A partir do dia 18 de dezembro de 2010, com a morte do jovem Mohamed Bouazizi na Tunísia, que ateou fogo ao próprio corpo em protesto, o mundo vem assistindo a constantes levantes nos países de cultura árabe motivados por melhores condições de vida – pois as já péssimas condições se agravaram com a crise econômica de 2008, e por mudanças políticas, haja vista a maior parte dos países em que ocorreram os protestos ser governada por ditaduras. As insurgências levaram à renúncia os líderes da Tunísia, Ben Ali, no governo desde 1987, e do Egito, Hosni Mubarak, que governou o país por mais de trinta anos. Na Líbia, o ditador Muammar al-Gaddafi, que não renunciou e tentou reprimir os levantes com o uso de força militar, foi morto por rebeldes. Na Síria, há grande pressão para a saída do presidente que comanda o país desde o ano dois mil, Bashar al-Assad, filho do antecessor, Hafez al-Assad, que governou o país por 30 anos. Estes eventos, ainda em curso nos países do norte da África e do Oriente Médio, estão sendo chamados de Primavera Árabe.
Ao se analisar historicamente o desenvolvimento dos conceitos dos direitos fundamentais, classicamente representados pela máxima liberté, égalité, fraternité, e seu efetivo alcance sobre os países de cultura não ocidental (de origem diversa da influência europeia), evidenciam-se, a priori, apenas os aspectos decorrentes do prisma econômico. Os direitos fundamentais ditos de primeira geração, ou dimensão, que se referem à liberdade, aos direitos civis e políticos, como os direitos individuais e o direito à propriedade, e a uma abstenção estatal em detrimento do homem, por exemplo, foram verificados junto a esses povos como direito dos países imperialistas ocidentais em subjugá-los econômica, e ás vezes politicamente, na busca por novos mercados consumidores (neocolonialismo), consistindo em verdadeiro embasamento filosófico para uma política econômica liberal condizente com os interesses da burguesia industrial ascendente da época, desconsiderando o disposto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
A segunda geração de direitos fundamentais, embora já estivesse prevista na máxima francesa, alcança sua efetividade como contraponto ao alargamento do conceito de liberdade econômica oriunda dos direitos de primeira geração e sua consequente abstenção estatal.
As distorções sociais geradas pela economia liberal, que culminaram na crise de 1929, mereceram profundas reformas estruturais nos vários campos das ciências sociais, buscando-se assim uma nova forma de Estado.
No campo da ciência jurídica, se deu a implementação dos direitos de segunda geração, direitos sociais e coletivos, pregando dessa vez uma atuação do estado com o escopo de minimizar as diferenças produzidas pela economia, não se excluindo aí os direitos já conquistados na primeira geração, mas complementando-os e dando-lhes novo sentido; o que se verifica nas constituições de Weimar de 1919, do México de 1917, bem como nas constituições de orientação marxista, tendo se propagado nos Estados democráticos principalmente no pós-segunda guerra. Na área de atuação da ciência econômica, surgem as ideias de John Maynard Keynes, pregando a intervenção estatal na busca por uma economia equilibrada, com ampla geração de emprego e consequente melhoria dos índices sociais através do aumento dos gastos públicos, contrapondo a teoria econômica clássica capitaneada por Adam Smith, principal teórico do liberalismo econômico. Juntas essas concepções, jurídica e econômica, foram o alicerce do estado do bem-estar social (wellfare state).
Nos países de cultura não ocidental, a ascensão dos direitos fundamentais de segunda geração, pautados na igualdade, corresponde ao fim do período colonial dos países africanos e asiáticos. Contudo, o viés econômico mais uma vez foi razão para esse desfecho, pois a abertura desses mercados se fazia importante no cenário pós-segunda guerra. Desse modo, é possível dizer que a segunda geração de direitos fundamentais, para esses povos, passou longe de garantir-lhes a aplicação efetiva dos direitos de primeira geração e a contraprestação estatal em favor dos direitos sociais e coletivos, já que com a independência ascenderam ao poder regimes violentos em que os Direitos Humanos foram deixados de lado, ou iniciaram-se sangrentas guerras civis que perduraram por todo o restante do século XX, muitas vezes com o apoio dos países ocidentais.
Uma mudança desse panorama se verificou com a terceira geração de direitos fundamentais. O ideal de igualdade trazido pela segunda geração e a consciência das diferenças existentes entre os povos fez brotar uma ideia de solidariedade e fraternidade, que não se verificava anteriormente, como bem frisou Bonavides: “A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecidos. (...) Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade”. Nesta geração de direitos fundamentais, evidenciam-se principalmente o caráter humanitário, desprovido de interesses econômicos escusos. Aqui se percebe uma nova forma de pensar a economia e as desigualdades dela decorrentes, um novo sopesar entre o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente, gênese do conceito de crescimento sustentável, por exemplo. Desse modo, são exemplos de direitos consagrados por essa geração o direito ao meio ambiente e o direito à paz.
É perceptível assim a extensão, o alcance, desta dimensão de direitos fundamentais, mostrando-se como destinado ao gênero humano, desconsiderando-se as realidades regionais. Como fruto de uma nova consciência ambiental, a comunidade internacional têm empreendido cada vez mais esforços na busca da preservação do meio ambiente através de políticas sustentáveis, como a adoção do plano de redução de emissões de gases poluentes prevista do Protocolo de Kyoto, de 1997, muito embora os EEUU, maior emissor de gases, não o tenham assinado. O programa de extinção de armas nucleares promovido pela ONU, desdobramento do direito à paz, embora tenha dado motivos, mesmo que falaciosos, para uma guerra “produzida” pelos EEUU contra o Iraque, também é claro exemplo dessa mudança de paradigmas.
A consolidação de direitos, como processo em constante evolução, desafia filósofos e juristas na conceituação daqueles que são os primados da existência humana, a conditio sine qua non a temos em sua plenitude. É neste contexto que se inserem doutrinadores da envergadura de Norberto Bobbio e Paulo Bonavides, que em suas obras sugerem direitos que comporiam a chamada quarta geração de direitos fundamentais. Para Bobbio estes estão ligados à bioética e à preservação do patrimônio genético. Bonavides sugere o direito à democracia, à informação e ao pluralismo.
No entanto, é importante frisar que essas gerações, na ordem cronológica que costumam ser abordadas, levam o leitor à falsa ideia de que uma constitui requisito para a consolidação da geração seguinte, quando tão somente reflete o período na história em que esses direitos passaram a ser reconhecidos e a integrar aquela gama tida por fundamental, que é atemporal e indissociável. Conforme assevera Marmelstein, os estágios e os momentos históricos em que estes direitos foram reconhecidos e incorporados pelas nações ao redor do globo em seus textos constitucionais são diferentes, e não poderia ser de outra forma. Foi o que se tentou demonstrar neste artigo.
O movimento conhecido como Primavera Árabe, mostra-se como claro exemplo de consolidação dessa última geração de direitos fundamentais a povos que sequer tinham as garantias mínimas elencadas pela primeira geração. O acesso à informação, direito fundamental proposto por Bonavides, foi importante fator para a ruptura com o status quo vigente, sendo inegável que o uso da internet tenha contribuído para desencadear o processo de reforma. O controle das informações pelo Estado, como sói ocorrer nos regimes autoritários, tem sua atividade dificultada ante a nova gama de instrumentos capazes de replicar a informação. Ainda é cedo para dizer se o processo de reforma em curso nesses países fará aflorar a democracia, mas constitui importante passo nesse caminho.
É forçoso reconhecer também a participação do processo de globalização, e sua consequente disseminação dos valores ocidentais, para este resultado e para o futuro das conquistas desses povos por seus direitos, tidos pela doutrina e pelos órgãos internacionais como fundamentais, consagrados há mais de dois séculos na célebre frase da França revolucionária: liberté, égalité, fraternité.
Bibliografia
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 17ª Ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2008.
WIKIPEDIA. Primavera Árabe. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Primavera_%C3%81rabe> Acessado em: 09/05/2012 às 21:14:30.
SERRAGLIO, Lorena Pretti. Quarta Geração de Direitos. Disponível em: <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1681/1608> Acessado em: 09/05/2012 às 20:33:17
MARMELSTEIN LIMA, George. Críticas a Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais. Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/geracoes.pdf> Acessado em: 09/05/2012 às 22:04:48.
1º Tenente do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará; Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTE, Filipi Ribeiro. A Primavera Árabe à Luz da Teoria das Gerações dos Direitos Fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 maio 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29145/a-primavera-arabe-a-luz-da-teoria-das-geracoes-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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