: lutar pela redução do sofrimento como um todo, o que propiciará o aumento do bem-estar geral, incluindo seres humanos e animais.
De outra sorte, uma nova corrente filosófica surge com o filosofo norte-americano Tom Regan, alicerçada por novos fundamentos éticos normativos. Regan estabelece uma teoria deontológica, em que as ações são corretas ou incorretas de per si, não de acordo com as consequências que produzem (SOUZA, 2017, p. 102).
O que se depreende da análise do autor é: como os animais tem um valor intrínseco a si, todo tipo de exploração animal deve ser extinta, inclusive as pesquisas cienfícas. Não é necessário utilizar-se do modelo utilitarista para aferir o valor dos animais, bem como não é possível exigir que práticas incrustradas na sociedade sejam, de uma hora para a outra, extintas ou abandonadas (FELIPE, 2003, apud, SANTANA, 2006, p.79; PAYNE, 2002, apud SANTANA, 2006, p. 79).
A visão abolicionista entende que enquanto não houver uma alteração do paradigma estabelecido pela sociedade, em que o animal é uma propriedade do ser humano ou do Estado, eles seguirão sempre sendo materiais de suprimento das necessidades humanas ou instrumentos de produção da sociedade.
O que atrai a proteção aos animais é a condição de “sujeitos-de-uma-vida”, de modo que, mesmo havendo diferenças com as pessoas humanas, a proteção jurídica deve ser equivalente, principalmente prezando pelo direito à vida, à integridade física e à liberdade (REGAN, 2006, pp. 60-61 e 65).
Preocupando-se em delimitar os conceitos de sua teoria, Regan esclarece quem são os “sujeitos-de-uma-vida”:
Os indivíduos são sujeitos-de-uma-vida se tiverem vontades e desejos; percepção, memória e uma noção de futuro, incluindo seu próprio futuro; uma vida emocional por meio de sentimentos de prazer e dor; preferências e interesses relacionados ao próprio bem-estar; a capacidade de iniciar uma ação em busca de seus desejos e metas; uma identidade psicofísica ao longo do tempo; e um bem-estar individual no sentido de experimentar o que lhes faz bem ou mal, independentemente da sua utilidade para os outros e, logicamente, independentemente de serem objetos de interesses alheios. Aqueles que satisfizerem os critérios para serem considerados sujeito-de-uma-vida têm um valor distintivo – um valor inerente – e não podem ser vistos ou tratados como meros receptáculos (REGAN, 1983, apud SOUZA,2017, p. 105).
Não obstante, Regan critica o princípio da igual consideração de interesse, afirmando que este não assegura nenhuma garantia aos animais, bem como não assegura o fim da sua exploração. Como as escolhas são tidas como corretas ou incorretas analisando suas consequências, diversas variáveis serão consideradas na análise, inclusive o interesse de quem explora a vida animal (REGAN, 2001, apud SANTANA, 2006, pp. 80-81).
O autor cunha o seu predicado, ou seja, o fim da sua teoria: “esvaziar as jaulas, não as deixar maiores” (REGAN, 2006, p. 75). Assim, o autor afirma que não basta cessar os maus tratos ou os tratamentos cruéis, alcançando um novo patamar “humanitário” de tratamento aos animais. É necessário ir além, pondo fim a todo o complexo de exploração da vida animal.
Seguindo a teoria abolicionista, mas calcada em outras bases, Santana (2006, p.85) nos explica as ideias do autor Gary Francione:
“O status concedido aos animais como propriedade impede a aplicabilidade da prática do princípio da igual consideração de interesses, uma vez que há dificuldade em reconhecer seus interesses. Dessa forma, somente após uma mudança dessa condição do animal será viável abolir a exploração dos animais não-humanos”.
Francione avança em relação a teoria de Regan, afirmando que os animais possuem direito de não serem tratados como propriedades dos humanos, propondo a substituição do princípio da igual consideração de interesses pelo princípio do tratamento humanitário, de modo que os interesses dos seres humanos guardam preferência, desde que não causem sofrimentos desnecessários aos animais (SOUZA, 2017, p. 122). Leciona o autor:
Ainda que acreditemos que devamos preferir humanos a despeito de animais quando os interesses conflitam, a maioria de nós aceita como totalmente incontroverso que nossa utilização e tratamento dos animais são guiados por aquilo que podemos chamar de princípio do tratamento humanitário, ou a perspectiva de que, pelo fato dos animais poderem sofrer, nós temos a obrigação moral direta para com eles de não lhes infligir sofrimento desnecessário. (FRANCIONE, 2008, apud, TRINDADE, p. 3)
Ainda, Francione afirma que os seres humanos se relacionam com os animais dentro de um contexto de “esquizofrenia moral”, ou seja, entendem que é incorreto o sofrimento desnecessário, entretanto, a bem da verdade, nenhum uso de animal deveria ser considerado necessário e suportar algum tipo de sofrimento.
De acordo com o autor, esse comportamento equivocado decorre da ideia de que os animais são objetos de propriedade dos seres humanos, de modo que tal celeuma só será resolvida de uma forma: é necessário alterar o paradigma de tratamento dos animais, deixando de ser propriedade dos seres humanos para serem pessoas morais. Nesse sentido, enquanto pessoas morais, seriam titulares de interesses moralmente significativos (FRANCIONE, 2008, SOUZA, 2017, p. 124).
2.2 A nova natureza jurídica dos animais
É cediço que o conceito de animal evoluiu ao longo da história, possuindo três marcos fundamentais, quais sejam, o animal como divindade que habitava corpos humanos, o animal como ser irracional e o animal com um ser que possui a atividade mental equiparada a do ser humano (MENESES e SILVA, 2016, p. 218-234).
Um novo marco na concepção do conceito de animal é calcado na década de 1970, uma vez que o cientista Richard Ryder cunha o termo “especismo”, ou seja, a supremacia dos interesses dos seres humanos face aos interesses dos seres não-humanos, sendo essa supremacia justificada unicamente pelo pertencimento a espécies diferentes.
O biólogo Desmond Morris segue na linha de Ryder, defendendo que há um contrato inerente aos seres vivos (“contrato animal”), de modo que o respeito a este pacto é o que possibilita o equilíbrio na ocupação harmônica do mundo pelos seres vivos em geral, humanos e não-humanos (MORRIS, 1990). Entretanto, é no marco do especismo que há a violação deste contrato pelos seres humanos, uma vez que passam a considerar-se uma espécie superior.
Regan e Singer avançam nesse debate pelo fim da exploração animal e na defesa dos valores morais dos seres não-humanos, uma vez que estes possuem, assim como os seres humanos, complexidades psicológicas.
Já na contemporaneidade, é pacífico na biologia que os animais sofrem dor física, além de lidarem com a “distresse”, que é a capacidade de experimentar sensações que derivam de emoções (ROLLIN, 2019).
Haydée Fernanda Cardoso se preocupa com o modo que os animais são tratados pelo ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, na opinião da autora,
Não se pode ver como coisa seres viventes, pois tais elementos mostram a existência de vida não apenas no plano moral e psíquico, mas também biológico, mecânico, como podem alguns preferir, e vice-versa. O conhecimento jurídico-dogmático hoje se encontra ultrapassado, não apenas em função de animais considerados inteligentes, mas sim em função de todos os seres sencientes, capazes de sentir, cada um a seu modo (CARDOSO, 2007).
Em que pese todo o avanço histórico na defesa dos direitos dos animais, trata-se de uma temática estudada ainda por vias reflexas, seja na tutela do meio ambiente, seja na constitucionalização do direito civil. Não há, até o momento, a elaboração de uma legislação que organize normas protetivas de direitos dos animais de forma direta, em que pese sua tutela seja feita em alguns outros diplomas.
Paulatinamente, o direito dos animais vem evoluindo na legislação brasileira. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 de 2016, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja pauta era a vaquejada, o Ministro Luis Roberto Barroso, asseverou o valor moral dos animais sencientes, bem como a autonomia dos direitos dos animais face ao direito ambiental. Vejamos:
A vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie (ADI 4983, STF, grifos nossos).
É possível depreender deste trecho que a Constituição Federal de 1988 conferiu o direito à existência digna para os animais sencientes também, de modo que sua existência não está condicionada à proteção e preservação do meio ambiente, mas a si próprio. Nesse sentido, a vedação do tratamento cruel aos animais seria uma cláusula pétrea implícita.
Diferentemente é o tratamento dado aos pets, ou seja, animais domésticos, mormente pela proximidade e vivência destes com seus tutores, ampliando o espectro de proteção, tornando a norma mais potente e eficaz.
Em que pese na legislação brasileira não estarem positivados os direitos dos animais, no cenário internacional a perspectiva é outra. De iniciativa do ativista Georges Heuse, foi proclamada pela UNESCO, em 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que conta com 14 artigos.
Em que pese o Brasil não estar juridicamente vinculado a esta declaração, de modo que não há força coercitiva e obrigações estabelecidas ao país, trata-se de um instrumento que deseja harmonizar e uniformizar os parâmetros mínimos dos países integrantes da Organização das Nações Unidas no trato com os animais. Assim, nos 14 artigos, a declaração traça uma série de diretrizes que delineiam a postura adequada aos países signatários da ONU no que diz respeito aos direitos dos animais.
Dentro dos pontos abarcados pela resolução, podemos destacar: a importância da promoção do debate sobre a causa animal, pois somente dessa forma a desinformação será vencida e aumentar-se-á a efetivação da causa animal; o desprezo dos tradicionalistas inviabiliza e estagna a evolução no debate da causa animal, além de gerar impactos negativos a qualidade de vida e aos direitos dos animais; e a importância de se assegurar o direito à existência, à preservação da vida e dos direitos dos animais.
Ressalta-se, ainda, que apesar da declaração abranger o direitos de todos os animais, esta confere proteção especial aos animais domésticos, com destaque para a preservação da vida digna dos pets. Vejamos:
Art. 6º - 1. Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade natural.
2. O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.
Art. 14º - 1. Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar presentados a nível governamental.
2. Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem
Importante previsão consta do art. 14, 2, da Declaração, uma vez que traz, sem espaço para dúvidas, uma equiparação dos direitos dos animais aos direitos dos homens, atraindo para si a fundamentalidade desses direitos.
Desse artigo é possível extrair a possibilidade de aplicar-se normas em geral, especialmente as civilistas, aos animais, trazendo uma nova perspectiva à sociedade contemporânea e superando o atraso da lei em relação às novas formas de família.
3.AS FAMÍLIAS MULTIESPÉCIES E A DIMENSÃO ECOLÓGICA DA DIGNIDADE HUMANA
A Constituição Federal de 1988 trouxe um catálogo aberto de proteção da família, eis que o seu vetor primordial é a dignidade da pessoa humana, estampada no art. 1º, III, da CF/88. Houve uma preocupação em tutelar não formas de se relacionar, mas os indivíduos que fazem parte dessa relação.
Partindo desse pressuposto, é possível averiguar a incorporação, pela Constituição Federal de 1988, do conceito de família eudemonista, ou seja, aquela que valoriza a busca do sujeito a sua felicidade, tendo como predicado o amor e a solidariedade, de modo que o afeto é o grande fundados das relações familiares, visando propiciar a felicidade individual dos seus integrantes (DIAS, 2015).
Tal incorporação fica mais nítida com o alcance da proteção jurídica conferida pela Constituição Federal de 1988, no seu art. 226, §8º:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações (BRASIL, 1988).
(grifo nosso)
A família multiespécie nasce no marco das novas formas de família tuteladas pela Constituição Federal de 1988, sendo uma família constituída pelos donos e seus animais de estimação, que são ligados pelo amor e pelo afeto (DIAS, 2015).
Em que pese, historicamente, os animais servirem de auxílio para o desenvolvimento e o progresso da humanidade, seja para a alimentação do homem, seja utilizando da sua força física para suprir necessidades da sociedade, há uma virada histórica que redimensiona o papel dos animais na sociedade contemporânea.
O Brasil é, de acordo com a ABINPET – Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação – com base no IBGE, o 2º maior país do mundo em população de cães e gatos. Se os laços de afeto entre seres humanos e animais estão cava vez mais avançados e reconhecidos no campo fático, ainda que com a existência de norma positivada sobre o tema, é necessária a adequação da lei às famílias multiespécies.
Diante da omissão da lei, é da jurisprudência pátria que tem saído decisões importantes e paradigmáticas na defesa dos direitos dos animais.
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça assegurou a uma das partes, após a dissolução da união estável, o direito de visitação à cadela do até então casal, que foi adquirida na constância do relacionamento.
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que os condomínios residenciais não podem proibir genericamente a guarda ou a criação de animais de qualquer espécie. O Recurso Especial 1783076 ganhou vida através da indignação de uma moradora um condomínio residencial que fora proibida de ter sua gata de estimação sob sua companhia dentro de sua casa, ainda que o animal não gerasse qualquer perturbação aos vizinhos.
Ressalta-se que, em que pese a tutela do direito de ter consigo o seu pet, um dos argumentos utilizados pela autora foi a violação do seu direito de propriedade, ou seja, atraindo a qualidade de bem semovente para o animal ao invés de tutelá-lo como sujeito de direitos.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que a vedação genérica, não embasada em qualquer justificativa, não é razoável, uma vez que os pets, prima facie, não constituem risco à incolumidade e à tranquilidade da vizinhança. Assim, é necessária uma justa causa concreta para afastar o direito de convivência da tutora com o seu animal.
Entretanto, nem sempre a jurisprudência é inclusiva. A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça rejeitou a fixação de alimentos para um animal após a separação do casal. De acordo com o Ministro Marco Aurélio Bellizze, voto vencedor, “o fato de o animal de estimação ter sido adquirido na constância da união estável não pode representar a consolidação de um vínculo obrigacional indissolúvel entre os companheiros (com infindáveis litígios) ou entre um deles e o pet, sendo conferida às partes promoverem a acomodação da titularidade dos animais de estimação, da forma como melhor lhes for conveniente”[1].
Assim, os modelos de família ganham uma nova forma, aquela que abarca a relação entre espécies distintas, seres humanos e animais, numa relação que visa superar o paradigma do especismo. Se os laços de afeto são a base da família contemporânea, este deve ser o mote para definir se determinado agrupamento é uma família ou não, ganhando espaço o sentimento dos tutores para com seus pets.
Partindo desse pressuposto, novas realidades tem sido traçadas nas famílias brasileiras, como a possibilidade de hospedar seus pets em hotéis específicos para animais, a criação de redes sociais destinadas a eles, o registro dos animais de estimação em cartório através de uma declaração de guarda, entre outros.
Trata-se da tutela jurídica conferida pelo princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade, uma vez que as relações familiares demandam uma especial proteção a fim de possibilitar o pleno desenvolvimento dos seres no seu âmbito mais protegido: a família em sua concepção mais ampla e inclusiva.
O objetivo deste trabalho monográfico foi analisar a evolução histórica do conceito de família, os novos modelos de parentalidade e filiação, por fim, os desafios que as famílias contemporâneas, aquelas calcadas nos novos modelos familiares, terão frente ao ordenamento jurídico brasileiro para a tutela plena dos seus direitos.
A família é o berço da sociedade, sendo a mais antiga unidade social da história, sofrendo modulações temporais, sociais, culturais e econômicas ao longo dos tempos, o que acarretou em modificações e adequações que o direito tem tentado se encarregar de acompanhar e tutelar.
As famílias contemporâneas possuem uma nova estrutura e são baseadas em novos princípios, objetivando a quebra de dogmas estrutural e historicamente consolidados em nossa sociedade, visando principalmente a dignidade da pessoa humana, a afetividade, da busca da felicidade e na função social da família. Estas precisam ser, principalmente, o seio de proteção e desenvolvimento pleno dos indivíduos, onde estes possam encontrar proteção, amparo e afeto, independente da origem das mesmas.
No Estado Democrático de Direito, o Estado tem o papel de tutelar os direitos que decorrem das mais diversas estruturas e composições familiares, ainda que não decorram expressamente do ordenamento jurídico vigente. Tal função tem como objetivo o desenvolvimento pleno de todos os tipos de famílias e dos indivíduos que a compõe.
A Constituição Federal de 1988 preocupou-se em reconhecer, tutelar e legitimar os mais diversos e, para aquela época, novos modelos de família, rompendo com a ideia do Código Civil de 1916 de que as famílias se originavam pelo matrimônio. O direito das famílias passa a ter um caráter mais dinâmico e preocupado com a evolução social, a fim de tutelar seus novos modelos. A constitucionalização do direito civil cumpre papel importante ao conferir caráter publicista as normas de direito de família que, até então, tinham caráter eminentemente privado.
O conceito de filiação e sua decorrência fora ampliado com a elevação da tutela do afeto para um princípio constitucional., superando o paradigma biológico de filiação
Trata-se de ponto ainda controverso, mas que, paulatinamente, tem sua tutela cada vez mais ampliada pelo Estado e pelo direito,. Se por um lado as relações sociais tem avançado em um ritmo acelerado, o legislativo não tem conseguido acompanhar esta evolução e propor as inovações legislativas que seriam necessárias para a proteção destas famílias, causando, muitas vezes, a intervenção do poder judiciário para assegurar estes direitos.
Como resultado da realidade social que está posta, a posse do estado de filho passa a ser um elemento importante na caracterização das novas formas de parentalidade, uma vez que este traduz a situação de fato que está consolidada para a sociedade e para aquela determinada família.
É necessário, ainda, definir qual o limiar de intervenção do Estado na autonomia privada concernente as entidades familiares. A intervenção estatal no direito das famílias deve ser primordialmente para assegurar direitos, consolidando o papel do Estado como um assegurador, um protetor do espaço fundante e mais valoroso da sociedade, mas jamais para estabelecer tratamentos diferenciados ou restringir direitos.
O reconhecimento dos direitos dos animais são instrumentos primordiais para a manutenção da família como a principal unidade da sociedade, de maneira que o afeto deve ser priorizado e positivado, não podendo ser violado por ninguém, inclusive pelo Estado.
O direito deve se reinventar diariamente para adaptar-se as transformações sociais, avançando na tutela de temas atuais e caros à nossa sociedade, ainda não consolidados, mas reforça o caráter vanguardista do direito, que tem como norte a nossa Lei Maior, seus princípios e valores constitucionais.
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Advogada. Graduada em Direito na Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia/MG. Especialista em Advocacia Cível – Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Especialista em Direito Público – Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Especialista em Direito de Família e Sucessões – Escola Brasileira de Direito (EBRADI) . Pós-Graduanda em Tribunal do Júri e Execução Penal – LEGALE. Pós-Graduanda em Direito Público – LEGALE. Aprovada no II Concurso para Defensor Público Substituto do Estado do Amapá. Aprovada no V Concurso para Defensor Público Substituto do Estado de Rondônia. Aprovada no VI Concurso para Defensor Público Substituto do Estado do Acre. Conciliadora pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Bolsista FAPEMIG 2017/2018 – Iniciação Científica em Direito do Trabalho. Tema: O teletrabalho e o trabalho intermitente à luz da reforma trabalhista. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARAH, Letícia. Rompendo o paradigma da posse: os animais no marco da dimensão ecológica da dignidade humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2024, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66530/rompendo-o-paradigma-da-posse-os-animais-no-marco-da-dimenso-ecolgica-da-dignidade-humana. Acesso em: 21 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
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