A Terra Indígena Raposa Serra do Sol cuja superfície total corresponde a um milhão, setecentos e quarenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e quatro hectares, setenta e oito ares e trinta e dois centiares e perímetro de novecentos e setenta e oito mil, cento e trinta e dois metros e trinta e dois centímetros, situada nos Municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, no Estado de Roraima, fora inicialmente declarada como de posse permanente e de usufruto exclusivo dos índios Ingarikó, Macuxi, Wapixana e Taurepang pela Portaria do Ministro da Justiça nº 820, de 11 de dezembro de 1998, republicada como Portaria do Ministro da Justiça nº 534, de 13 de abril de 2005.
A demarcação administrativa fora homologada pelo Decreto Presidencial de 15 de abril de 2005.
Ante a controvérsia provocada pela demarcação, ajuizou-se ação popular (autuada como PET 3388), perante o Supremo Tribunal Federal, em face da União, visando a nulidade da Portaria nº 534/2005 do Ministro de Estado da Justiça e, consequentemente do Decreto Homologatório Presidencial de 15/04/2005. Enfim, a demanda objetivava anular o procedimento de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Por ocasião de seu julgamento definitivo de mérito – destaco que ainda não foram apreciados os inúmeros embargos de declaração interpostos – o Supremo Tribunal Federal inovou na técnica de decidir e declarou constitucional a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, determinando que fossem observadas 19 condicionantes para o caso.
Dessa sorte, questiona-se acerca da aplicabilidade das condicionantes do emblemático caso T.I. Raposa Serra do Sol para as demais terras indígenas.
Como enfatizado acima, a PET 3388 trata-se de ação popular ajuizada em face da União visando a nulidade da Portaria editada por do Ministro de Estado da Justiça e de Decreto Homologatório Presidencial referente à demarcação administrativa de terra indígena.
A prescrição do art. 18 da Lei de Ação Popular (Lei nº 4.717/65) determina que a sentença proferida em sede de ação popular terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, ou seja, nos limites em que foi decidida, a causa terá efeito para além das partes do processo, constituindo ou desconstituindo relação jurídica oponível a todos, ou mantendo-a, no caso de improcedência da ação[1].
Dessa sorte, o julgamento da PET 3388 irradiou efeito para todas as pessoas que se encontravam na situação abarcada por seu julgamento, qual seja, a de ocupante não-índio da T.I. Raposa Serra do Sol, de modo que os mesmos foram imediatamente retirados da área.
Pela lógica e pela estrutura de nosso sistema processual civil, a decisão emanada da Suprema Corte não teria o condão de afetar outras situações que não a nela decidida, haja vista que o nosso sistema não adotou a “Commom Law”, ou seja, o direito que se desenvolve por meio das decisões dos tribunais, com ênfase na formação de jurisprudência[2].
Entretanto, ao famigerado caso foi aplicada técnica de decidibilidade sui generis, com a adoção das condicionantes, o que suscitou discussão sobre possível julgamento extra petita.
Das discussões em plenário e dos votos condutores do acórdão verifica-se clara a intenção de que as regras impostas pelas condicionantes sejam aplicadas às demais terras indígenas, bem como aos procedimentos demarcatórios eventualmente em curso.
Parece-nos nitidamente uma aplicação analógica da chamada teoria da transcendência dos motivos determinantes, mormente ante o fato de que, ao decidir o complexo caso concreto, foram dadas às múltiplas situações diversas interpretações conforme a Constituição. Dessa forma, em atenção à força normativa da Constituição, à supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários, ao fato de que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição e seu intérprete máximo, bem como a dimensão política de suas decisões, é possível que se tente “abstrativizar” a interpretação constitucional conferida no caso concreto, para que tenha aplicabilidade em todos os demais casos, método esse que se assemelha à chamada objetivação do controle difuso de constitucionalidade em sede de recurso extraordinário.
Entretanto, em que pese o patente interesse de que as condicionantes formuladas para o caso da PET 3388 se apliquem aos demais casos concretos, é certo que a referida ação ainda não transitou em julgado, existindo inúmeros recursos de embargos de declaração ainda pendentes de julgamento, que talvez possam alterar parte do resultado do julgamento, como se depreende do despacho do Ministro relator, na PET 3388:
Considerando que: a) diversos embargos de declaração opostos contra a decisão deste nosso Supremo Tribunal Federal na Pet 3388 esboçam razões fático-jurídicas, algumas das quais necessitarão de diligências para os devidos esclarecimentos essenciais à solução do processo; b) a rediscussão de itens da decisão deste Supremo Tribunal Federal poderá repercutir no cotidiano da Raposa Serra do Sol (...)
A despeito da ausência de trânsito em julgado, observa-se nos arrazoados de diversas decisões judiciais em trâmite no país, a invocação das razões de decidir da PET 3388 como fundamento a vincular o juízo. No mais, o próprio Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões monocráticas determinou a suspensão imediata dos processos de demarcação aduzindo como fundamento o suposto descumprimento das condicionantes constantes na PET 3388:
Ademais, os documentos de fls. 29-37 atestam que o registro do imóvel é do ano de 1924, muito anterior, portanto, à data de 5 de outubro de 1988, fixada como marco temporal de ocupação pela jurisprudência desta Corte no conhecido caso Raposa Serra do Sol, tal como explicitado em trechos da ementa do acórdão na PET nº 3388, Rel. Min. Carlo Britto, DJ 25.9.2009: “11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”.
(...)
Ante o exposto, defiro a medida liminar para suspender os efeitos do Decreto Presidencial de 21 de dezembro de 2009, que homologou a demarcação da Terra Indígena denominada Arroio-Korá, tão somente em relação ao imóvel de propriedade dos impetrantes, denominado Fazenda Iporã, até decisão final no presente mandado de segurança. (MS nº 28541/STF)
Ultrapassada a preliminar suscitada, cumpre asseverar que este Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Petição nº 3388, Rel. Carlo Britto, DJ 25.9.2009, o conhecido caso Raposa Serra do Sol, fixou a data da promulgação da Constituição de 1988, 5 de outubro de 1988, como o marco temporal para o reconhecimento, aos grupos indígenas, dos direitos originários sobres as terras que tradicionalmente ocupam, consoante explicitado no seguinte trecho da ementa do acórdão:
“11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”.
Ademais, registre-se que esta Corte, ao explicitar as condições impostas pelo texto constitucional para a demarcação de terras indígenas, deixou assentado ser “vedada a ampliação de terra indígena já demarcada” (condição nº 17).
(...)
Ante o exposto, defiro o pedido de medida liminar tão-somente para garantir a manutenção dos assentamentos já realizados na referida área (Assentamento Nova Amazônia), vedando-se o acesso de novos grupos indígenas ao local. Determino, ainda, que a União e a FUNAI se abstenham de praticar quaisquer atos no sentido de reconhecer a referida área como terra indígena. (AC 2541/STF)
Ademais, os documentos de fls. 24-28 atestam que o registro do imóvel é do ano de 1943, muito anterior, portanto, à data de 5 de outubro de 1988, fixada como marco temporal de ocupação pela jurisprudência desta Corte no conhecido caso Raposa Serra do Sol, tal como explicitado em trechos da ementa do acórdão na PET nº 3388, Rel. Min. Carlo Britto, DJ 25.9.2009: “11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”.
(...)
Ante o exposto, defiro a medida liminar para suspender os efeitos do Decreto Presidencial de 21 de dezembro de 2009, que homologou a demarcação da Terra Indígena denominada Anaro, tão somente em relação ao imóvel de propriedade dos impetrantes, denominado Fazenda Topografia, até decisão final no presente mandado de segurança. (MS nº 28574/STF)
Contudo, tais ações ainda não mereceram julgamento definitivo perante a autoridade judiciária máxima do Estado.
Por fim, devemos observar que o próprio Ministro Relator da PET 3388, Ministro Carlos Ayres Brito, assim pronunciou, por ocasião da Reclamação nº 8070/STF:
Trata-se de reclamação constitucional, aparelhada com pedido de medida liminar, proposta por Agropecuária Fazenda Brasil Ltda, contra ato do Presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Ato consubstanciado na Portaria nº 270, de 25 de março de 2009, que constituiu grupo técnico “com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza cartorial e fundiária necessários à revisão dos limites da Terra Indígena Wawi”.
2. Argui a autora desrespeito à decisão deste Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388. Isto porque a ampliação da área indígena demarcada estaria expressamente proibida. Daí requerer a concessão de liminar para “suspender, imediatamente, os trabalhos de campo que estão sendo iniciados nesta data”.
3. Feito esse aligeirado relato da causa, passo à decisão. Fazendo-o, pontuo, de saída, não estarem presentes os requisitos para a concessão da liminar. É que há dúvida quanto ao próprio cabimento desta reclamação, uma vez que ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante. Ainda que assim fosse, a decisão deste Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 apenas vincularia os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública a partir de 31 de março de 2009, data de publicação da ata da sessão de julgamento (Rcl 3.473-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso; Rcl 2.576, Rel. Min. Ellen Gracie; ADI 711-QO, Rel. Min. Néri da Silveira). E o ato reclamado é de 25 de março de 2009. Ademais, não enxergo nenhum perigo na demora da prestação jurisdicional (periculum in mora), dado que apenas se constituiu grupo técnico para realização de estudos.
Assim, embora não possamos afirmar com veemência que as condicionantes trazidas pelo caso da T.I. Raposa Serra do Sol têm efeitos erga omnes a todos as demais terras indígenas e procedimentos de demarcação, podemos, claramente, afirmar que se trata de um novo rumo da jurisprudência constitucional a nortear - na ausência de normas constitucionais ou legais que disciplinem e esgotem as questões - a atuação administrativa da União e da FUNAI para as políticas públicas relativas aos direitos indígenas e suas terras tradicionalmente ocupadas.
[1] Salvo no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova, como ressalvado no próprio artigo. Afirma-se que a coisa julgada se opera secundum eventum litis.
[2] O conjunto de e precedentes é chamado de common law e vincula todas as decisões futuras, ou seja, com base no princípio da stare decisis a decisão se tornaria um precedente e vincularia os julgamentos futuros.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. A aplicabilidade das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e a demarcação de terras indígenas no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2012, 12:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29365/a-aplicabilidade-das-condicionantes-do-caso-raposa-serra-do-sol-e-a-demarcacao-de-terras-indigenas-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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