PALAVRAS-CHAVE: Ação Popular, Cidadania, Democracia, Estado, Legitimidade.
ABSTRACT: This study is due to promote the scientific discussion about the legal requirement of having electoral register in order to initiate a Popular Action, due to the teleological meaning of the expression “citizenship prove” included on the § 3°, article 1° from the Popular Action Law (Law nº 4.717/65). It’s enquired, due to this requirement, if only the act of voting is capable of satisfying the comprehension of what is citizenship in a Democratic State of Law. After researching it’s been verified that there’s unanimity, with very rare exceptions, on enlightening that citizen is the one who is able to vote and be voted. However, in conclusion, based on the modern thought of Rosemiro Pereira Leal and Jürgen Habermas, citizenship can be defined as ‘the effective self involvement, through the discursive way and the democratic theory brought close by Law, having the Constitution from 1988 as medium able to make people capable of comprehending that through the implement of the fundamental rights’.
KEY WORDS: Popular Action, Citzenship, Democracy, State, Legitimacy.
A ciência, como saber organizado que aperfeiçoa a técnica (LEAL, 2004), é a base teórica visada para o desenvolvimento do tema. Contudo, a seguir serão apresentadas críticas voltadas à exigência do título de eleitor como prova de cidadania para que seja instaurado o procedimento da ação popular (§ 3º do artigo 1º da Lei 4.717/65), apontando a ausência de conteúdo na estrutura do discurso do conhecimento (LEAL, 2004) dos autores que defendem a exigência mencionada, ou, lado outro, limitam-se a aceita-la.
Modernamente, além dos requisitos de validade e eficácia, os institutos do Direito reclamam legitimidade. Em uma sociedade que se pretenda democrática, a soberania popular é compreendida tendo o destinatário como co-autor da norma (HABERMAS, 2004). O cidadão deve ter participação efetiva em todos os procedimentos (legislativo, administrativo ou judiciário), balizados pelo devido processo constitucional e não apenas pelo voto. Com isto, é possível compreender que é esta participação que concede a legitimidade requerida por um Estado de Direito Democrático.
Para facilitar o entendimento da exposição esclarece-se que Estado será utilizado nesta pesquisa sempre se referindo à situação jurídica do indivíduo em relação ao Estado Político e seus elementos constitutivos essenciais (povo, território e governo), compreendendo principalmente a cidadania e, de modo geral a sociedade política juridicamente organizada. O Direito, ao seu turno, corresponde à ordem jurídica que regula as relações entre os elementos constitutivos do Estado. Quanto à expressão Democracia, que tem sua origem na junção de duas expressões gregas: dêmos, que significa povo e, kratos, que significa força, utilizada para se referir ao regime político onde as decisões são tomadas em assembléias, mediante deliberação e votação, será compreendida como
[...] o regime do discurso, isto é, da palavra pública [pois] toda decisão (política, jurídica ou judiciária) supõe a discussão aberta, a confrontação explícita das posições das partes presentes, a exposição a todos de razões válidas para todos, o estabelecimento em comum dos valores comuns. De modo que, na democracia, a política se confunde com o intercambiável, tanto por seus objetos (o político é discutível) como por sua forma (publicidade dos debates, transmissibilidade das opiniões). (WOLFF apud NOVAIS, CHAUÍ, LEFORT, 1996, p. 71).
Feitas estas considerações, que se supõem relevantes à compreensão da reflexão, a seguir será efetuado um enfoque histórico da ação popular, para em seguida explicar o que se depreende por Estado Liberal e Estado Social que, sem dúvida, são fases importantes da história mundial refletidas em nosso ordenamento jurídico pátrio, necessárias à compreensão do paradigma constitucional adotado que constitui o Brasil em um Estado de Direito Democrático, assunto seguinte. Em consonância com o tema escolhido, a pesquisa faz uma incursão sucinta sobre a diferença entre Processo e Procedimento, inclusive quanto à assunção do primeiro como Direito-Garantia Constitucionalizado, mostrando como a cidadania é tratada legalmente na Ação Popular, inclusive com anuência de vários autores, cujas teorias são testificadas, apresentando, destarte, a proposição encontrada como resultado da moderna compreensão da expressão conforme a teoria democrática que se funda na legitimidade, para concluir que cidadão é toda pessoa capaz de direitos na ordem civil, que tem a garantia constitucional dos direitos fundamentais, pois, público e privado se compreendem mutuamente, e que participa ativamente de todas as decisões, sejam elas políticas, administrativas, legislativas ou judiciárias.
A ação popular foi introduzida em nosso ordenamento jurídico através do inciso 38 do art. 113 da Constituição Federal de 1.934, onde “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”.
Apesar de Nascer como uma garantia do cidadão, permitindo sua participação ativa e direta na vida política do país, não foi o que ocorreu, pois, o regime do Estado Novo, comprovando sua total involução, suprimiu a Ação Popular da Constituição de 1.937 até que, com o advento da Constituição de 1.946, precisamente no artigo 141, parágrafo 38, é novamente insculpida no texto constitucional, abrangendo, inclusive, a administração indireta.
Em 29 de junho de 1.965, a Lei 4.717 vem regular a ação popular, sendo mantida pela Constituição de 1.967, conforme se verifica da dicção do parágrafo 31 do artigo 150, mas, é a Constituição de 1.988, exemplo ímpar de modelo democrático,[1] no art. 5º, LXXIII, que vai aumentar seu campo de abrangência introduzindo, também, os interesses difusos.
Vejamos o que diz o referido artigo:
Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio-ambiente, e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Sem dúvida, os motivos que levam a postular pela desconsideração da Legitimidade da determinação contida no parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei 4.717/65 (Ação Popular), consoante a moderna concepção de Democracia, passam pela compreensão dos Estados Liberal e Social, portanto, são necessários, mesmo que de maneira breve, tecer alguns comentários acerca destes modelos, na intenção de contribuir para formação de um raciocínio lógico jurídico, pois, segundo leciona Pereira (2001, p. 86-87),
O constitucionalismo moderno também não ficou imune ao fluxo da vida e teve substanciais modificações no curso de seu desenvolvimento, tanto que vários teóricos contemporâneos trabalham com os chamados paradigmas modernos do Estado de Direito que acompanham, necessariamente, paradigmas de constitucionalismos, cujos principais são: liberal (clássico), social e democrático.
2.1 O ESTADO LIBERAL
Os direitos individuais, relativos à vida, segurança individual, propriedade privada e liberdade são os primeiros a ser declarados em uma Constituição quando da afirmação do Estado Constitucional[2]. O Estado Liberal surgiu como uma crítica ao Estado Absolutista Monárquico do século XVII. Todavia, historicamente é difícil definir o nascimento[3] do Liberalismo, que, segundo Bobbio (2004, p. 687), se manifestou em diferentes países e em épocas históricas muito diferentes, sendo difícil demarcar claramente o momento liberal propriamente dito, porque [...] enquanto na Inglaterra se manifesta abertamente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, na maior parte dos países da Europa continental é um fenômeno de século XIX, tanto que podemos identificar a revolução russa de 1905 como última revolução liberal.
O objetivo do modelo Liberal era proteger o indivíduo contra o Estado e suas ingerências na vida privada, portanto proteger as opções individuais, já que estas inexistiam no absolutismo monárquico. Havia, então, direitos individuais e direitos políticos, onde parecia que a efetividade de um não dependia do outro e a liberdade existia na não intervenção do Estado na opção individual de cada um. Tanto, que o constitucionalismo Liberal entendia que a liberdade de iniciativa e a liberdade de concorrência seriam um direito de cada pessoa. Marca importante do liberalismo é que muitos indivíduos já acumulavam riquezas desde o modelo anterior, fazendo com que levassem vantagem em relação a outros que não detinham poder econômico suficiente para concorrer. Por este paradigma é vedada a intervenção do Estado no domínio econômico, ressalvado apenas na forma supletiva quando não há interesse privado, portanto, não regula a economia e não exerce nenhuma atividade econômica (não havia a presença do Estado-Juiz). Com efeito, neste modelo, o Estado favorecia àqueles que eram mais fortes economicamente, os quais passaram a criar mecanismos de eliminação da concorrência e da livre iniciativa. Ocorreu, então, a concentração econômica e com ela a exclusão social, que fez com que se verificasse a exploração da mão de obra, cuja oferta em larga escala fez diminuir demasiadamente os salários. As condições de trabalho eram as piores possíveis e as mulheres e crianças foram obrigadas a trabalhar em média 14 (quatorze) horas por dia.
Na segunda metade do século XIX, na Europa, ocorrem alterações na legislação infraconstitucional surgindo as primeiras leis trabalhistas e previdenciárias, bem como a Lei Sherman nos Estados Unidos, em 1890, primeira lei liberal antitruste. A exclusão social que agrava a crise do Estado Liberal ainda encontra a primeira guerra mundial, momento em que surgem dois novos tipos de Estado, o Estado Social e o Estado Socialista. Mesmo assim são crescentes as desigualdades de poder econômico, patrimônio e condições sociais. A princípio, no Estado Liberal, o voto era censitário, onde o seu valor era medido pela riqueza do individuo, isto é, quem não tinha riqueza em um patamar constitucional mínimo não poderia votar nem ser votado. Por pressões sociais, inicia-se um processo de mudança com a inserção de alguns indivíduos que começam a ter “status” de cidadãos em vista da possibilidade de voto (é o sufrágio universal – um cidadão, um voto).
O ordenamento jurídico brasileiro, como se pode depreender do artigo primeiro do texto constitucional, não guarda relação alguma com o Estado Liberal. Deve ser compreendido que qualquer lei incompatível com o texto constitucional não foi por este recepcionado, contudo, não é raro deparar-se com a intenção de alguns em manter o “status quo ante”, mesmo que entre o modelo liberal e o democrático tenha existido outro que é o Estado Social, assunto seguinte.
Para combater o Estado Liberal, o direito foi materializando normas de cunho social que ocasionou um paternalismo sócio-estatal que pode ser chamado, também, de intervenção do Estado, pois, “A superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático” (SILVA, 2000, p. 116). Assim, com a revolução francesa de 1848 e a Constituição daquele ano, surge o Estado Social, porém, sua afirmação acontece através das Constituições do México de 1917 (conquista da revolução mexicana que teve início em 1910) e a de Weimar (Alemanha) em 1919, também, fruto de uma revolução. Necessário dizer que Silva (2000, p. 116) adverte que “[...] a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição”, esclarecendo que
A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, Portugal salazarista, A Inglaterra de Churchill e Attlee, a França, com a Quarta República, especialmente, e o Brasil, desde a Revolução de 30 – bem observa Paulo Bonavides – foram “Estados Sociais”, o que evidencia, conclui, “que o Estado Social se compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo”. Em segundo lugar, o importante não é o social, qualificando o Estado, em lugar de qualificar o Direito. Talvez até por isso que se possa dar razão a Forsthoff quando exprime a idéia de que Estado de Direito e Estado Social não podem fundir-se no plano constitucional (2000, p. 120).
É após a segunda grande guerra mundial[4] que vemos surgir um mundo dividido entre socialismo real, burocrático, personalista e totalitário comandado pela União Soviética e o mundo capitalista comandado pelos Estados Unidos da América (do norte). Estes iniciam neste momento a construção na Europa ocidental de um Estado de bem estar social capaz de oferecer estabilidade e barrar a expansão da promessa socialista de bem estar e repartição de riquezas com o fim do capitalismo. Em oposição ao pensamento liberal e ao do grande capital, o Estado Social se afirma através de uma política intervencionista do Estado, sendo que, na Europa, deixa de ser apenas assistencialista e passa a ser includente, em face do crescimento econômico experimentado.
Conforme Habermas (2000, p. 116) “a materialização do direito, por sua vez, também ocasionou as conseqüências secundárias e indesejadas de um paternalismo socioestatal”, pois, mesmo sendo objetivo do modelo social a equiparação de situações de vida e de posições de poder, isto “[...] não pode levar a um tipo de intervenções “normalizadoras” que acabem por limitar o espaço de atuação de seus prováveis beneficiários, no que se refere à concepção autônoma dos projetos de vida de cada um deles”. O modelo social foi direcionado para cidadãos paternalizados em sua forma de vida e sem qualquer maturidade política, onde, em busca de uma sociedade culturalmente homogênea, o Estado não foi capaz de realizar os valores consagrados na Constituição, tampouco foi capaz de superar os desafios propostos por uma sociedade plural e diferenciada. Mesmo com a superação deste modelo, não raro encontramos nos diversos códigos de leis expressões que o indicam, tais como, bem comum, interesse público, interesse social, paz social, fim social e justiça social, dentre outros.[5]
Cumpre esclarecer que neste estudo a expressão ‘Estado de Direito Democrático’[6] é utilizada em virtude da compreensão que a democracia, conforme salienta Del Negri, com fincas na acepção de Kelsen (2003, 309-353), “deve aparecer como uma espécie de qualidade, de característica, de paradigma adotado pela Constituição, pois democrático é o Direito e não o Estado”. Para o referido autor, sociedade democrática “é aquela que se permite à liberdade crítica, aos argumentos processualizados, que adota a isonomia discursiva e que não se monopoliza por um Estado que se sobrepõe à Comunidade Jurídica” (2003, p. 23 e 118).
O Estado, como grupo de indivíduos que se juntam em determinado local, cria, em conseqüência das relações sociais, o Direito. A forma de criação, aplicação e fiscalização desse Direito é que vai determinar o regime de governo deste Estado.
Segundo Habermas (2004, p. 294), há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um Estado de direito e há Estados de direito sem constituições democráticas, mas, adverte que são razões empíricas e que não passa de um tratamento acadêmico para divisão do trabalho, e que “[...] não significam de modo algum que possa haver do ponto de vista normativo um Estado de direito sem democracia”. Na esteira do que se afirmou no princípio, não há possibilidade de concordância com a proposição do ilustre autor, tendo em vista que a explicação formulada por Del Negri encontra fundamentos não somente jurídicos como históricos, pois, a expressão Democracia é a qualidade do ordenamento jurídico de um Estado. Interessa salientar que recente decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro incorporou a lição do notável professor.[7]
Montesquieu (2004, p. 23) não preconizava a idéia de democracia conforme é concebida na atualidade, pois compreendia que
Quando, em uma república, o povo, formando um só corpo, tem o poder soberano, isso vem a ser uma democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma aristocracia. O povo, na democracia, é em certos aspectos, o monarca, e, em outros aspectos, o súdito.
É possível afirmar que o filósofo não pensou em estado e povo (público e privado) compreendendo-se mutuamente, pois, em O Espírito das Leis (2004, p. 23) esclareceu que o “[...] povo somente poderá ser monarca pelos sufrágios, os quais constituem suas vontades”. Democracia, no sentido de Montesquieu (onde o povo exerce o poder através do voto), é uma expressão largamente utilizada e difundida como pertencente ao domínio popular, todavia, isto não é suficiente.
Este regime político foi adotado por diversas cidades gregas, tendo Atenas como o símbolo de sua excelência, em face de sua importância econômica e política, onde não havia representatividade, pois, a democracia era exercida diretamente pelos cidadãos que votavam as proposições do Conselho apresentadas em Assembléias. Em Constituição de Atenas, Aristóteles “[...] descreve detalhadamente as instituições e os procedimentos políticos atenienses”, e demonstra que ali “qualquer cidadão podia exercer as funções políticas, os cargos sendo preenchidos por sorteio entre eles” (ZINGANO, 2002, p. 117).
Para Karl Popper (1987) a democracia não é baseada apenas no princípio de que a maioria deve governar e preocupa-se em apresentar os métodos de controle democráticos, tais como governo representativo e o voto, como salvaguardas institucionais. No entanto, é isso que se quer superar na presente pesquisa, indo além da simples representatividade política e do voto, promovendo a participação dos interessados através da incessante fiscalidade dos diversos procedimentos, com o objetivo de implementar direitos fundamentais.
Naufel (1984, p. 433) esclarece que DEMOCRACIA é o “regime político no qual o poder vem do povo e é exercido por ele, direta ou indiretamente” e “em que a vontade e o interesse gerais são as determinantes da ação do Estado [...]”. Mas, todo o esforço em definir o que é democracia torna-se inútil acaso não compreendido que “[...] são os conteúdos normativos do Ordenamento Jurídico que informam o grau de civilização dos Estados-Nações: se explicitamente autocráticos, se retoricamente democráticos ou se concretamente democráticos” (LEAL, 2004, p. 117). Por isto Almeida (2005, p. 109) faz a pertinente advertência que
Através da fixação hermenêutica que se insere no texto legal, uma lei, embora contendo todos os critérios formais e substanciais de legalidade no Estado Democrático, pode acabar tendo aplicação não comprometida com os fundamentos da democracia, caso a fixação hermenêutica seja altamente repressiva quando de sua aplicação aos casos concretos, deixando o texto legal retórico.
E, segundo ensina Pereira (2001, p. 28),
[...] o homem, ao interpretar qualquer fenômeno, já possui antecipadamente uma pré-compreensão difusa do mesmo, um pré-conceito, uma antecipação prévia de seu sentido, influenciada pela tradição em que se insere (suas experiências, seu modo de vida, sua situação hermenêutica etc). Por esse motivo, fracassará todo empreendimento que intente compreender objetivamente, em absoluto, qualquer tipo de fenômeno, eis que a compreensão, como dito, sujeita-se também à tradição ao qual pertence aquele que se dá ao conhecer.
Popper (1987), na obra A Sociedade Aberta e seus Inimigos, onde é possível concluir que uma sociedade fechada pode ser comparada a uma tribo ou horda, esclarece que a “transição da sociedade fechada para a aberta pode ser descrita com uma das mais profundas por que passou a humanidade”. Fazendo distinção entre natureza e convenção confirma que a lei é produto da atividade humana, e esta é o único modo de alterá-la. Neste contexto, com apoio em André Cordeiro Leal, “não é possível haver norma, nos Estados de Direito Democrático, sem a interferência intelectual de seus destinatários” (LEAL, 2000, p. 117, apud ALMEIDA, 2005, p. 110). Necessariamente, essa interferência deve iniciar no Controle de Constitucionalidade no Processo Legislativo (DEL NEGRI, 2003, p. 118), e, em seguida com o constante retorno da norma a discursividade através da Processualidade Jurídica (ALMEIDA, 2005, p. 149) com a participação dos destinatários em contraditório e em simétrica paridade, tendo o processo, não como instrumento da jurisdição, mas como instituição constitucionalizada (LEAL, 2004).
Como assevera Del Negri (2003, p. 118), sociedade democrática “é aquela que se permite à liberdade crítica, aos argumentos processualizados, que adota a isonomia discursiva e que não se monopoliza por um Estado que se sobrepõe à Comunidade Jurídica”. Com isso, é possível concluir que a liberdade crítica somente poderá ser exercida através do discurso dos interessados e não por meio do diálogo de especialistas. Pensamento que se fulcra na compreensão hodierna em que soberania popular é, como afirma Habermas, o cidadão sendo ao mesmo tempo destinatário e co-autor da norma, isto é, participando ativamente em todos os processos (legislativo, administrativo ou judiciário), balizados pelo devido processo constitucional e não apenas pelo voto.
Em consonância com a proposta inicial, pois, o que se busca responder passa pela compreensão de processo e procedimento, é necessário, mesmo que resumidamente, demonstrar que a evolução da teoria processual identifica claramente estes dois institutos.
Marques (2000, p. 49) aduz que quem primeiro distinguiu processo de procedimento foi Bülow, pois, havia um atraso nesta diferença básica devido à importância que a doutrina processual atribuía ao procedimento, “[...] meio extrínseco pelo qual se instaura, se desenvolve e termina o processo”. A doutrina processual, reagindo, provocou o inverso e diluiu o procedimento no processo que o absorveu e anulou a sua importância (GONÇALVES, 2001, p. 66), sem, contudo, abandonar o sentido teleológico.
Carnelutti (2000, p. 21) via uma diferença qualitativa profunda entre os dois conceitos que chegava a ser quantitativa, a ponto de considerar “[...] o processo como continente e o procedimento como conteúdo”, explicando que
[...] na realidade, se um único procedimento pode esgotar o processo, é possível e, até freqüente, que o desenvolvimento do processo aconteça através de mais de um procedimento; o paradigma desta verdade oferece-nos a hipótese, absolutamente normal, de um processo que chega ao seu fim através do primeiro e do segundo grau; e, como se verá, nos dois graus acontecem dois procedimentos, que se resumem em um só processo.
Porém, é necessário anotar a manutenção do sentido teleológico (causa final) apresentado pela posição carneluttiana quando enfatiza que
[...] O que interessa é nos darmos conta de que a combinação dos atos necessários para a obtenção do efeito comum dá lugar a um ciclo, que se chama procedimento. Não se diz que tal ciclo seja suficiente para conseguir por si só o resultado final, constituindo assim o processo, já que este pode exigir mais do que um ciclo, ou seja, mais de um procedimento.
Para resolver o problema da imprecisão terminológica que a escola da relação jurídica, hoje escola instrumentalista, instaurou na Teoria Geral do Processo, e reformular os conceitos de processo e procedimento, por volta de 1.968 o processualista italiano Elio Fazzalari definiu que processo é a espécie do gênero procedimento. No Brasil o principal divulgador dessa teoria é o professor Aroldo Plínio Gonçalves (2001, p. 115) que possibilitou através da distinção científica fazzalariana esclarecer com alto grau de eficiência a diferenciação existente entre processo e procedimento. Sob critério científico, sem uso de expressões místicas ou subsumidas como pertencentes ao domínio popular (intuitivas), explica que o procedimento é distinto do processo, uma vez que este passa a existir no mundo jurídico através da presença do contraditório, pois, “Há processo sempre onde houver procedimento realizando-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na ‘simétrica paridade’ da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão efeitos”.
Afirmou-se anteriormente que o Processo existirá quando houver um procedimento em contraditório em simétrica paridade entre as partes, respeitados os princípios da ampla defesa e da reserva legal. Diante disso cumpre informar que o procedimento é compreendido como um conjunto de atos onde “[...] o ato anterior há de ser pressuposto lógico-jurídico do posterior e este pré-condição do ato seqüente que, por sua vez, é extensão do antecedente, até o provimento final (sentença, decisão, ato) [...]” (LEAL, 2004, p. 100). Baseado nestas argumentações, não é aceitável a expressão PROCESSO utilizada pela Lei 4.717/65, pois, visa na verdade tratar do PROCEDIMENTO que deverá ser observado quando for instaurada uma ação popular, ou seja, da seqüência de atos coordenados. Sugere-se que a expressão PROCESSO seja substituída por PROCEDIMENTO, conforme a moderna teoria processual que se apóia em Fazzalari, Gonçalves e Leal, ou, enquanto não for promovida a modificação, que assim se compreenda.
“Ab initio”, frize-se que este trabalho refuta a concepção instrumentalista de Processo Civil [...] como instrumento de pacificação social e de realização da vontade da lei e apenas secundariamente como remédio tutelar dos interesses particulares. Daí a concentração de maiores poderes nas mãos do juiz, para produção e valoração das provas e para imprimir maior celeridade e concentração aos atos processuais. (THEODORO JÚNIOR, 1996, p. 14, grifos nosso).
Tal ideologia torna o destinatário do provimento jurisdicional mero participante-observador (ALMEIDA, 2005, p. 99) de uma pseudojustiça social através da desformalização do processo, onde estes expectadores são induzidos a crer na efetividade do processo, que é o confronto entre o decidido e o concretamente obtido (CALMON DE PASSOS, 1999, p. 31), com a ampliação dos poderes do Estado-juiz, provocando a falsa crença de que assim haverá um adequado cumprimento das sentenças, obtendo o maior alcance prático e o menor custo possível.
O magistério de Leal (2005, p. 42) esclarece a impossibilidade de aceitar,
“[...] na atualidade do direito brasileiro, a versão trivial e emotiva de que o processo é instrumento da jurisdição e que esta, em se fazendo pelo juiz, tenha escopos meta-jurídicos que possam medir-se pelo sentimento de justiça do julgador e não pelos comandos e paradigmas da lei”.
Os incisos LIV e LV do artigo 5º da CR/88 demonstram ao intérprete que o Processo foi elevado à categoria de Direito-Garantia do interessado no provimento final, portanto, não pode ser tido como instrumento da jurisdição. Leal (2004, p. 94) considera o Processo como instituição constitucionalizada, onde o termo instituição é:
[...] conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo Texto Constitucional com a denominação jurídica de Processo, cuja característica é assegurar, pelos princípios do contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e livre acesso á jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados.
O que se subsume da teoria que sustenta o tema deste trabalho é que, ao exigir prova de alistamento eleitoral, sugerindo ser esta a forma de se comprovar cidadania, estar-se-á negando em primeiro lugar o próprio acesso à justiça garantido constitucionalmente, em seguida o direito-de-ação[8] e, posteriormente o Processo como Direito-Garantia ao provimento final.
A lei 4.717/65, no parágrafo terceiro do artigo primeiro determina que “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda”. Afirmou-se no início que há unanimidade “doutrinária” quanto ao termo cidadania significar o ato de votar e ser votado. A seguir serão demonstrados alguns exemplos de conhecidos autores pátrios que compartilham tal pensamento.
Machado (2003, p. 434-435) considera que ação popular é um instrumento que a ordem jurídica oferece ao indivíduo para a defesa do patrimônio público e assevera que, podendo ser proposta por qualquer cidadão, esta condição se comprova através do título eleitoral. Meirelles (1991, p. 610), ao seu turno, se contenta em dizer que a Ação popular é a via judiciária constitucional colocada à disposição de qualquer cidadão (eleitor), enfatizando que estes devem estar no gozo de seus direitos cívicos e políticos, sem explicitar cada um. Em outra obra (2003, p. 124) esclarece que, conforme sua compreensão, o primeiro requisito para o ajuizamento da aludida ação é que o autor seja cidadão brasileiro, isto é, pessoa humana, no gozo de seus direitos cívicos e políticos, traduzidos pela qualidade de eleitor. Assim somente o indivíduo (pessoa física) munido de seu título eleitoral poderá propor ação popular, pois, não juntando cópia deste nos autos, será tido como carecedor dela, vez que a mesma se presta para o exercício do direito político do indivíduo que, tendo o poder de escolher os governantes, deve ter, também, a faculdade de lhes fiscalizar os atos de administração.
Silva (2000, p. 347 a 349) diz que “os direitos de cidadania adquirem-se mediante o alistamento eleitoral na forma da lei” e, sem garantia de certeza, que “pode-se dizer, então, que a cidadania se adquire com a obtenção da qualidade de eleitor, que documentalmente se manifesta na posse do título de eleitor válido”. Afirma, quanto aos direitos de cidadania, que
[...] Eles garantem a participação do povo no poder de dominação política por meio das diversas modalidades de direito de sufrágio: direito de voto nas eleições, direito de elegibilidade (direito de ser votado), direito de voto nos plebiscitos e referendos, assim como por outros direitos de participação popular, como o direito de iniciativa popular, o direito de propor ação popular e o direito de organizar e participar de partidos políticos (grifo nosso).
Em Silva (2000, p. 346-347), cidadania “[...] é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política. Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas conseqüências”.
Para este autor existe uma ‘sociedade estatal’. No entanto, o mesmo não discrimina quais são as outras sociedades. É possível concluir no seu discurso que os “demais” indivíduos fazem parte de um pseudoestado como aqueles preconizados por Müller (2003), isto é, o povo icônico.
Carvalho Filho (2001, p. 785) também não pensa diferente dos autores mencionados, conforme se verifica da redação a seguir:
LEGITIMAÇÃO ATIVA – A legitimação ativa para a ação popular tem inicio pela própria Constituição ao consignar que qualquer cidadão é parte legítima para promover a demanda. Trata-se, portanto, de legitimação restrita e condicionada, porque, de um lado, não é estendida a todas as pessoas, mas somente aos cidadãos e, de outro, porque somente comprovada essa condição é que admissível será a legitimidade. A qualidade de cidadão tem que ser demonstrada já na inicial. A prova será feita com o título eleitoral ou com documento que a ele seja equivalente.
Não parece compreensível que a definição acima coadune com a concepção habermasiana de democracia (do Grego: demos e kratein) preconizada pela nossa Constituição Federal de 1.988, em função dos traços altamente seletivos e não inocentes, que remonta a Péricles (MÜLLER, 2003, p. 83) onde o “[...] ‘demos’ abrange tão somente todos os homens atenienses livres, aptos para a guerra, contribuintes e domiciliados há muito tempo”.
Em Naufel (1984, p. 257), cidadania é a qualidade de cidadão, isto é, daquele que está em pleno gozo de seus direitos civis e políticos outorgados ou assegurados pela Constituição de um Estado. Com base nesse raciocínio, o autor explica que o termo implica em várias condições, tais como: nacionalidade, idade mínima de dezoito anos e que não esteja privado temporária ou definitivamente dos seus direitos políticos, para concluir que os direitos políticos é que representam a cidadania.
A democracia afirmada constitucionalmente, com venia, dos autores acima mencionados, admite apenas a condição consignada no princípio da reserva legal para que seja exercida a cidadania em sua plenitude. Não é possível manter a idéia de restrição ao exercício da cidadania, pois, em assim procedendo, estar-se-á negando ao indivíduo o implemento dos direitos e garantias fundamentais, que implica na negativa do princípio da igualdade através do indisfarçável conteúdo discriminatório do discurso dominante. De outro lado, impossível compreender o indivíduo como pessoa, mas não como cidadão. Cumpre, em princípio, separar o descumprimento da obrigação estatal de promover a inclusão social dos indivíduos, daquilo que a Constituição define como direitos destes, senão chega-se ao absurdo de considerar direito somente o que o Estado (os representantes) consiga implementar em favor do povo.
Com efeito, não é aceitável no paradigma democrático o cidadão deva provar esta condição através do título eleitoral. Há grande diferença entre aquisição de direitos políticos (termo restrito) e cidadania (termo abrangente), tendo em vista que o documento mencionado comprova apenas a aquisição dos primeiros. No entanto, resta perquirir se o título outorgado para uma pessoa de pouca ou nenhuma instrução, sem possibilidade mínima de escolha, participação ou crítica, está apta a exercer os direitos políticos adquiridos? Essas pessoas têm consciência do espaço que ocupam na sociedade que pertencem? Há maturidade política, cívica, intelectual e psicológica para escolher representantes, participando ativamente dos mandatos outorgados em conseqüência de seu voto, inclusive com incessante fiscalidade, exigindo o retorno da norma à processualidade jurídica, administrativa e legislativa? Esse pseudodetentor do direito político compreende que todos os assuntos discutidos nas diversas casas de leis, têm que ser previamente e fartamente analisados nas comunidades, para, em seguida, ser levada ao plenário com participação obrigatória de todos os detentores de mandatos e não somente das comissões de especialistas?
Para instaurar um procedimento o cidadão deve comprovar sua capacidade de direitos e deveres na ordem civil, segundo disposição contida no artigo primeiro da Lei 10.406/2002 ou algumas das situações previstas no parágrafo único do artigo quinto do mesmo diploma legal. O título eleitoral comprova o alistamento eleitoral (artigo 4º da Lei 4.737/65). No entanto, o que se compreende da redação do dispositivo em comento, é que naquele ano de 1.965 votar era sinônimo de cidadania, tanto que no artigo segundo da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965, verifica-se:
Todo o poder emana do povo e será exercido em seu nome, por mandatários escolhidos, direta e secretamente, dentre candidatos indicados por partidos políticos nacionais, ressalvada a eleição indireta nos casos previstos na Constituição e leis específicas. (grifo nosso).
A vigente Constituição da República (Art. 1º, parágrafo único), extirpando completamente a expressão “mandatários”, emancipou o povo brasileiro, posto que o poder não mais será exercido em seu nome, ao fundamento de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Este direito fundamental deve ser sempre analisado com o princípio da reserva legal, insculpido no inciso II do artigo 5º, onde “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Cumpre esclarecer que a lei a ser cumprida é aquela recepcionada pelo texto constitucional.
A cidadania tratada no parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei 4.717/65 é aquela traduzida apenas pelo voto, que analisada em conjunto com a expressão ‘mandatário’ constante no artigo segundo da Lei 4.737/65 (Código Eleitoral) não garante a participação efetiva do seu destinatário, transformando-o em mero povo icônico (MÜLLER, 2003, p. 67). Aquele abandonado a si mesmo, utilizado somente para fundamentar o discurso rebuscado das figuras de tópica e retórica, pois, fala-se como se estivessem exercendo a dominação real, mas, sua existência é supramundana. Esse povo deve se apresentar como sujeito político real, através de instituições e procedimentos, conforme o paradigma democrático, onde o cidadão “[...] entra em cena como destinatário e agente de responsabilidade e controle” (MÜLLER, 2003, p. 73).
Com fundamento na soberania popular e no princípio da reserva legal, a redação do parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei 4.717/65, quando trata da comprovação de cidadania, abriga um enorme conteúdo ideológico do pensamento liberal, pois, “[...] a cidadania é entendida... como direito político de uma pequena parcela da população” (BARROSO, 2006, p. 41).
De outro lado, decisões judiciais demonstram conteúdos de natureza sociológica, tendo em vista que, segundo se depreende de alguns julgados (RTJESP 93/234), o cidadão que instaura a ação popular é substituto processual do poder público. Contudo, a Constituição da República de 1.988 coloca o cidadão como verdadeiro titular do direito-de-ação (LEAL, 2004, p. 79), não sendo demais frizar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Art. 1º, parágrafo único).
Outro não pode ser o entendimento porque, “o direito moderno legitima-se a partir da autonomia garantida de maneira uniforme a todo cidadão, sendo que a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente” (HABERMAS, 2004, p. 294). É impossível concluir que o titular do poder, quando queira exercê-lo, torne-se representante ou substituto de si mesmo. Sem dúvida, cidadania deve ser compreendida na atualidade como sinônimo de participação (BARROSO, 2006, p. 50-51), pois, “[...] participar é fazer parte, tomar parte ou ter parte. Tomar parte representa um nível mais intenso de participação do que simplesmente fazer parte (fazemos parte da população do Brasil mas não tomamos parte nas decisões importantes). E está aí o que interessa à cidadania que redefine a democracia, que participa qualitativamente, a diferença entre a participação passiva e a participação ativa, a distância entre o cidadão inerte e o cidadão engajado”.
O artigo 7º da Lei 4.737/65 esclarece qual será o ônus a ser suportado por quem deixar de votar[9]. Na moderna compreensão democrática, as partes podem resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão (GONÇALVES, 2001, p. 98-99). Portanto, o interessado na instauração do procedimento da ação popular que não tenha se alistado eleitor não perde o direito-de-ação, mas, suporta o ônus do seu ato, e, ao contrário do que se possa imaginar, pode instaurar o procedimento da Ação Popular, mesmo porque o que se visa garantir é um bem maior, um bem coletivo e não individual. Impossível, neste caso, argumentar que a impossibilidade legal de propor o procedimento em questão seja conseqüência do não alistamento eleitoral, pois, os Direitos Constitucionais Fundamentais não podem ser suprimidos em hipótese alguma, tanto que são fundamentais.
A cidadania deve ser sempre confundida com a implementação dos Direitos Sociais Constitucionais (“caput” do Artigo 6º da CR/88) conforme os seus próprios objetivos fundamentais (Art. 3º da CR/88), não podendo ser admitida qualquer discriminação em relação às pessoas que se encontrem na situação de exclusão social e que não são alcançadas pelas políticas públicas.[10] Propõe-se nesta reflexão que a definição de cidadania seja mais abrangente, indo além de “pessoas que votam e podem ser votadas”. É necessário superar a constituição de uma esfera imediatamente legislativa pela constituição de uma comunidade jurídica autônoma com liberdade comunicativa, que assegura o perpetuar-se da criação do ato jurídico como processo constituinte permanente em detrimento de um direito formal, típico do Estado Liberal, bem como do direito material implementado pelo Estado Social (MOREIRA, 2004, 321 p ). Destarte, Habermas (Direito e Democracia, vol. II, p.189-190 Apud MOREIRA, 2004, p. 189) esclarece que
O projeto de realização do direito, que se refere às condições de funcionamento de nossa sociedade, portanto de uma sociedade que surgiu em determinadas circunstâncias históricas, não pode ser meramente formal. Todavia, divergindo do paradigma liberal e do Estado social, este paradigma do direito não antecipa mais um determinado ideal de sociedade, nem uma determinada visão de vida boa ou de uma determinada opção política. Pois ele é formal no sentido de que apenas formula condições necessárias segundo as quais os sujeitos do direito podem, enquanto cidadãos entenderem-se entre si para descobrir os seus problemas e o modo de solucioná-los.
Em virtude do objetivo fundamental da Constituição da República de 1.988 que consiste em “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º, inc. IV), analisado em conjunto com o princípio da igualdade disposto no “caput” do artigo 5º, verifica-se a impropriedade da expressão “prova de cidadania” usada pela Lei 4.717/65 (§ 3º, Art. 1º) por não atender à moderna compreensão de Processo e Procedimento, mormente no tocante a Teoria Democrática que não admite a participação do povo somente com o depósito do voto no dia da eleição, tornando-se inerte nas discussões das políticas de seu interesse, pois, como afirmado no princípio, o destinatário deve se compreender como co-autor da norma, o que ocorre através da discursividade pela processualidade jurídica, respeitados os princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e isonomia em simétrica paridade.
Com base na teoria popperiana que prioriza a testabilidade das proposições (POPPER, 2006, 567 p.) é possível verificar que:
a) A Lei 4.737/65 dispõe: “Art. 3º Qualquer cidadão pode pretender investidura em cargo eletivo, respeitadas as condições constitucionais de elegibilidade e incompatibilidade”.
b) O seu artigo 4º esclarece que são eleitores os brasileiros maiores de 18 anos que se alistarem na forma da lei.
c) A Constituição Federal estabelece no parágrafo 3º do artigo 14 as condições de elegibilidade.
Comparando a redação dos artigos mencionados, verifica-se a distinção clara entre cidadão, eleitor e candidato. A testabilidade se mostra simples quando se verifica que o cidadão que pretender investidura em cargo eletivo deve respeitar as condições constitucionais de elegibilidade (veja que o indivíduo já é cidadão antes de qualquer restrição legal). Por sua vez, verifica-se que é eleitor o maior de 18 anos que se alistar na forma da lei. Portanto, o nosso ordenamento jurídico estabelece distância entre as duas expressões, isto é, cidadão detentor de direitos políticos e cidadão não detentor.
O Direito alienígena[11] corrobora com a proposição efetuada, vejamos:
Artigo 115.º
(Referendo)
1. Os cidadãos eleitores recenseados no território nacional podem ser chamados a pronunciar-se diretamente, a título vinculativo, através de referendo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembléia da República ou do Governo, em matérias das respectivas competências, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei.
Eleitor e cidadão são expressões distintas e com significados diferentes, podendo, inclusive, ser utilizadas conjuntamente, sem que se compreendam unívocas, pois, há cidadão eleitor e não eleitor, pois, a cidadania nasce, conforme a compreensão democrática constitucional, concomitantemente com a personalidade civil do indivíduo.[12]
No entanto, de acordo com pesquisas recentes, verificou-se que há limitações do discurso jurídico a respeito de cidadania, vez que fica condicionado ao modelo político-ideológico do liberalismo, de um lado, e pelo positivismo jurídico de outro. Dominam os manuais de Direito Constitucional o pensamento reinante que concebe cidadania restrita à representação política e ao direito ao voto, portanto, ao fenômeno eleitoral (ANDRADE, 1993).
Cidadania, modernamente, deve ser compreendida além dos limites que circundam os discursos do dominante e do dominado. Conforme a vigente Constituição Federal todo cidadão brasileiro é titular do direito-de-ação. Por esta linha de raciocínio é necessário perquirir: um indivíduo, menor impúbere, representado por uma daquelas pessoas descritas na Lei Civil, não sendo eleitor (não alcançou a idade necessária para alistar-se), que esteja diante de uma daquelas situações permissivas da instauração do procedimento da ação popular, não pode se valer do seu direito-de-ação e instaurar o aludido procedimento? Caso a questão encontre resposta positiva (é possível instaurar sendo representado), é necessário lembrar que o cidadão que instaurar o procedimento (o menor) é que deverá provar a condição de cidadão através do título de eleitor e não o seu representante (segundo a dicção da lei aqui refutada). Assim, é eleitor o representante do menor, mas, não este último que instaurou efetivamente o procedimento.
É evidente que, consoante a teoria democrática, e, sobretudo, conforme o texto da vigente Constituição Federal, não há possibilidade alguma de impedir o acesso ao judiciário daquelas pessoas que porventura não estiverem de posse do título de eleitor ou certidão do cartório competente, pois, cidadania não envolve somente o ato de votar ou ser votado, certamente, está a anos luz de distância deste pensamento. Sem embargo, usamos com freqüência a expressão cidadania em qualquer discurso ou diálogo trivial, pois, este vocábulo, de ampla abrangência, tende a ser oportuno e adequado em inúmeras situações. Das diversas ocasiões em que o termo é empregado é possível afirmar que cidadania é relativo ao indivíduo, habitante de um estado, livre com direitos civis e políticos, assim como se trata de uma palavra derivada de cidade, estudada por Aristóteles e melhor compreendida se pensarmos cidade como o Estado.
Em um Estado que se pretenda democrático, cidadão é o indivíduo senhor do exercício da cidadania, a qual, em síntese, é vocábulo que expressa um extenso conjunto de direitos e de deveres. No entanto, como afirmado anteriormente, a expressão é utilizada na Lei da Ação Popular com exagerado conteúdo ideológico, realçando a obrigatoriedade de o indivíduo votar e não lhe facultando o direito de liberdade que, além das demais acepções, deve ser compreendido como liberdade de escolha insculpido na vigente Constituição Federal, ou seja, deixar de participar dos pleitos eleitorais, mormente quando o cidadão não reconhece os nomes apresentados como aptos a representa-lo em qualquer das Casas Legislativas.
A imposição é característica dos regimes totalitários e não dos democráticos. O primeiro não reconhece a participação popular enquanto, o segundo, tem esta como preceito fundamental. A atual Constituição Federal Brasileira determina que a Democracia é o regime a ser seguido. Destarte, qualquer norma que contrarie este comando fundamental, considera-se não recepcionada. Por este prisma, é inconcebível que seja exigido voto obrigatório[13] e, mais, que para instaurar o procedimento da Ação em comento, o titular do direito-de-ação seja obrigado a apresentar o título eleitoral. A cidadania, no contexto atual, é compreendida como a participação efetiva do indivíduo em todos os setores públicos e privados do Estado Brasileiro, sem distinção de qualquer natureza, inclusive resguardando a este o direito de escusar-se do voto.[14]
Mister colacionar abaixo posição certamente inovadora no que tange à moderna definição da expressão comentada nesta pesquisa, corolário da conclusão a que se chegou: “Cidadania. [...] Em sentido amplo, compatível com nossa CF dirigente, cidadão é também aquele que participa da vida do Estado, pessoa humana titular dos direitos fundamentais (CF 5.º) [...]” (NERY e NERY JÚNIOR, 2006, p.117-118, grifo nosso).
Segundo Norberto Bobbio (2004, p. 678):
“[...] o termo Legitimidade designa, ao mesmo tempo, uma situação e um valor de convivência social. A situação a que o termo se refere é a aceitação do Estado por um seguimento relevante da população; o valor é o consenso livremente manifestado por uma comunidade de homens autônomos e conscientes. O sentido da palavra Legitimidade não é estático, e sim dinâmico; [...] Em cada manifestação histórica da Legitimidade vislumbra-se a promessa, até agora sempre incompleta na sua manifestação, de uma sociedade justa, onde o consenso, que dela é a essência, possa se manifestar livremente sem a interferência do poder ou da manipulação e sem mistificações ideológicas”.
No entanto, a situação posta no ordenamento jurídico brasileiro é outra. Não há lugar para afirmações de que, apesar do que dispõe a vigente Constituição, o Estado de Direito Democrático é uma promessa, uma proposta, uma expectativa, um projeto, por não ter ultrapassado a condição teleológica e propositiva do seu artigo 3º que trata exatamente das finalidades ou das intenções do povo.
A legitimidade se traduz no poder de que trata a Constituição, de acordo com os valores e princípios dominantes da democracia, garantidos ao “povo”, compreendido como cidadãos e sujeitos atuantes (esta atuação do indivíduo, respeitado o princípio da reserva legal, não pode sofrer restrições, pois, isto implica em discriminação). A Democracia busca a real concretização dos Direitos Fundamentais e a efetivação da cidadania. A legitimidade constitucional consubstancia-se na necessidade de exigir-se que a administração pública, em todas as suas áreas, seja na judiciária, seja na atuação das casas parlamentares ou na gerência da coisa pública, paute-se pelo respeito aos princípios, objetivos e direitos fundamentais consagrados no texto constitucional, sob pena de flagrante inconstitucionalidade de suas condutas e perda da própria legitimidade popular de seus cargos e mandatos políticos pelo ferimento ao Estado de Direito Democrático, consoante o que afirma Goyard-Fabre (2002, p. 126), pois,
Percebe-se nisso, de imediato, a importância do aspecto formal do constitucionalismo: uma lei ou um enunciado de direito só são válidos se são congruentes com o dispositivo da Constituição, que ganha assim valor de “lei fundamental”. Do ponto de vista político, a Constituição é portanto uma proteção contra os riscos de arbitrariedade e de absolutismo que acompanham como uma sombra a individualização do Poder. A Constituição é garantia dos direitos e das liberdades. Ao distinguir a posse do Poder de seu exercício, ela indica que, em conformidade com o procedimento previsto pela Constituição, o poder dos governantes só é tal por causa da investidura que receberam e que, em conseqüência, nada tendo de um direito subjetivo de propriedade, ele só pode ser exercido dentro do respeito às regras determinadas pela Constituição: qualquer outro comportamento é prevaricação.
Democracia e Legitimidade são institutos aproximados, sendo impossível, modernamente, legitimar o que não é fruto do consenso. Não o consenso de especialistas que tem o povo somente como instância de atribuição (nas palavras de Müller), mas, o povo ativo, que, em Habermas, são ao mesmo tempo destinatários e co-autores da norma. Segundo o princípio da reserva legal, insculpido no número II do artigo 5º, segunda parte, da Constituição da República em 05 de outubro de 1.988, aqueles que não buscam a aplicação das finalidades do Estado, são passíveis da perda do mandato. Qualquer movimento popular neste sentido finca-se no plano da legalidade Constitucional. E esta concepção já era esposada pelos revolucionários franceses que assim consignaram: “Não há na França autoridade superior à da lei; o rei não reina senão em virtude dela e é unicamente em nome da lei que poderá ele exigir obediência” (art. 32 do Capítulo II, da Constituição francesa de 1791).
Em Müller (2003, p. 107-115), pode-se subsumir que a técnica legislativa de colocar leis em vigor não retrata a Democracia compreendida como direito positivo – direito de cada pessoa -, pois, legitimidade é aceitação, o consenso geral do povo como partícipes do procedimento de construção das normas, identificados com a expressão “povo” disposta no parágrafo único do artigo primeiro da vigente Constituição da República. É mister esclarecer que a norma refutada não é legítima, visto que não foi recepcionada pela Constituição, assim como não é fruto do consenso popular.
O Brasil nunca implementou um Estado Social efetivo, que oferecesse saúde, educação e previdência de qualidade, portanto, sem inclusão dos cidadãos na efetiva participação política, legislativa e judiciária, através da fragmentação do poder com a descentralização radical de competências.
É necessário compreender que o ordenamento jurídico pátrio, tendo como norma fundamental a Constituição de 1.988, estabelece que a Democracia é regime político obrigatório e a Cidadania o seu fundamento (Art. 1º, “caput” e inciso II), sendo correto afirmar que o disposto no “caput” do artigo sexto, como direitos e garantias fundamentais, representa que cidadão, antes de ser o detentor de direitos políticos, é aquele que vê implementado os seguintes direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.[15]
Se a vigente Constituição tem a cidadania como um de seus fundamentos, e, por outro lado, fosse possível admitir que esta é o reflexo de direitos políticos, enfrenta-se no mínimo uma incongruência se analisada esta afirmação com o disposto no “caput” do seu artigo 5º, o qual não admite nenhum tipo de discriminação. Não é demais lembrar que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (Art. 1º do NCC/2002), sendo que a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (Art. 2º do NCC/2002). Além do conteúdo discriminatório, próprio do Estado Liberal, o parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei 4.717/65 fere os dispositivos mencionados do Novo Código Civil Brasileiro, os fundamentos da República Brasileira, assim como os direitos e garantias fundamentais da vigente Constituição, notadamente os direitos sociais, os quais, ao seu turno, representam com muita propriedade o conceito do que seja cidadania.
Frize-se que “[...] só podem aspirar por validade as normas que puderem merecer a concordância de todos os envolvidos em discursos práticos”, pois, “[...] o direito moderno legitima-se a partir da autonomia garantida de maneira uniforme a todo cidadão, sendo que a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente”. Segundo leciona o ilustre autor, determinar o cidadão pelo status dos direitos individuais de que dispõe em face do Estado e dos demais cidadãos é uma concepção formulada pelo Estado Liberal, enquanto que a moderna concepção de cidadania tem o indivíduo como membro do Estado que exerce sobre este uma incessante fiscalidade (HABERMAS, 2004, p. 58, 279 e 294).
Nos diversos ramos do direito, notadamente o processual, verificaram-se confusões históricas quanto às expressões utilizadas para fundamentar os discursos rebuscados de tópica e retórica que infestaram os textos legais. Ainda ocorrem equívocos como “[...] a faticidade inesclarecida sobre a qual se apóia a expressão due process, como herança da Magna Charta Libertatum outorgada por João Sem Terra (1215), na Grã Bretanha”. Nesta época, a garantia do devido processo legal ocorria quando o lesado, o acusado e o julgador estavam em igualdade socioeconômico-política (LEAL, 2004, p. 63).
É necessário evoluir para além da expressão “We the People” (Nós o povo) da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1.787, assim como daquela “one man, one vote” (um homem, um voto), concebidas através de discursos inflamados de liberdade, quando seus autores eram homens brancos e proprietários. A expressão “all men are created equal” (todos os homens nascem iguais) inserida na Declaração da Independência Americana de 1.776, também foi usada em uma época que havia a exclusão dos escravos afro-americanos, questão omitida na Constituição, pois, se os homens nascem iguais e o texto refere-se a todo o povo, como é possível tamanha incongruência?
No Brasil ocorre o mesmo fato, várias expressões fundamentam os direitos inseridos nos textos legais e, no momento de sua utilização, são interpretadas de maneira que se mantenha o sistema dominante, excluindo-se de maneira indolente os verdadeiros destinatários destas leis. Mesmo estando positivado um pensamento democrático, verifica-se na prática o desrespeito à norma. Tanto pior quando esta mesma norma já traga no seu texto o discurso liberal discriminatório, como é o caso aqui refutado.
Com base nas informações alhures mencionadas, conclui-se que a exigência contida no parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei 4.717/65 não é compatível com o Estado de Direito Democrático estabelecido pela Constituição Federal de 1.988, vez que por ela não recepcionado, portanto, desprovida de Legitimidade. A deficiência terminológica apresentada na redação do dispositivo legal em comento é flagrante, pois, confunde cidadania com direitos políticos, quando em verdade o termo aproxima-se da expressão dignidade na forma concebida pela Declaração dos Direitos Humanos, bem como no número III do artigo 1º da vigente Constituição combinado com o seu artigo 6º.
Além do mais, vale esclarecer que prova é um instituto criado por lei para o exercício lógico da demonstração da existência de pessoa, coisa, fato e/ou ato jurídico, ou em uma conceituação mais completa, “instituto jurídico para cumprir a finalidade de fixação dos fatos no processo” (LEAL, 2004, p. 181). Deste modo, é mister sugerir que o parágrafo terceiro aqui refutado seja extirpado do texto legal e do mundo jurídico, através do competente procedimento legislativo, vez que cidadania não se comprova e sim se exerce. Isto porque o pleito do indivíduo visa resguardar o patrimônio coletivo, considerando que a Ação Popular é uma ação civil que objetiva, precipuamente, discutir em juízo assuntos que são objetos do direito administrativo, no amparo de interesses da comunidade e não de direitos individuais, que se traduz na maior prova de cidadania, termo complexo que extrapola os limites simplórios do ato de votar e ser votado, vez que implica participação efetiva nos destinos da nação, em constante fiscalidade dos três poderes, sendo correto afirmar que a Ação Popular é um instrumento eficaz desta participação (desde que não haja nenhum tipo de restrição).
O parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei de Ação Popular representa o discurso político de dominação dos setores da sociedade – “[...] classe privilegiada e inatingível, os tecno-burocratas, distanciados e independentes da sociedade civil... (CALMON DE PASSOS, 1988, p. 91-92)” – que temem a democracia direta e participativa e pretendem a cidadania mínima em detrimento da cidadania total. Estes setores ainda não se deram conta de que, ao contrário de simples eleitor, o indivíduo é, antes de qualquer coisa, pai, empresário, trabalhador, cônjuge, professor, estudante, médico, paciente, oficial, soldado, administrador, administrado, produtor, consumidor, gestor de serviços públicos e, acima de tudo, usuário destes serviços, portanto, a cidadania alcança, além do simples ato de votar e ser votado, as relações sociais (1988, p. 93-94).
Observou-se ao longo desta reflexão que pela lei escrita devem ser constituídos “[...] juízos lógicos compatíveis dentro dos quais há de se operar o raciocínio do intérprete do direito, como esquema de incidência e aplicação da Lei” (LEAL, 2004, p. 181). O parágrafo terceiro do artigo primeiro da Lei 4.717/65, conforme o que preconiza a Constituição vigente, não constitui tal juízo lógico, pois, esteve vulnerável a vários testes, e, neste diapasão “o enunciado mais suscetível de teste, isto é, aquele com maior grau de falseabilidade é, logicamente, o menos provável; e o enunciado menos suscetível de teste é o logicamente mais provável” (POPPER, 2006, p. 128-129). Compreender cidadania como implementação de direitos fundamentais e o seu pleno exercício, conforme a evolução do Direito, consoante a moderna teoria Democrática, mostra-se um enunciado menos suscetível a testificação. Contudo, poderemos sim encontrar indivíduos que não experimentaram a implementação de vários dos direitos fundamentais, sem, no entanto, perderem os mesmos tal condição, vez que podem e devem exigi-los dos representantes, sob pena destes, não cumprindo o comando constitucional, perderem a legitimidade do seu mandato.
Isto não ocorre, “data venia”, com a afirmação de que se alcança cidadania através do alistamento eleitoral, tendo em vista que milhões de eleitores não têm moradia, alimentação, vestuário, transporte, saúde, lazer, educação (mencionando aqui apenas alguns dos direitos fundamentais), o que leva a considerar que estes não participam, não fiscalizam, não são ouvidos (alguns nem se manifestam), porque são excluídos e para “exercerem a exclusão” receberam até “carteirinha”. A rigor, esta pesquisa almeja manter firme o pensamento que “um sistema jurídico é necessariamente um sistema aberto, sempre inacabado, sempre em busca das disposições novas que tendem para o horizonte de expectativa ou de esperança da idéia” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 339).
Cidadania é a efetiva participação do interessado, pela via discursiva e a teoria democrática aproximadas pelo Direito, tendo a Constituição Federal de 1.988 como o médium que torne o povo apto a esta compreensão através do implemento de direitos fundamentais. Cidadão é o titular de direitos e deveres, que fiscaliza e exige esta implementação por seus representantes que devem trazer as normas para a discursividade plebiscitária, pois, mais que destinatário é co-autor da norma.
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[1] Esta afirmação desconsidera as emendas constitucionais, frutos do casuísmo e da ilegitimidade representativa, pelo fato que, em momento algum, a população fora consultada sobre a necessidade das mesmas.
[2] “[...] há uma associação teórica remota do termo constituição tanto com o espectro jurídico de tradição costumeira, como às chamadas leis fundamentais do reino, das quais eram modelos escritos as assim denominadas declarações de estamento, típicos pactos de privilégios entre a aristocracia rural e o governante com o objetivo de definir a regra do uso da autoridade” (PEREIRA, 2001, p. 86).
[3] Sobre esse tema, Rodolfo Viana Pereira (2001, p. 85) afirma que há “[...] certa divergência na fixação do termo inicial do constitucionalismo, se com a revolução gloriosa na Inglaterra de 1688 ou com as revoluções norte-americana e francesa, respectivamente de 1776 e 1789”.
[4] Não foi a necessidade de implementação de políticas de inserção dos cidadãos que deu origem às grandes guerras mundiais, pelo contrário, principalmente no que tange a segunda grande guerra, através do nazismo objetivava-se a resolver os três grandes problemas do capital nacional, que eram: afastar o perigo socialista, espaço e ordem. De sorte que aliado ao fascismo, o nazismo era: antiliberal, pois, o grande capital não tinha interesse em liberdade; antidemocrático, vez que a ordem seria alcançada através da força, com a economia direcionada em favor do capital nacional.
[5] O Ordenamento Jurídico Brasileiro, tendo a Constituição Federal como sua Lei Fundante, promove uma grande contradição entre o Regime Democrático consagrado por aquela e a manutenção casuísta do modelo superado (Tal contradição implica em reafirmar que a vigente Constituição não recepciona Leis que com ela são incompatíveis).
[6] A expressão é utilizada na letra “b” do artigo 9º da Constituição Portuguesa de 25/04/1976 que tratando das Tarefas Fundamentais do Estado dispõe que uma delas é garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático.
[7] “No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivam o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável”. (HC 82423-RS, STF, Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 17.9.2003, DJU 19.2.2004).
[8] Direito-de-ação: é o direito constitucional incondicionado de movimentar a atividade judicacional do Estado (LEAL, 2004, p. 79).
[9] No entanto, o voto no Estado de Direito Democrático deve ser facultativo, pois, é uma forma de manifestação do pensamento cf. orientação do Professor André Del Negri na condução do presente estudo.
[10] Longe de não haver cidadania, neste caso, há uma completa falta de presença do Estado.
[11] Constituição Portuguesa de 1.976.
[12] A pessoa, sendo capaz de direito e deveres na ordem civil, é, desde o nascimento, detentora dos direitos dispostos no artigo 6º da atual Constituição, portanto, o implemento dos mesmos é obrigação do Estado, via dos representantes, que exercem tal condição de forma precária e não absoluta, pois, o exercício do poder é concorrente (entre o próprio povo e os representantes eleitos), conforme se depreende do disposto no parágrafo único do artigo primeiro da Lei Fundamental.
[13] O disposto no “caput” e inciso I do artigo 14 da vigente Constituição colide frontalmente com o que dispõe o parágrafo único do artigo 1º da mesma, contudo, esta colisão se resolve no próprio arcabouço Constitucional, pois, enquanto a obrigação está disposta nos Direitos e Garantias Fundamentais, a Soberania Popular é Princípio Constitucional, portanto, fundamento daqueles e não pode ter sua abrangência restringida (Quanto à Hermenêutica Constitucional consultar PEREIRA, 2001, 191 p.).
[14] A Discussão que evidentemente se faz necessária no Estado de Direito Democrático, em detrimento das posições defendidas quanto ao voto obrigatório ou ao voto facultativo, já que este último compõe a Democracia, é aquela atinente ao “voto consciente” (cf. MALUF, 2006, p. 73/74).
[15] Frize-se que o modelo brasileiro foi uma junção, “para pior”, de Estado Social e Estado Liberal, tentando, de maneira nada ingênua, fazer o povo crer em um Estado Democrático quando são excluídos da presença estatal na implementação dos direitos fundamentais, inclusive pelas políticas voltadas a fazê-los ignorar que estes existem.
Advogado militante no Estado de Minas Gerais. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro da OAB-Uberaba (14ª Subseção). Professor universitário. Coordenador do Curso Superior de Tecnologia em Gestão Pública da UNIPAC de Uberaba. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Gestão Pública da UNIPAC de Uberaba. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da UNIPAC de Uberaba. Vice-Coordenador da Comissão Própria de Avaliação da UNIPAC de Uberaba. Conselheiro Municipal de Educação na Cidade de Uberaba-MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, José Humberto da Silva. Ação Popular: a prova de cidadania no Estado de Direito Democrático Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2012, 07:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28552/acao-popular-a-prova-de-cidadania-no-estado-de-direito-democratico. Acesso em: 22 dez 2024.
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