Àquele sonho idealizado, passou a ser verdade, pessoas que acreditam em um determinado objetivo e possuem o know-how necessário e uma boa network, resolvem unir-se para criar um determinado empreendimento. Referido exemplo ilustra com clareza a afectio societatis, que é o interesse conjunto de pessoas unirem-se para constituir uma sociedade empresaria.
O Estado brasileiro assegura como fundamento da Republica Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como visualiza nos empreendedores grande fonte de riquezas e desenvolvimento social, eis que a criação de uma sociedade empresaria proporciona vagas de trabalho, vincula-se ao pagamentos de tributos e custeia benefícios sociais.
Pois bem, assegurado o interesse estatal, externada a vontade dos sócios, cumpridas as exigências em lei, nasce uma sociedade empresarial imbuída de direitos e muitas obrigações, dentre as quais acompanhar a globalização do capitalismo que norteia as relações empresariais com plexo de complexidade exigindo atenção ao cenário econômico, às legislações pertinentes, às atividades desenvolvidas, bem como à adoção de iniciativas consistentes em investimentos arriscados e de altos valores para sejam alcançado o proveito econômico desejado.
A sociedade empresaria possui personalidade jurídica própria nascendo que o registro de seus atos constitutivos e encerrando-se mediante baixa no respectivo registro. É sujeito de direito capaz de contrair direitos e obrigações próprias e independentes de seus sócios, uma vez que o patrimônio da sociedade é desvinculado do patrimônio de seus sócios, excetuadas algumas previsões legais, a exemplo do empresário individual.
A responsabilidade dos sócios em relação à sociedade empresaria limita-se ao capital social por cada qual integralizado, desta forma, o patrimônio individual de cada sócio mantém-se intocável na hipótese de insucesso no empreendimento.
Todavia, nem sempre as pessoas agem imbuídas de boa-fé com o real intuito cumprir com os ditames legais e sociais esperados na criação de uma sociedade empresaria utilizando-se da personalidade jurídica desta para criar fraudes e praticar atos ilícitos em beneficio próprio ou alheio.
Não incomum, observarmos sócios de sociedade empresarias utilizando-se do patrimônio da sociedade para custear despesas particulares e gerir negócios da mesma natureza, utilizando-se de valores muito à quem daquele devido ao sócio a titulo de pró-labore.
Mencionada pratica, caracteriza uma das hipóteses a exceção da lei, onde o patrimônio dos sócios respondera pelas obrigações da sociedade, haja vista caracterização da confusão patrimonial praticada pelos sócios, sendo referido instituto denominado no direito de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A lei 10.406/02 que instituiu o Código Civil vigente adotou na redação do art. 50 a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nas hipóteses de caracterização de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, facultando ao juiz decidir, a requerimento do interessado, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Depreende-se que o ordenamento jurídico pátrio sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça que o art. 50 do CC/02, adotou a chamada teoria maior da desconsideração, segundo a qual se exige, além da prova de insolvência, a demonstração ou de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) ou de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). Também explica que a interpretação literal do referido artigo, de que esse preceito de lei somente serviria para atingir bens dos sócios em razão de dívidas da sociedade e não o inverso, não deve prevalecer. Anota, após essas considerações, que a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir, então, o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações de seus sócios ou administradores (REsp 948.117-MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/6/2010).
Temos que abuso da personalidade jurídica refere-se a todo ato praticado pelos sócios ou pelos administradores que não se coadunem com os parâmetros pelo qual a sociedade foi constituída, ou seja, qualquer ato omissivo ou comissivo que implique em prejuízo a sociedade a terceiros.
Não obstante a existência do abuso da personalidade jurídica, o legislador consignou que sua caracterização dá-se pelo desvio de finalidade, ou seja, quando os sócios instituem uma sociedade com a finalidade de fraudar a lei, imiscuir-se de adimplir obrigações com credores com desvio patrimonial, praticar atos ilícitos ou mesmo para utilizar-se da sociedade em desconformidade aos preceitos pelo qual esta foi criada. Ainda, prevê o legislador a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica nas hipóteses de confusão entre o patrimônio da sociedade com o patrimônio dos sócios.
Em tais hipóteses, ocorrendo quaisquer das circunstancias mencionadas, constatando-se a pratica de atos reputados fraudulentos, a pedido do interessado e a critério do juiz, afasta-se a responsabilidade exclusiva da sociedade, respondendo o patrimônio pessoal dos sócios, que poderá ser atingido por medidas restritivas, para responder pelas obrigações contraídas pela sociedade.
Importante frisar que referida medida é aplicável em caráter de exceção a regra, cabendo ao interessado, comprovar de forma cabal a existência dos requisitos que a autorize.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica hodiernamente encontra previsão em legislações especificas, a exemplo da lei 8.078/90 que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, dispondo em seu artigo 28 que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Neste passo, temos que o Código de Defesa do Consumidor editado com o manifesto intuito protecionista ao consumidor foi muito mais objetivo e rigoroso ao dispor sobre a matéria.
Assim, nas relações de consumo quando houver em detrimento do consumidor praticas pelo fornecedor que impliquem em abuso de direito nas praticas de comércio, excesso de poder frente ao hipossuficiente com a imposição de condições que se revelem desfavoráveis ou importem no desequilíbrio econômico, quando o fornecedor praticar atos em infração a lei imperativa, ou ainda quando cometer praticas não condizentes com a finalidade pelo qual foi criada a sociedade em violação ao ato constitutivo e ainda nas hipóteses de ocorrência de falência onde reste caracterizado que tal circunstancia se deu em razão da má administração do negócio, poderá o juiz descaracterizar a personalidade jurídica da sociedade, ocasião em que o patrimônio pessoal dos sócios respondera pelos atos da sociedade.
Ainda, há previsão no parágrafo 5º do art. 28 do CDC que, mercê as circunstancias existentes do caput do artigo, ainda poderá ser desconsiderada a personalidade da pessoa jurídica quando de alguma forma a circunstancia de ser empresa, criar algum obstáculo ao ressarcimento dos danos causados ao consumidor. Assim, todas as vezes que o fornecedor de serviços valer-se do artifício de tratar-se de sociedade empresaria, colimando imiscuir-se do dever de reparar o dano causado ao consumidor é possível a requerimento do interessado que o juízo desconsidere a pessoa jurídica, atribuindo aos sócios a responsabilidade pela reparação dos danos, respondendo o patrimônio social destes pelas obrigações da sociedade.
Na seara tributária, há pouco tempo atrás, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica era freqüentemente aplicada àquelas sociedades que detinham dividas tributarias junto ao fisco. A discussão jurídica girava em torna na ilegalidade da aplicação da medida pelo fisco sem respeitar o critério de exceção que reveste a gravidade da medida. Alguns julgados aplicavam a medida sem a existência da caracterização dos requisitos legais que a autorizassem, bastava o descumprimento da obrigação tributaria que referida medida tornava-se auto-aplicável, com a responsabilização direta do patrimônio dos sócios administradores, sem que restasse sequer ventilado nos autos do processo a ocorrência da necessária fraude.
Ocorre que o STJ passou de forma expressa a reconhecer que o mero descumprimento de obrigação tributária não pode implicar na afetação do patrimônio do sócio administrador, pelo qual editou a súmula n° 430, de teor abaixo transcrito:
“Súmula 430: O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”
Referida sumula regulamentou a disposição legal do art. 135 do Código Tributário Nacional que dispõe sobre a possibilidade da afetação de patrimônio dos sócios, ou mesmo de administradores, mas sendo necessário para isto que ocorresse a violação de contrato social ou estatutos, que deveria ser comprovado pela Fazenda Pública quando requerida a desconsideração da personalidade jurídica.
Com referida interpretação jurisprudencial pelo qual resultou a edição da referida sumula prestigiou-se alguns princípios constitucionais como o do Devido Processo Legal e da legalidade ao qual se vincula o ente publico no exercício de suas premissas.
Por fim, se esclarece que o presente estudo foi elaborado no intuito de abordar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica de forma suscinta, clara e precisa de modo a propiciar a empresários e ao publico em geral conhecimento a respeito do assunto, possibilitando com a observância de suas praticas e de seus administradores frente a possibilidade de sua responsabilização pessoal por referidos atos. Gize-se que referido instituto em apreço é uma medida muito salutar em nosso ordenamento jurídico, já que pune empresários que utilizam-se de meios ardilosos para a consecução de fins ilícitos (estes sempre contrários ao pretendido pela sociedade).
Advogado e Consultor Jurídico, Sócio do escritório Urcioli Advogados, mestrando Direito Civil e especialista em Direito Civil e Processo Civil pela EPD, com extensões nas áreas de direitos do consumidor, contratual, bancário, empresarial e tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Jefferson Ursioli. Abordagem sobre teoria da desconsideração da personalidade juridica e seus aspectos no ambito, civil, consumerista e tributario Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2012, 08:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28862/abordagem-sobre-teoria-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica-e-seus-aspectos-no-ambito-civil-consumerista-e-tributario. Acesso em: 23 dez 2024.
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