Sumário: 1.Histórico da questão – 2. Nossa Lei Cambiária – 3. Tradução mal feita – 4. A demagogia do novo código proposto – 5. A lição da Itália – 6. Luta antiga em prol do Direito Cambiário - 7. Transcrição do livro Títulos de Crédito: Dualidade legislativa – 8. Transcrição do livro Títulos de Crédito: a eficiência de nossa lei
1. Histórico da questão
Desde há muitos anos o Brasil está reclamando o aprimoramento do Direito Cambiário, ou o Direito dos Títulos de Crédito, especificamente de nossa Lei Cambiária, a lei básica do sistema. É o Decreto 57.663/66 que promulgou em nosso país a Convenção de Genebra sobre Letra de Câmbio de Nota Promissória. Em consequência das confusões surgidas tivemos que manter em vigor uma lei antiga, o Decreto 2.044, de 2008. Esta lei vigora no Brasil por mais de um século, convivendo com outra de 1966, com quase meio século. Esta convivência já é indigesta: uma lei de um século, combinada com outra de meio século, com disposições contraditórias, embora regendo a mesma matéria. Duas leis regulamentando a mesma matéria provocam outras polêmicas: qual deve predominar? A de um século ou a de meio século?
Nossa jurisprudência decidiu que a legislação estrangeira não pode predominar sobre a lei nacional, e, portanto, deve vigorar o Decreto 2044/1908 e no que ela for omissa será aplicado o Decreto 55.663/66, ou seja, a Convenção de Genebra. Acontece, porém, que o Decreto 57.663/66 é uma lei nacional e não internacional, embora tenha promulgado uma convenção internacional, tanto que foi promulgado pelo Presidente da República do Brasil, o Marechal Castelo Branco, em 24.1.1966. A Convenção de Genebra sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória foi realizada em 1930 com a participação de muitos países, entre eles o Brasil. Em 1942 o Brasil ratificou essa convenção, de tal forma que ela vigoraria em nosso pais.
2. Nossa Lei Cambiária
A Convenção de Genebra é a nossa Lei Cambiária, a lei que regulamenta os títulos de crédito, partindo da Letra de Câmbio de da Nota Promissória. Uma convenção internacional pode transformar-se em lei nacional, desde que siga as normas estabelecidas pelo Brasil para a oficialização. Segundo essas normas, a convenção internacional deve ser aprovada pelo Poder Legislativo, ou seja, pelo Congresso Nacional e, em seguida, deve ser promulgada por um decreto do Poder Executivo. Foi o que aconteceu com a Convenção de Genebra sobre Letra de Câmbio e Nota Promissória: ela foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 54/64 e foi promulgada pelo Poder Executivo por meio do Decreto 57.663/66. Trata-se então de lei nacional.
Não concordamos também com a afirmação de que a lei estrangeira não pode sobrepor-se à lei nacional, dando a impressão de que a soberania nacional esteja sendo arranhada. A lei estrangeira, para ser aplicada no Brasil, precisa de duas leis: o Decreto Legislativo e o Decreto Executivo. Não é aplicada a esmo, mas passa pelo crivo de nossas autoridades, para transformar-se em lei nacional. O simples fato de o Brasil pegar uma lei estrangeira, submetê-la a análise e fazê-la passar por trâmites internos, para transformá-la em lei nacional, seguindo normas por ele impostas, já é um ato de soberania. Destarte, aplicar no Brasil a Convenção de Genebra é aplicar a lei nacional.
A lei estrangeira transformada em lei nacional deve prevalecer sobre a lei brasileira. Ela representa um compromisso do Brasil perante a comunidade internacional e se todos devem obedecer a uma convenção internacional, também o Brasil segue a regra. Entretanto, em certos casos confusos, pode ser aplicada, subsidiariamente, a lei brasileira. Por essa razão, o Decreto 57.663/66 deve sobrepor-se ao Decreto 2.048/1908, chamada também de Lei Saraiva, em homenagem ao seu autor.
3. Tradução mal feita da Convenção de Genebra
Os equívocos de nossa Lei Cambiária não decorrem de razões doutrinárias, mas da tradução mal feita do texto da Convenção de Genebra. As convenções realizadas em Genebra são elaboradas em francês, o idioma dessa cidade suíça. Além disso, o idioma francês tem sido o idioma da diplomacia e do Direito Internacional. O Brasil deveria ter elaborado a tradução do texto da convenção para transformá-lo em lei, mas não o fez, aceitando a tradução feita por um diplomata suíço que trabalhara em Portugal e por isso tinha a veleidade de falar português, o que representou verdadeiro desastre.
Portugal também aceitou esse texto mal traduzido em Genebra, incorporando-o no seu Código Comercial. A diferença notada é que eles não utilizam o termo Nota Promissória, chamando o título de Livrança. No mais, parece que tradução horrível permaneceu. Não se pode dizer que o texto traduzido siga o falar corriqueiro em Portugal, pois os juristas portugueses apontaram os inúmeros equívocos da tradução que não coincidia com o idioma falado em Portugal e muito menos no Brasil.
Traduzir textos jurídicos é tarefa delicada e exige conhecimentos profundos dos dois idiomas e dos dois sistemas jurídicos, porquanto há termos em um idioma que tem significado diferente em outro e também institutos jurídicos. Nosso tradutor de Genebra incorreu nesse desconhecimento, baseando-se em dicionários e mesmo com dicionários às mãos foi dominado pela confusão de fonemas. Vamos citar alguns exemplos. Ao falar do aval a lei diz no artigo 32:
O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.
O texto original francês tem a expressão donneur de l´aval, o que seria para nós o avalista, mas a tradução foi ao pé da letra: dador do aval. Ninguém viu até agora um jurista utilizar essa expressão que até soa mal. Para quem dá uma coisa, o termo jurídico é doador, quem faz a doação; nunca se viu dador.
Além do mais, usa o termo afiançada em lugar de avalizada. Há muita diferença entre aval e fiança, termo não utilizado no Direito Cambiário, por não ser possível dar fiança num título de crédito. Veem-se então duas impropriedades numa só frase.
Examinemos o artigo lº da Convenção de Genebra, com seus quatro primeiros incisos:
A letra contém:
1. A palavra “letra” inserta no próprio texto do título e expresso na língua empregada para a redação desse título;
2. O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;
3. O nome daquele que deve pagar (sacado);
4. A época do pagamento.
1. A falha inicial está em dizer apenas “letra” quando deveria ser letra de câmbio. Existem vários tipos de letra que não são letras de câmbio.
2. Não é mandato, mas mandado, ou seja, uma ordem de pagamento; o termo é oriundo de mandar. Se formos interpretar ao pé da letra, o sacado seria um mandatário do sacador, o que será um absurdo. O idioma francês é muito pobre em relação ao português, mormente o português do Brasil. A palavra mandat, por exemplo, significa mandado ou mandato. O tradutor foi pelo som: como mandat termina em t, foi traduzido por mandato, quando deveria ser mandado.
O tradutor francês ia atrás do som: l´enfant est três joli, ele traduziria por: o elefante é de tijolinho; le lion est le roi des animaux, seria traduzido por: o leão de urrar desanimou.
3. Deveria só dizer sacado (as leis não costumam explicar os termos).
4. Não é época certa, mas o dia certo do pagamento. Época em significado vago, como por exemplo, a época do verão ou do inverno, a época antiga, a época medieval. O vencimento da Letra de Câmbio deve ser um dia certo, determinado, um dia fixo.
O artigo 10 fala em cometer falta grave, tradução de faute grave. Esta expressão é utilizada no Direito do Trabalho, não no Direito Cambiário. Faute significa falta, falha, crime, culpa, erro. Nesse caso, deveria dizer: culpa grave, erro grave, ou falha grave.
5. 4. A demagogia do Código Comercial proposto
Em julho de 2011 houve um fato esquisito e inexplicável: foi apresentado no Congresso Nacional, pelo Ministro da Justiça, por um deputado de seu partido, um projeto de lei querendo estabelecer um novo Código Comercial no Brasil, substituindo o Código Comercial de 2002, mas que os maiorais do novo código dizem ser de 1850. De bate pronto, o Ministro da Justiça anuncia seu apoio ao novo código, prometendo sua sanção ainda no ano de 2012; empreende ampla campanha de seminários e palestras por todo o Brasil, patrocinada pelo Ministério da Justiça. Anunciam a intenção de substituir o Código Comercial, que eles dizem ser de 1850, e substituí-lo pelo de 2012, mas dinâmico e atualizado.
Entretanto, nenhuma contribuição se vê no aprimoramento do Direito Empresarial no novo Código Comercial proposto pela ribalta do Ministro da Justiça. Vários artigos se notaram nos órgãos de comunicação, ao que parece, patrocinados pelo Ministro da Justiça, com a participação de várias entidades, como a OAB e a Associação dos Advogados de São Paulo, de um portal da Internet, além dos mestres e juristas já integrados na campanha, que se revela forte e feroz contra o Direito Empresarial e o Código Comercial de 2002, que eles dizem ser de 1850.
Nenhum dos iconoclastas de nosso Direito Empresarial e de nosso Código Civil jamais levantou essas imprecações contra eles. Nada propuseram para que fosse modernizado nosso direito. Não apontaram qualquer defeito na legislação surgida em 2002 e nos anos seguintes. Inopinadamente, se arremetem contra o direito vigente no Brasil num monte de impropérios sem qualquer justificativa. Bastaria citar um insulto ao Código Civil de 2002, para se ter ideia do furor da campanha difamatória contra ele:
Melhor teria sido evitar no Brasil que se copiasse, e mal, o códice civile de 1942, a que se seguiu a aprovação de um monstrengo jurídico em 2002. Mas agora Inês é morta.
5.A lição da Itália
No mundo moderno tornou-se imprescindível o estudo do Direito Comparado, pelo qual se examina o direito de um país em comparação com o de outro, visando a uma troca de sugestões para o aproveitamento das instituições criadas por um país, para o de outro. O Brasil pode desenvolver bastante o Direito Empresarial, assimilando o que os outros países criaram de bom. Foi o que aconteceu com a reformulação do Direito Falimentar, com a Lei de Recuperação de Empresas, de 2005, aproveitando as instituições criadas pela França. Por outro, a França cogita a reformulação de sua legislação falimentar, baseada na legislação brasileira.
No que tange ao Direito Cambiário o novo Código Comercial proposto nada contribui para a melhoria de nosso sistema jurídico, e, muito ao contrário, vai armar muita confusão. Muitas normas de Direito Cambiário constam do Projeto de Lei 1.572/2011, apresentado no Congresso Nacional pelo Deputado Vicente Candido, do partido do Ministro da Justiça. São normas repetitivas de outras leis, de tal modo que “chove no molhado”. Quer regulamentar os títulos de crédito como a Letra de Câmbio, a Nota Promissória e a Duplicata, quando estas já estão regulamentadas em lei própria.
Aproveitando, porém, o que o Direito Comparado nos oferece, no que toca ao Direito Cambiário, podemos nos basear no Regio Decreto 1.345, de 21.9.33 e no Regio Decreto 1.669, de 14.12.33 da Itália, de excelente valor doutrinário e regulamentando tanto a Letra de Câmbio como a Nota Promissória, e estendendo sua aplicação aos demais títulos de crédito. A simples tradução dessas leis, com pequenas adaptações gramaticais resolveria nossos problemas de Direito Cambiário e o colocaria em pé de igualdade com o dos demais países juridicamente desenvolvidos.
Não é submissão ao direito estrangeiro, pois a lei italiana também não é original, mas totalmente calcada na Convenção de Genebra. Seguindo o ditado chinês de que mais vale acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão, está aqui a forma ideal de solução desse problema, ao invés de amaldiçoar nosso Direito Empresarial.
Outra solução existe: seria reformular a Convenção de Genebra, que é de 1930, portanto, com mais de 80 anos. Esta solução, porém, não é tão simples. O Brasil teria que denunciar a Convenção de Genebra, ou pedir nova convenção, convocando todos os países para participar dela. Dependeria da iniciativa da ONU ou de outro organismo internacional. E, então, para que apelar pela solução mais difícil, se a mais fácil está em nossas mãos?
6.Luta antiga em prol do Direito Cambiário
Quando o autor deste artigo participava do curso de pós-graduação na Universidade de São Paulo, foi formado um grupo de estudo do novo Código Civil, que estava sendo discutido no Congresso Nacional, sob a coordenação do Professor Mauro Brandão Lopes, um apaixonado pelo Direito Cambiário. Foram propostas muitas inserções e a adoção de nova Lei Cambiária, que substituísse o Decreto 2.044/1908, já que o Decreto 57.663/66 que adotou a Convenção de Genebra não pode ser revogado facilmente. Foi apresentado inclusive o projeto da nova lei, calcada na lei italiana. A maioria de nossas sugestões não prosperaram, mas graças a ação de nosso mestre Sylvio Marcondes, um dos membros da comissão elaboradora do Código Civil, foi incluído o Título VIII, denominado DOS TÍTULOS DE CRÉDITO, envolvendo os artigos 887 a 926. Foi um ótimo passo para minorar os efeitos danosos da horrível tradução da Convenção de Genebra.
Muitos juristas apontaram a necessidade de modificações e a adoção da nossa Lei Cambiária. Várias obras foram publicadas, apontando esses pontos básicos. O autor deste artigo teve publicado pela Ícone Editora uma obra denominada TÍTULOS DE CRÉDITO, na qual foi comentado e exposto amplamente o problema da nossa legislação cambiária, que é bem rica, com muitos títulos de crédito criados, como por exemplo, a duplicata, título de criação do gênio jurídico brasileiro. Túlio Ascarelli, o extraordinário comercialista italiano que viveu vários anos no Brasil, ao voltar para a Europa, recomendou aos europeus adotarem essa lei. Por esta razão, julgamos conveniente transcrever a passagem dessa obra, que permanece atual apesar de vinte anos da primeira edição.
7. Dualidade legislativa
Transcrição de nossa obra Títulos de Crédito
O Direito Cambiário brasileiro encontra-se em situação insegura e maleável, repousando na doutrina estrangeira dos títulos de crédito e numa jurisprudência farta e conflitante. Quando o direito se basear na jurisprudência e tomá-la como fonte sugestiva, é porque a lei é omissa, falha ou obscura. Temos realmente vasta legislação, regulamentando cada título de crédito componente do cipoal cambiário. A lei primordial é a Convenção de Genebra, que regulamentou a letra de câmbio e a nota promissória, transformada em lei nacional pelo Decreto Legislativo 54/64 e regulamentada pelo Decreto 57.663/66. As regras que estabeleceu para a letra de câmbio e a nota promissória são aplicáveis aos demais títulos de crédito, em função da analogia.
Não temos uma regulamentação geral para os títulos de crédito, o que nos obriga a considerar as normas sobre a letra de câmbio como normas gerais. Temos, por conseguinte, um direito omisso e obscuro.
Trazia o nosso Código Comercial, de 1850, a regulamentação geral dos títulos de crédito, nos arts. 354 a 427, em título denominado “Das Letras, Notas Promissórias e Créditos Mercantis”. Entretanto, surgiu a primeira Lei Cambiária no Brasil, graças ao Decreto 2.044, de l908, também conhecido por Lei Saraiva, tomando o nome do jurista que a elaborou. Com mais de 100 anos de vigência, a Lei Saraiva provou sua eficiência, deixando regulamentada a questão de forma clara e simples.
Como a letra de câmbio e a nota promissória eram títulos de aplicação universal e muitas vezes percorriam países, procuraram vários países estabelecer uma lei uniforme para disciplinar esses títulos. Para tanto, reuniram-se na cidade de Genebra (Suíça), em l930, ficando estabelecida uma convenção que vingou, pois quase todos os países foram pouco a pouco aderindo. Surgiu então, com todo vigor, uma lei aceita por quase todos os países, que ficou conhecida como Convenção de Genebra, ou LUG (Lei Uniforme de Genebra).
O Brasil comprometeu-se a adotar internacionalmente a LUG, como também transformá-la em lei interna. O processo legislativo para a transformação de um tratado internacional em lei interna consta de dois atos: aprovação pelo Congresso Nacional por um decreto legislativo e sua promulgação por um decreto do Poder Executivo. A aprovação da Convenção de Genebra (convenção e tratado têm o mesmo sentido) deu-se pelo Decreto Legislativo 54/64 e foi ela promulgada pelo Decreto 57.663/66 do Poder Executivo. A Convenção de Genebra passou então a ser a lei nacional, que regulamenta a letra de câmbio e a nota promissória, tendo inspirado também as leis que disciplinaram os demais títulos.
Uma dúvida, entretanto, surgiu e até agora não foi dirimida, havendo hoje duas leis regulamentando o mesmo assunto, tendo a maioria dos artigos iguais e alguns conflitantes. É nosso parecer que a Convenção de Genebra revogou a Lei Saraiva, baseando-se no que dispõe o § 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil:
“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível, ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
É o que acontece com a Convenção de Genebra, que regulou inteiramente a matéria de que tratava a Lei Saraiva, isto é, a letra de câmbio e a nota promissória. A Convenção de Genebra é posterior à Lei Saraiva, o que nos leva a concluir que esta última foi revogada. Assim não entende a justiça brasileira, pois a Lei Saraiva (o Decreto 2.044/08) é ainda muito invocada pelos juízes do Brasil. Basta ainda examinar o Código Comercial: todos eles trazem as duas leis; as duas, por consequência, estão em vigor. A princípio, imaginava-se que a Convenção de Genebra não estava em vigor, enquanto a Lei Saraiva não fosse revogada. Consultado a este respeito, o Procurador Geral da República elaborou importante parecer, dizendo que a Convenção de Genebra estava em vigor.
Como as dúvidas permanecessem, houve vários recursos ao Supremo Tribunal Federal, esperando que o Pretório Excelso declarasse revogada a Lei Saraiva. Este, todavia, saiu pela tangente, declarando apenas que estava em vigor no Brasil a Convenção de Genebra. No caso de conflito entre ambas, qual deverá prevalecer? Por exemplo, a prescrição da letra de câmbio e da nota promissória se dá, segundo a lei Saraiva, em cinco anos; segundo a LUG, em três anos. Estamos convictos de que deva prevalecer a LUG, por ser a lei posterior e porque uma convenção internacional deve ter maior força do que uma lei interna.
A solução melhor será a elaboração de uma nova lei interna, baseada na Convenção de Genebra, mas amoldada às nossas conveniências. Foi o que aconteceu com a Lei do Cheque. Conforme veremos no estudo específico desse título de crédito, havia uma lei antiga regulamentando-o. Houve depois a Convenção de Genebra, estabelecendo a LUG para o cheque, passando a haver duas leis sobre o mesmo assunto. Em l985, porém, foi promulgada nova lei regulamentadora do cheque, baseada na Convenção de Genebra. A nova lei revogou a antiga e hoje temos, para o cheque, uma lei moderna, efetiva e clara, fazendo-nos esquecer a LUG sobre o cheque, que permanece em vigor, mas não conflita com nossa lei específica.
8. A eficiência da nossa lei
Transcrição de nossa obra Títulos de Crédito
Quanto à letra de câmbio e à nota promissória, as duas leis são deficientes. A Lei Saraiva é de 1908 e deveria ser mais minuciosa. A Convenção de Genebra é um monstrengo, eivada de falhas, não pela elaboração, mas pela tradução feita para o nosso idioma. Foi ela redigida em francês, idioma predominante em Genebra, tendo sido traduzida por um cidadão suíço que trabalhara no consulado da Suíça em Lisboa. Por ter residido vários anos em Portugal, tinha a veleidade de dominar o idioma português e aceitou o encargo de traduzir a Convenção de Genebra do francês para o nosso idioma. Portugal e Brasil aceitaram essa tradução, que foi inserida no Código Comercial português, com pouquíssimas diferenças com a nossa lei, como por exemplo, o nome da nota promissória, que eles não utilizam, adotando a expressão “livrança”.
A tradução pode ser qualificada como horrível; é eivada de falhas, de expressões estranhas à nossa linguagem costumeira. Em vez de avalista, por exemplo, usa a expressão “dador do aval”, inaceitável pela nossa linguagem. Vários juristas portugueses afirmam que a linguagem da tradução é inadequada até mesmo em Portugal e nas antigas províncias ultramarinas da África. Para se ter ideia da deficiência ideológica de nossa lei, bastaria referir-se logo ao art. 1º:
“A letra contém:
l. a palavra “letra” inserta no próprio texto do título expressa na língua empregada para a redação desse título;
2. o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;
9. a assinatura de quem passa a letra (sacador).
A mais grave falha do primeiro artigo está no item 2, quando diz que a letra deverá conter um “mandato”. No idioma francês, a palavra mandat pode significar “mandato” e “mandado”, como mandat d’ amener (mandado de citação). Em português, porém, as duas palavras têm sentido jurídico bem diferente. Se fosse traduzido o termo por “mandado” teria um sentido até aceitável, nunca, porém, como foi feito. Se formos interpretar nossa lei de forma literal chegaríamos à absurda conclusão de que o sacado é um mandatário do sacador. A expressão certa seria “ordem de pagamento”.
Além dessa aberração, deverá constar no texto “letra de câmbio” e não apenas “letra”, como diz a tradução. Inadequado também julgamos dizer que a letra de câmbio seja “passada” em vez de “sacada” ou “criada”. Vemos então que o art. 1º de nossa antiga lei, o Decreto 2.044/08 (Lei Saraiva) é muito mais claro, preciso e perfeito do que a lei importada: utiliza a expressão correta “letra de câmbio”, como ainda “sacador”, que a Convenção de Genebra cita como “passador”. No item II, a Lei Saraiva traz a expressão bem clara e correta; diz que a letra de câmbio deve conter: “a soma de dinheiro a pagar e a espécie de moeda”.
Não param por aí as incoerências de nosso básico diploma cambiário. Vejamos o que diz o art. 32, pertencente ao capítulo referente ao aval:
“O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.
Se não bastasse o emprego da medonha expressão “dador do aval”, fala na pessoa “afiançada”, armando a confusão entre aval e fiança. Não há fiança num título de crédito e, por isso, não pode haver pessoa afiançada. Há muitas e marcantes diferenças entre aval e fiança, tornando-se injustificável o termo utilizado. Além disso, ao falar em “pessoa por ele afiançada”, dá a impressão de que o aval se refere a uma certa e determinada pessoa, quando o aval se aplica a todas as pessoas do título, ou seja, o aval é dado ao título.
Parece-nos salutar a posição de nosso Judiciário em não considerar a Lei Saraiva revogada, que suprirá as deficiências da nova lei. Voltamos, porém, a repetir que o caminho certo para solucionar a confusão reinante é a elaboração de uma nova lei cambiária, que seja clara, pormenorizada e eficiente, adaptada ao direito brasileiro atual, malgrado seu amoldamento à Convenção de Genebra, por ser compromisso internacional do Brasil. Não basta criticar, mas propor soluções. Um deputado paulista apresentou no Congresso Nacional, para aprovação, uma nova lei cambiária, elaborada pelo autor deste compêndio, calcada na lei cambiária italiana, o Régio Decreto l.669/33, com pequenas alterações.
Bacharel, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo - Advogado e professor de direito - Autor das obras de Direito Internacional: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO e DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO, publicados pela EDITORA ÍCONE. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROQUE, Sebastião José. O Direito Cambiário Brasileiro pode ser atualizado sem novo Código Comercial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 fev 2012, 11:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/27969/o-direito-cambiario-brasileiro-pode-ser-atualizado-sem-novo-codigo-comercial. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
Por: Eduarda Vitorino Ferreira Costa
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