INTRODUÇÃO
A judicialização do direito à saúde tem sido um tema muito discutido na atualidade, compreendida como a provocação e a atuação do Poder Judiciário em prol da efetivação da assistência médico farmacêutica, sendo esta efetivação considerada, entre outros exemplos, como a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares.
Recentemente foi divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que tramitam na justiça brasileira 241 mil processos judiciais envolvendo processos versando sobre questões de saúde, de acordo com matéria publicada em O Estado de São Paulo, 29 de abril de 2011.
Nos últimos anos, houve uma "explosão" no número de processos judiciais contra os governos pedindo a disponibilização de drogas de alto custo, ou seja, é o efeito da ausência de medicamentos de ponta na lista das drogas cobertas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em especial aquelas usadas em tratamentos oncológicos, o que onera cada vez mais os cofres públicos.
O principal reflexo da judicialização é o aumento de gastos pelos governos para cumprir as decisões. Só o governo federal gastou R$ 134 milhões em 2010 no pagamento de remédios, segundo consta na mesma reportagem supra citada do O Estado de São Paulo.
O grande número de processos existentes no Brasil, no tocante à judicialização do direito à saúde, gera inúmeras conseqüências, sobretudo nos desencontros relacionados à previsão orçamentária que acarreta prejuízos aos planejamentos pré-estabelecidos pelo Poder Público.
Neste sentido, o presente trabalho é baseado, tendo como distribuição do conteúdo elaborado em três capítulos e respectivas divisões, sendo no primeiro capítulo realizado um direcionamento sobre “Direito de Saúde”, com a explanação sobre a origem histórica do Direito à Saúde; o direito a saúde como direito constitucional; alcance do Direito de Saúde; o SUS e como é seu funcionamento no Brasil.
O segundo capítulo dispõe sobre judicialização do direito de saúde, com seu esclarecimento colocado na seguinte divisão: a teoria da reserva do possível e suas implicações no direito a saúde; a lei do SUS; o afrontamento das competências; explicação sobre os conflitos existentes nas três esferas do poder executivo.
O terceiro capítulo trata das consequências da judicialização do direito de saúde, fazendo uma análise dos prováveis motivos do grande número de processos que tramitam relacionados ao direito da saúde; o que gera a judicialização do direito á saúde; finalizando com a posição da jurisprudência pátria sobre o tema, sobretudo os posicionamentos atuais do Supremo Tribunal Federal (STF); realizando por fim, uma conclusão do referido tema, considerando posições doutrinárias e jurisprudências.
1 DIREITO DE SAÚDE
1.1 Breve origem histórica
No decorrer da história, a sociedade deparou-se com a necessidade de amparar alguns direitos indispensáveis ao ser humano, dentre eles, um primordial para a sociedade, que se deveria resguardar um bem jurídico norteador de todos os demais direitos pertencentes ao ordenamento jurídico, sendo este bem tão essencial, denominado “bem da vida”, e vida esta com dignidade, baseada nas mudanças sociais, e nas exigências de uma sociedade que rogou tal proteção.
Como basilar no exercício da cidadania do ser humano, a saúde é de grande valor para a sociedade, pois refere-se à qualidade de vida, consolidando-se como forma necessária no campo dos direitos fundamentais sociais.
Os direitos fundamentais são produtos de incontáveis mobilizações sociais e mutações sofridas, amplo evolução histórica e social. Dentre eles, o direito à saúde, é uma reivindicação antiga, porém que sua implementação e inclusão ao rol de direito humanos é recente, tendo na Idade Média o primeiro documento admitido como declaração de direitos, sendo a “Magna Carta da Inglaterra”, em 1215, para, por meio da cobrança dos barões ingleses ao rei, João Sem Terra, assinar o documento que lhes assegurava determinados direitos.
A cláusula 39 da Magna Carta assim dizia:
Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido, ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra. (Carta Magna da Inglaterra, 1215)
Na Idade Média a doença era avaliada um castigo divino, sendo que mesmo que alguns bradassem pelo direito à saúde, este era arduamente disciplinado.
No Período Industrial, isolava-se o doente, e era a própria comunidade que organizava e conservava os hospitais, porém deixando a desejar quanto às exigências básicas. Já com a Revolução Industrial a urbanização trouxe muitos progressos, tendo neste panorama a necessidade dos industriais em manter saudáveis os operários para determinados serviços em que eram direcionados.
O processo prosseguiu, com operários se conscientizando quanto às melhorias de meios de trabalhos, e à contínua procura por melhores condições, que foram fatores imprescindíveis para tais mudanças, surgindo muitas alterações. O Estado passou a praticar a fiscalização de tais situações, colaborando deste modo em benefício das condições dignas de saúde no trabalho.
Tal conceito evoluiu com no decorrer da história, sendo em cada época visto de um jeito, relacionando-se com o momento em questão atravessado, refletindo-se as necessidades individuais e coletivas.
O direito à saúde surge, no ramo do Direito público, com o relevo e garantia do Estado do direito à proteção da saúde. É admitido ao poder público intervir, regulamentar, autorizar, proibir ou fiscalizar. Implementa-se então, em 26 de julho de 1946, como órgão integrante da Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), que simboliza o marco teórico-referencial do conceito de saúde.
É fornecida pela OMS, a definição de saúde como sendo: "o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social e não consiste somente na ausência de doença ou de enfermidade". Este conceito compreende uma vida associada na convivência social, possuindo como finalidade a qualidade de vida, que se conecta a um conjunto de direitos inerentes às pessoas humanas e ao ambiente em que integram.
No entanto, foi com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, que se adotou posição imponente favorável ao direito à saúde, de acordo com o seu artigo 25:
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e a sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto a alimentação, ao vestuário, ao alojamento, a assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
Ainda nesse sentido, tem-se o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1976, que atenta-se ao direito à saúde, assinalando mecanismos para garantir seu pleno exercício, como prevê seu art. 12: "Os Estados-partes no Presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental." Para que se realize essa proteção integral à saúde das pessoas, o Pacto constitui a obrigação de os Estados adotarem medidas que são imprescindíveis para garantir, como exemplo: a) a diminuição da mortinatalidade (conjunto de crianças que nascem mortas em local e período determinados) e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças; b) a melhoria de todos os aspectos da higiene do trabalho e do meio ambiente; c) a prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.
Datada de 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos, chamada também de Pacto de San José da Costa Rica, prevê no seu art. 4º o reconhecimento do direito à vida desde a sua concepção, e no art. 5º trata que toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
O Brasil foi signatário tanto da Declaração Universal, quanto dos Pactos supra mencionados, entretanto, inobstante o importância de tais documentos, delongou a adotar providências legislativas internas que garantissem aqueles direitos declarados como dignos de proteção.
1.2 O direito à saúde como direito constitucional
A história da organização de ações e serviços públicos de saúde no Brasil é datada de pouco tempo. Analisando todas as constituições brasileiras, no que diz respeito especificamente ao direito à saúde, verifica-se inexistência de disposições próprias no texto das constituições brasileiras de 1824 e de 1891, nenhuma destas determinou como responsabilidade do Estado a execução de ações e serviços de saúde. Verifica-se que apenas depois da terceira década do século XX, na Constituição de 1934, é que deram início em se atentar com a saúde pública enquanto objeto da Lei Maior do País.
Na Constituição de 1934, que tem inegável fundo social, passaram a existir indicações de preocupação sanitária, com a previsão de competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios para adoção de "medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade dos infantes; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis" (artigo 138, letra "f"). Entretanto, a Constituição de 1937, não reproduziu o texto da Constituição de 1934, tampouco a Constituição de 1946, embora o elenco de direitos individuais do seu art. 141 aprecie a "inviolabilidade dos direitos concernentes à vida", e normas de evidência protetiva ao trabalhador, no art. 157, com referência à higiene e segurança do trabalho (inciso VIII), assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica preventiva ao trabalhador e à gestante (inciso XIV). O Brasil, mesmo sendo signatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Constituição de 1967, a única alusão ao direito à saúde foi o art. 8º, XIV que delegou à União competência para traçar planos nacionais de educação e saúde. Porém, foi com a chegada da Constituição da República Federal Brasileira de 1988 (CRFB/1988), que a saúde passou a pertencer aos chamados direitos sociais que se fundamentam na igualdade entre as pessoas, sendo assim um direito do homem.
A CRFB/1988 faz menção ao direito à saúde em dois momentos distintos: no caput do art. 6º, elencando-o como um direito social, e no art. 196 ao art. 200, onde são traçadas, mediante a elaboração de políticas sociais e econômicas por parte do Estado, as diretrizes da promoção à saúde e fica estabelecida a criação e as atribuições do Sistema único de Saúde (SUS).
O direito à saúde é estabelecido pelo artigo 196 da CRFB/1988 como: “direito de todos” e “dever do Estado”, garantido mediante “políticas sociais e econômicas” que “visem à redução do risco de doenças e de outros agravos”, “regido pelo princípio do acesso universal e igualitário” às “ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. Sobre cada um desses elementos, observa-se:
1) “Direito de todos”: pode-se identificar, na redação do referido artigo constitucional, tanto um direito individual quanto um direito coletivo à saúde.
A dimensão individual do direito à saúde foi enfatizada pelo Ministro Celso de Mello, relator do AgR-RE n.º 271.286-8/RS, quando reconhece o direito à saúde como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional. Destaca o Ministro que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente”, impondo aos entes federados um dever de prestação positiva. Concluiu que “a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (CRFB/1988, art. 197)”, legitimando a atuação do Poder Judiciário nas hipóteses em que a Administração Pública descumpra o mandamento constitucional em apreço. (AgR-RE N. 271.286-8/RS, Rel. Celso de Mello, DJ 12.09.2000).
2) “Dever do estado”: o dispositivo constitucional esclarece que, para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
O dever de promover políticas públicas que tendem à redução de doenças, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde está expresso no artigo 196.
A competência comum dos entes da Federação para cuidar da saúde consta do art. 23, II, da CRFB/1988. União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade.
3) “Garantido mediante políticas sociais e econômicas”: a garantia mediante políticas sociais e econômicas ressalva, exatamente, a necessidade de elaboração de políticas públicas que efetive-se o direito à saúde por meio de alternativa alocativas.
4) “Políticas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”: tais políticas visam à diminuição do risco de doença e outros agravos, de forma a ratificar sua dimensão preventiva. As ações preventivas na área da saúde foram, até mesmo, indicadas como prioritárias pelo artigo 198, inciso II, da CRFB/1988.
5) “Políticas que visem ao acesso universal e igualitário”: o princípio do acesso igualitário e universal avigora a responsabilidade solidária dos entes da Federação, garantindo, inclusive, a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie” (art. 7º, IV, da Lei 8.080/90).
6) “Ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”: o estudo do direito à saúde no Brasil leva a concluir que os problemas de eficácia social desse direito fundamental devem-se muito mais a assuntos ligados à implementação e à manutenção das políticas públicas de saúde já existentes - o que implica também a composição dos orçamentos dos entes da Federação - do que à falta de legislação específica. Em outros termos, o problema não é de inexistência, mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados.
O art. 199 e seus parágrafos regem a atuação complementar da iniciativa privada relativa à assistência oferecida pelo SUS.
Em continuação, cerrando o rol de artigos que abordam a saúde de forma direta no contexto da seguridade social, temos o art. 200, que enumera várias competências do SUS, quais sejam: a) controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; b) executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; c) ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; d) participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; e) incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; f) fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; g) participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; h) colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) igualmente possui regras tratando da saúde, como a do art. 53, inc. IV, que garantiu aos ex-combatentes da 2ª Guerra Mundial e seus dependentes a assistência médica e hospitalar gratuita, e outras normas que, em geral, prevêem percentuais mínimos de alocação de recursos para o setor de saúde (art. 55, 77 e outros) ou tratam do Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza, criado pela Emenda Constitucional n. 31, de 14/12/2000, que tem como fim viabilizar a todos os brasileiros acesso a condições dignas de subsistência, cujos recursos serão postos em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida.
Como se verifica, abundantes são as normas constitucionais que tratam, diretamente, da saúde, o que evidenciar a preocupação do constituinte, em dar plena efetividade às ações e programas nessa área.
1.3 Alcance do direito de saúde
Em 1988, a CRFB/1988 universalizou o direito ao acesso gratuito. Para assegurá-lo, o Estado foi encarregado não somente da regulamentação e fiscalização, como também do planejamento das ações e serviços que se mostrassem necessários, por órgãos federais, estaduais e municipais, de administração direta ou indireta; por fundações mantidas pelo Poder Público; por entidades filantrópicas; e pela contratação, em caráter complementar, de clínicas, laboratórios e hospitais privados. Segundo Silva:
a saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. O direito a saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem. O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo. (SILVA, 2012)
A elaboração das ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o SUS, é realizada em conformidade com as diretrizes previstas no artigo 198 da CRFB/1988, e obedece ainda aos seguintes princípios, que informam a sua atuação no sentido de propiciar a saúde à população, como versa os incisos I e II do art. 7º da Lei 8080/90:
I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
Os princípios que orientam o SUS são a universalidade, a integralidade e a equidade. O que é a universalidade propõe é garantir o acesso de toda e qualquer pessoa, a todo e qualquer serviço de saúde, seja ele público ou privado contratado pelo Poder Público. O princípio atua como um grande viabilizador do direito à saúde e vem expresso no art. 196 da CRFB/1988.
O princípio da equidade funda-se na noção de liberdade e igualdade, pregando que todo o cidadão que necessite de ações e serviços da saúde deve ter direito assegurado de acesso aos serviços. A equidade visa a corrigir a desigualdade evitável e injusta, passíveis de intervenção de políticas dos diversos setores, inclusive o da saúde.
O princípio da integralidade implica que as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde do mesmo jeito que se compõem num todo, não podendo ser compartimentalizadas. As unidades constitutivas do SUS são constituídas como um todo indivisível, capaz de prestar assistência integral.
Extrai-se, portanto, que o atual Estado brasileiro adota o SUS como o meio de garantir o direito à saúde. Este sistema se constitui numa rede hierarquizada e descentralizada, orientada pelos princípios da universalidade, equidade e integralidade.
Também sobre o alcance do Direito de Saúde, pouco antes da edição da Lei n. 8.080/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já previa no §2º do seu art. 11:
Art. 11. É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. § 2º Incumbe ao poder público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.
Em 1º de outubro de 2003 foi editada a Lei n. 11.741, Estatuto do Idoso, que dispõe:
Art 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos. § 2o Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.
Observa-se, portanto, que as legislações infraconstitucionais garantem expressamente não só a assistência farmacêutica, como ainda o fornecimento de “insumos terapêuticos” (tais como órteses, próteses, cadeiras de rodas, marcapassos, etc.). Neste último caso, a previsão legal destina-se tão só às crianças, adolescentes e idosos, que possuem tratamento prioritário em nossa sociedade por explícita previsão constitucional.
Com objetivo de promover a assistência farmacêutica no âmbito do SUS, o Ministério da Saúde, amparado nessa legislação infraconstitucional, estabelece uma listagem de medicamentos que devem estar disponíveis em toda rede, à qual comina a designação “Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename)”.
A elaboração dessa listagem, e também sua atualização periódica – que é ditada expressamente pela política nacional de medicamentos, designada pela Portaria MS 3916/98, ressalta as patologias e agravos à saúde mais relevantes e prevalentes, respeitadas as diferenças regionais do país, importando-se com vários critérios, tais como: a demonstração da eficácia e segurança do medicamento; a vantagem com relação à opção terapêutica já disponibilizada (maior eficácia ou segurança ou menor custo); e o oferecimento de concorrência dentro do mesmo subgrupo, como estratégia de mercado.
A distribuição gratuita de medicamentos se dá por intermédio do SUS e busca desempenhar a promessa constitucional da universalização do acesso à saúde, tendo em vista que medicamentos para tipos distintos de doença são proporcionados a toda população. A instituição dos medicamentos genéricos foi uma das ações governamentais que buscou promover o acesso universal à saúde.
Observa-se que o alcance do Direito de Saúde é assegurado nos dispositivos supra mencionados, dentre outros, pois sendo a saúde um direito social, tem-se que ela deve ser implantada por meio de políticas públicas.
1.4 O Sistema Único de Saúde e como é seu funcionamento no Brasil
O SUS é fruto do processo de lutas e conquistas dos direitos fundamentais, institui o princípio da universalização da saúde, resguardando a dignidade da pessoa humana (o mínimo existencial), protegendo o próprio direito a vida. O SUS é o principal instrumento para realizar a política de saúde pública no país, efetivar o direito do cidadão e cumprir o dever do Estado.
O SUS pode ser avaliado como uma das maiores conquistas sociais consagradas na CRFB/1988. Seus princípios apontam para a democratização nas ações e nos serviços de saúde que deixam de ser restritos e passam a ser universais, da mesma forma, de centralizados passam a nortear-se pela descentralização.
Como uma de suas diretrizes principais, o SUS realça a regionalização e hierarquização da rede serviços de saúde, apresentando como princípios a descentralização político-administrativa, o atendimento integral e igualitário e a participação da comunidade (art.198 da CRFB/1988 e art. da 7º. Lei 8080/90).
O SUS consiste no conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, incluídas as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos e medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde. Representa a materialização de uma nova concepção acerca da saúde em nosso país. Antes a saúde era entendida como “o Estado de não doença", o que fazia com que toda lógica girasse em tomo da cura de agravos à saúde. Essa lógica, que significava apenas remediar os efeitos com menor ênfase nas causas, deu lugar a uma nova noção centrada na prevenção dos agravos e na promoção da saúde. Para tanto, a saúde passa ser relacionada com a qualidade de vida da população, a qual é composta pelo conjunto de bens que englobam a alimentação, o trabalho, o nível de renda, a educação, o meio ambiente, o saneamento básico, a vigilância sanitária e farmacológica, a moradia, o lazer, etc.
Suas ações e serviços são executados diretamente ou mediante participação complementar da iniciativa privada. Sua direção é única, sendo exercida no âmbito da União pelo Ministério da Saúde, no âmbito estadual pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente e nos Municípios pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.
Nos seus âmbitos administrativos, a União, os Estados e os Municípios exercerão entre outras competências: administração dos recursos orçamentários e financeiros destinados à saúde; acompanhamento, avaliação e divulgação do nível de saúde da população; organização e coordenação do sistema de informação em saúde; promover a articulação da política e dos planos de saúde; fomentar, coordenar e executar programas e projetos estratégicos e de atendimento emergencial entre outros.
O SUS está baseado no financiamento público e na cobertura universal das ações de saúde. Dessa forma, para que o Estado possa garantir a manutenção do sistema, é necessário que se atente para a estabilidade dos gastos com a saúde e, consequentemente, para a captação de recursos.
O financiamento do SUS, nos termos do art. 195, opera-se com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. A Emenda Constitucional n.º 29/2000, com vistas a dar maior estabilidade para os recursos de saúde, consolidou um mecanismo de cofinanciamento das políticas de saúde pelos entes da Federação.
A Emenda adicionou dois novos parágrafos ao artigo 198 da CRFB/1988, assegurando percentuais mínimos a serem direcionados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios para a saúde, visando a um aumento e a uma maior estabilidade dos recursos. No entanto, o § 3º do art. 198 dispõe que caberá à Lei Complementar estabelecer: os percentuais mínimos de que trata o § 2º do referido artigo; os critérios de rateio entre os entes; as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde; as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União; além, é claro, de especificar as ações e os serviços públicos de saúde.
O art. 200 da CRFB/1988, que estabeleceu as competências do SUS, é regulamentado pelas Leis Federais 8.080/90 e 8.142/90.
Apesar de ser um grande passo para possibilitar a efetivação do acesso à saúde, o SUS, como sistema jurídico, é limitado, faltando-lhe dinâmica para assegurar de maneira igualitária e eficiente o direito à saúde do cidadão brasileiro. Neste contexto emerge a atuação do Judiciário no intuito de tentar corrigir e contornar eventuais falhas do atual sistema de saúde.
Observando a atual limitação do SUS e das políticas de saúde pública no Brasil, percebe-se, como resultado lógico, uma crescente demanda de ações buscando na Justiça a garantia do acesso à saúde. O Judiciário torna-se a válvula de escape para o cidadão sem recursos financeiros para conseguir tratamento médico e remédios, falando-se assim, em judicialização do acesso à saúde.
2 JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DE SAÚDE
2.1 A teoria da reserva do possível e suas implicações no direito à saúde
No que tange a concretização dos direitos fundamentais relacionados à saúde, alguns aspectos precisam ser destacados. Deve ser levada em consideração a íntima relação do direito à saúde com o direito à vida e também com o princípio basilar da dignidade da pessoa humana. Conjuntamente, é preciso ponderar na política de saúde pública a questão orçamentária da Administração Pública, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, além dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Filósofos e juristas defendem a tese de que o Estado precisa garantir o "mínimo existencial", ou seja, os direitos básicos das pessoas, sem intervenção para além desse piso. Articulam, ainda, que esse mínimo esta sujeito à avaliação do binômio necessidade/capacidade, não exclusivamente do provedor, mas também, daqueles a quem se prometeu a implementação da satisfação daquelas necessidades. Além disso, por força do princípio da dignidade humana, todo ser humano possui um direito ao mínimo existencial, o que indica um direito aos meios que possibilitem a satisfação das necessidades básicas, entre as quais a necessidade de ter saúde.
É contrário ao atendimento do “mínimo existencial” a insuficiência dos recursos financeiros do Estado para sua concretização. Essa insuficiência vem sendo aferida pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal (STF), na esfera daquilo que se convencionou designar “reserva do possível”. A “reserva do possível”, ao se relacionar à possibilidade financeira do Estado, consubstancia a disponibilidade de recursos materiais para realização de eventual condenação do Poder Público na prestação de assistência farmacêutica.
Nos autos da ação civil pública n° 2003.81.00.009206-7, promovida pelo Ministério Público Federal em face da União, do Estado do Ceará e do Município de Fortaleza perante a 4ª Vara Federal de Fortaleza-CE, citado pelo juiz federal George Marmelstein Lima, o procurador regional dos direitos do cidadão na Paraíba, Duciran Van Marsen Farena, argumenta:
As alegações de negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode é deixar que a evocação da reserva do possível converta-se "em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de direitos sociais (FARENA, 1997, p. 12).
Não obstante, de igual maneira em que não existe dúvidas de que a assistência farmacêutica está abrangida no conceito de mínimo existencial, também não há qualquer dúvida de que o mais visível limite à atuação judicial é o postulado da reserva do possível. No entanto, é também o mais complicado de ser delimitado, mormente quando diz respeito à possibilidade financeira de cumprimento da ordem judicial.
É essencial um desvelo ao se dar efetividade a um direito fundamental que demanda em volumosos gastos financeiros aos poderes públicos. Sobre isso, pode-se imaginar, por exemplo, uma ordem judicial que, fundamentada no direito à saúde, forçasse um pequeno Município a construir um amplo hospital adequado para atender toda a sua população com os mais avançados equipamentos médicos. Provavelmente, uma decisão dessa ocasionaria a total exaustão orçamentária do Município, a não ser que fosse consistentemente baseada em dados concretos que fossem aptos de garantir que existe abundante dinheiro para a construção do hospital, o que, em última apreciação, faz regressar à reserva de consistência, ou seja os dados reais de que dispõe o administrador público, que está intimamente ligada à reserva do possível.
Tratando-se, todavia, de obrigação de fazer (construir um posto de saúde, fornecer medicamentos, realizar um tratamento médico, etc.) que se encontre dentro da reserva do possível, o direito à saúde não pode deixar de ser consumado sob a alegação de que a cumprimento de despesa ficaria dentro da esfera da estrita conveniência do administrador.
O juiz não deve ficar indiferente, em razão da reserva do possível, quanto à viabilidade material de sua decisão, em especial na matéria de saúde. Deve-se verificar até onde sua ordem está sujeita ao atendimento sem arriscar o equilíbrio financeiro do sistema único de saúde, sobretudo em período de crises econômicas.
Porém, deve ser realizada uma advertência: as alegações de negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível precisam sempre ser analisadas com cautela. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidade financeira de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se permitir é que a evocação da reserva do possível converta-se
Em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de direitos sociais” (FARENA, 1997, p. 12).
Destarte, o argumento da reserva do possível apenas deve ser acolhido se o Poder Público evidenciar de maneira satisfatória que a decisão acarretará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais, o que, em última análise, implica numa ponderação, com base na proporcionalidade em sentido estrito, dos interesses em jogo.
Do mesmo modo, deve-se atentar às dificuldades administrativas na implementação de ordens judiciais. Mesmo pequenas obrigações de fornecimento de remédios exigem procedimentos administrativos para a compra desses medicamentos (procedimento licitatório ou até procedimento de dispensa ou inexigibilidade de licitação, empenho, etc.). É evidente que a exigência de licitação não pode ser barreira para o cumprimento da ordem. Mesmo assim, não pode o juiz ficar impassível quanto a essa dificuldade. Somente com o diálogo aberto entre o Judiciário e os Poderes Públicos será admissível conciliar o respeito às ordens judiciais com as exigências da burocracia administrativa sem que haja desgaste na harmonia entre os poderes.
É possível contornar com soluções criativas as barreira impostas pela reserva do possível. Como, por exemplo, quando os Tribunais têm imposto como obrigação ao Poder Público não a realização imediata do direito a ser concretizado, mas sim a imposição de se incluir na proposta orçamentária anual seguinte os recursos necessários à futura concretização do direito.
Outras saídas podem ser sugeridas, como a busca de parcerias com organizações privadas que se dispõe em ajudar pessoas que carecem de um determinado tratamento.
Neste sentido, um conveniente parecer foi colocado pelo jurista Marcos Gouvêa. Segundo o referido autor, fundamentado na regra processual que autoriza que terceiros cumpram uma obrigação de fazer, às expensas do devedor, é possível autorizar, por exemplo, que uma farmácia forneça medicamentos a um determinado paciente, devendo, em seguida, o Estado ressarcir os custos dos medicamentos. Contudo, como dificilmente uma farmácia iria aderir em fornecer um medicamento, pois poderia o Poder Público ser inadimplente quanto a essa especificidade, o referido jurista propõe uma saída interessantíssima:
Dificilmente uma empresa concordaria em fornecer medicamentos para posterior cobrança, em face do Estado, a não ser que tivesse dívidas que pudesse abater contra este. Não seria inviável – tendo em vista a essencialidade da prestação em tela, repita-se à exaustão – que o juiz autorizasse uma farmácia a fornecer determinado medicamento, deferindo-se a compensação desta despesa com o ICMS, ou outro tributo. Compensações tributárias normalmente exigem lei autorizativa, mas a excepcionalidade da prestação justificaria tal aval do Judiciário. Possivelmente os tribunais superiores não reformariam uma decisão nesta trilha, diante do tanto que já permitiram em sede do direito à medicação. (GOUVÊA, 2003, p. 103).
O parecer também pode ser estendido a outros casos e não exclusivamente a fornecimento de remédios. Assim, por exemplo, o magistrado pode determinar que um hospital particular execute um específico tratamento cirúrgico em um paciente acobertado pelo SUS, permitindo que o hospital faça a compensação dos gastos realizados com a operação com tributos de responsabilidade do ente demandado.
O direito de social saúde ainda se depara na reserva do possível com um limite à sua efetividade na medida em que o custo proveniente da prestação deste direito estabelece a adequação das receitas públicas à disponibilidade dos recursos. No processo de concretização do direito à saúde – de implantação sempre dispendiosa – incumbe ao Judiciário a observância do binômio razoabilidade da pretensão e disponibilidade de recursos públicos como elementos essenciais à efetivação deste direito, sob pena de o descomedido número de decisões inócuas e irrazoáveis conduzirem à falência o Estado perante a impossibilidade de cumprir todas essas decisões.
2.2 A lei do Sistema Único de Saúde
Tornando-se o Estado responsável pela promoção, proteção e recuperação da saúde, a CRFB/1988 incorporou o SUS como uma nova formulação política e organizacional para o reordenamento dos serviços e ações de saúde.
Para tanto, o Poder Legislativo aprovou as Leis nº 8.080 e 8.142 , ambas de 1990, servindo estas leis de baliza do SUS.
A Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990, Lei Orgânica da Saúde, foi elaborada a fim de regularizar os artigos 196 e seguintes da CRFB/1988, instituindo o SUS, dispondo sobre suas características, custeio entre outros. Regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado. Seu artigo 2º, caput e §1º ratifica o dever do Estado em promover a devida assistência à saúde:
Art. 2°. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1990b, p.1).
Mesmo consolidado o dever do Estado em prover a assistência integral à saúde, esta lei em questão solidariza esta responsabilidade com as demais pessoas, empresas, família e sociedade em geral, segundo disposto no §2° do mencionado artigo “§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.” (BRASIL, 1990b, p.1). O art. 4º da Lei nº 8.080/90 apregoa ser o SUS o conjunto de ações ou serviços de saúde prestados pelo Estado, seja por meio da administração direta como pela administração indireta.
A Lei nº 8.142/90 dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS, nas Conferências de Saúde e Conselhos de Saúde em seus diferentes níveis de organização, podendo os cidadãos, dessa forma, controlar e fiscalizar as políticas de saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde entre outras providências.
Constituem o SUS as ações e os serviços de saúde de instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e Fundações mantidas pelo Poder Público. Seus objetivos são: a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, o dever do Estado de garantir a saúde; a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas.
O art. 6º, estabelece como competência do Sistema a execução de ações e serviços de saúde descritos em seus 11 incisos, quais sejam: a execução de ações de vigilância sanitária, de vigilância epidemiológica, de saúde do trabalhador e de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica; a participação na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico; a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde; a vigilância nutricional e a orientação alimentar; a colaboração na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho; a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção; o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde; a fiscalização e a inspeção de alimentos, água e bebidas para consumo humano; a participação no controle e na fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; o incremento, em sua área de atuação, do desenvolvimento científico e tecnológico; a formulação e execução da política de sangue e seus derivados.
O SUS deve atuar em campo demarcado pela lei, como dispõe o art. 200 da CRFB/1988. Será a lei que deverá conferir as proporções, sem, contudo, cercear o direito à promoção, proteção e recuperação da saúde, tendo como elemento norteador a dignidade humana.
Observa-se que, igualmente tratado na CRFB/1988, a legislação infraconstitucional preocupou-se em delinear este consagrado direito à saúde, disciplinando sua maneira de execução, e ainda, majorando a responsabilidade do Poder Público por tal efetivação, sendo que o dever de assistência do Estado engloba todas as ações preventivas e paliativas em relação à saúde.
2.3 O afrontamento das competências
A CRFB/1988 determina que o acesso à saúde é um direito fundamental e o Estado tem a obrigação de assegurá-lo a todos os brasileiros. Nem sempre a assistência farmacêutica implementada pelo Poder Público atende às necessidades do paciente, ora porque as peculiaridades da moléstia exigem medicamentos especiais e/ou tornaram ineficazes os medicamentos constantes da listagem, ora porque houve falha na atualização da Rename. Não raro, a assistência farmacêutica também falha por questões administrativas, tal como entraves no procedimento de aquisição ou distribuição do medicamento.
A ausência ou insuficiência dos serviços de saúde prestados pelo Estado – abrangidos nessa prestação a assistência farmacêutica e o fornecimento de insumos terapêuticos ameaça o direito à vida e, em muitos casos, é capaz de produzir prejuízo irreparável a esse direito. O inciso XXXV do artigo 5º da CRFB/1988 versa que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Neste contexto, é legítima a intervenção jurisdicional que visa a apartar lesão ou ameaça a esse direito.
Em abundância, pessoas procuram o Poder Judiciário para garantir esse acesso o que deu origem a um processo denominado judicialização da saúde. A judicialização do acesso à saúde passar a existir com a possibilidade do Poder Judiciário editar determinações à Administração Pública para que forneça ações e serviços de saúde a uma determinada pessoa. As demandas judiciais mais correntes em relação à prestação da saúde referem-se precisamente à distribuição de medicamentos. Essa possibilidade de intervenção judicial referente ao serviço do Estado na prestação da saúde surge a partir do momento em que a CRFB/1988 adquire força normativa e efetividade.
Barroso assim discorre sobre o tema:
As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, convertem-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica. (BARROSO, 2012)[1].
Incumbe, portanto, ao Poder Judiciário tutelar os direitos fundamentais tendo como premissa a força normativa da CRFB/1988. O desempenho judicial, nesse caso, tem como parâmetro o núcleo essencial dos direitos fundamentais, pois deve ser convocado a agir sempre que um direito for aplicado indevidamente além de seu núcleo essencial.
Malgrado, uma enorme demanda tem assolado o Poder Judiciário em se tratando de distribuição de medicamentos por parte do Poder Público. Isso, de certa forma, afeta o sistema, considerando que o Estado não se mostra preparado para assumi-la, bem como a jurisprudência até o momento não adotou um critério para a concessão dos medicamentos, ora proferindo decisões extravagantes condenando a Administração a custear tratamentos caros, ora determinando a concessão de medicamentos de eficácia duvidosa. Ademais, não se definiu ainda qual entidade estatal União, Estados e Municípios devem ser responsabilizada para entrega de cada tipo de medicamento. Essas demandas judiciais terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo várias entidades federativas e mobilizando uma grande quantidade de agentes públicos, servidores e procuradores, acarretando um gigantesco dispêndio de recursos públicos, imprevisibilidade e desfuncionalidade na atividade jurisdicional.
A interferência do Judiciário em questões políticas do Estado é outro ponto que tem provocado controvérsias na comunidade jurídica. Quando o Judiciário decide que o SUS forneça algum medicamento ou tratamento a um paciente, ele interfere em toda a política estatal de ações e serviços de saúde. O excesso de demandas judiciais que têm por objeto a saúde provoca uma interferência ainda maior nas políticas públicas.
Germano Schwartz esclarece que
A saúde, como direito público subjetivo e fundamental do ser humano, quando lesionada, não pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Essa é, no constitucionalismo contemporâneo, a tarefa mais elevada do Poder Judiciário: garantir a observância e cumprimento dos direitos fundamentais do homem. (SCHWARTZ, 2001, p. 163).
A pluralidade de ações individuais também não torna legítima a adoção desse critério, pois muitas das ações são promovidas indevidamente. Ainda que assim não fosse, a possibilidade de atendimento da pretensão do paciente deve ser aferida com base nos elementos efetivamente demonstrados no processo, de modo que a mera alegação de existência de muitas ações não tem o condão de demonstrar que o Poder Público não possui recursos materiais para efetivação da assistência farmacêutica pleiteada.
Considerando que a condenação do Poder Público na prestação de assistência farmacêutica em sede de ação coletiva pode alterar significativamente o planejamento do Poder Público, é prudente que o magistrado atente para a “reserva do possível” na análise do caso concreto.
Essa cautela é necessária, inclusive, para que o Poder Judiciário não interfira/inviabilize a discricionariedade do Poder Executivo na elaboração de suas políticas públicas, afastando, assim, qualquer possibilidade de afronta ao pacto federativo. Somente com o diálogo aberto entre o Judiciário e os Poderes Públicos será possível conciliar o respeito às ordens judiciais com as exigências da burocracia administrativa sem que se desgaste a harmonia entre os poderes.
Resguarda-se a presunção de que o Legislativo e Executivo, ao elaborarem as listas de medicamentos, avaliaram, em primeiro lugar, as necessidades prioritárias a serem supridas e os recursos disponíveis, a partir da visão global que detêm de tais fenômenos. Assim como avaliaram os aspectos técnico-médicos envolvidos na eficácia e emprego dos medicamentos.
A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, conhecido também como o núcleo essencial de tais direitos. Cabe, assim, ao Legislativo, Executivo e Judiciário realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.
2.4 Explicação sobre os conflitos existentes nas três esferas do Poder Executivo
Sendo a saúde um direito social, tem-se que ela deve ser implementada por meio de políticas públicas, estas dependentes de recursos orçamentários. A CRFB/1988, portanto, não apenas estabeleceu o dever do Estado em prover a saúde, como também indicou as chamadas fontes de custeio. O objetivo do controle sobre os recursos aplicados na saúde é a conquista de um SUS de qualidade.
Com a Emenda Constitucional nº 29/2000, fixou-se a estrutura mínima do financiamento da saúde. O §1º do art. 198 da CRFB/1988 prevê que a saúde será financiada com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Vê-se que todos os entes federativos contribuem para o financiamento da saúde, bem como é reservada para a saúde parte dos recursos oriundos da seguridade social.
No §2º do art. 198 da CRFB/1988, estipulou-se sobre quais impostos devem ser retirados os recursos mínimos destinados à saúde. Ainda, o §3º do art.198 define que Lei Complementar, que será reavaliada a cada cinco anos, estabelecerá sobre os percentuais dos impostos aplicados na saúde; os critérios de rateio dos recursos da União destinados aos outros entes federativos e dos Estados destinados aos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; por derradeiro, as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.
Além disso, o artigo 77 do ADCT prescreve os recursos mínimos a serem destinados à saúde pelos entes federativos, sendo que o valor da União será determinado a partir do crescimento anual do PIB, os Estados e o Distrito Federal deverão destinar à saúde 12% dos recursos próprios provenientes dos impostos e os Municípios deverão destinar 15% dos recursos próprios provenientes de impostos. O §4º do art. 77 do ADCT diz que, na ausência de lei complementar a que se refere o art. 198, §3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo. Isso significa que, não havendo lei complementar própria, as disposições do art. 77 do ADCT continuarão vigentes no ponto em que define os percentuais mínimos a serem destinados por cada ente político no trato da saúde, inclusive. O art. 4º da Lei nº 8.142/90 prevê a existência de um Fundo de Saúde e de um Conselho de Saúde para cada Estado, Município e para o Distrito Federal. Os Fundos de Saúde são órgãos criados exclusivamente para receber os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios oriundos da saúde, sendo acompanhado e fiscalizado pelos Conselhos da Saúde, na forma do §3º do art. 77 da ADCT.
Contudo, os recursos estatais são escassos, assim como a produção de medicamentos também é. O Estado simplesmente não pode proceder à distribuição indiscriminada de medicamentos, por isso são planejadas políticas públicas que almejam uma distribuição equilibrada e eficaz, que procura favorecer as pessoas mais carentes. Interessante a formulação do conceito de política pública levada a cabo por Machado:
Conceitua-se política pública como um fenômeno vinculado ao interesse público, de natureza político-jurídica, elaborado, planejado ou executado pelo Estado para a realização de objetivos socialmente relevantes, com vistas à concretização dos direitos fundamentais e à consolidação do Estado Democrático de Direito. (MACHADO, 2012)[2]
Não é demais ressaltar que as políticas públicas estatais referentes ao fornecimento de medicamentos devem ser consentâneas com a concretização dos direitos fundamentais, visto que este é o dever do Estado.
A respeito da competência administrativa dos entes federativos quanto ao fornecimento gratuito de medicamentos, o art. 23, II, da CRFB/1988 prescreve ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública.
A distribuição gratuita de medicamentos se dá por intermédio do SUS e procura realizar a promessa constitucional da universalização do acesso à saúde, tendo em vista que medicamentos para diferentes tipos de doença são oferecidos a toda população. O Ministério da Saúde, procurando formular uma Política Nacional de Medicamentos, editou a Portaria nº 3.916/98, que, entre outras coisas, define as atribuições de cada ente estatal quanto à disponibilização de medicamentos à população. Quanto à gestão federal, cabe a ela: prestar cooperação técnica e financeira às demais instâncias do SUS relativas à Política Nacional de Medicamentos; estabelecer normas e promover a assistência farmacêutica nas três esferas de Governo; implementar atividades de controle da qualidade de medicamentos; promover a revisão periódica e avaliação contínua do RENAME e destinar recursos para a aquisição de medicamentos, mediante repasse Fundo-a-Fundo para estado se municípios, definindo, para tanto, critérios básicos para o mesmo. À gestão estadual cabe, precipuamente: promover a formulação da política estadual de medicamentos, definir a relação estadual de medicamentos, com base no RENAME, e em conformidade com o perfil epidemiológico do estado; prestar cooperação técnica e financeira aos municípios no desenvolvimento de suas atividades e ações relativas à assistência farmacêutica; coordenar e executar a assistência farmacêutica no seu âmbito. Por sua vez, compete à gestão municipal: coordenar e executar a assistência farmacêutica no seu respectivo âmbito; assegurar a dispensação adequada dos medicamentos; definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME, decorrente do perfil nosológico da população, receber, armazenar e distribuir adequadamente os medicamentos sob sua guarda.
Além disso, a mencionada Portaria estabeleceu, dentre as suas diretrizes: a adoção da RENAME, que integra o elenco dos medicamentos considerados básicos e essenciais para atender a maioria dos problemas de saúde da população, devendo estar disponíveis aos segmentos da sociedade que dele necessitem; a reorientação da Assistência Farmacêutica, para que não se restrinja apenas à aquisição e à distribuição de medicamentos, devendo ser implementadas nesse campo, nas três esferas do SUS, todas as atividades relacionadas à promoção do acesso da população aos medicamentos essenciais.
Por fim, a Portaria nº 3916/GM, de 30 de outubro de 1998, prescreveu ser responsabilidade das esferas do governo no âmbito do SUS viabilizar o propósito desta Política de Medicamentos, qual seja, o de garantir a necessária segurança, qualidade, eficácia e qualidade dos medicamentos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais. É de ter em vista, portanto, que é dever do SUS distribuir à população os medicamentos considerados essenciais, tendo a Política Nacional de Medicamentos fixado as normas e diretrizes do controle dos medicamentos por parte do Estado, bem como a organização para a aquisição e distribuição dos medicamentos. Porém, a regulamentação normativa tem se mostrado pouco eficaz, vez que boa parte da população continua não tendo acesso nem aos medicamentos considerados essenciais, revelando aí um problema estrutural do SUS.
A saúde pode ser vista como um processo sistêmico que objetiva a prevenção e a cura de doenças, ao mesmo tempo em que visa à melhor qualidade de vida possível, levando-se em conta a realidade de cada indivíduo. O Estado promove a saúde a toda a população através do SUS, orientado pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade. É competência comum de todos os entes estatais, quais sejam, a União, Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da saúde.
3 CONSEQUÊNCIAS DA JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DE SAÚDE
3.1 Prováveis motivos do grande número de processos que tramitam relacionados ao direito da saúde
Inúmeras são as ações ajuizadas com o fim de coagir o Estado a prestar atendimento farmacêutico e, na maioria delas, nota-se um desvirtuamento na utilização dos instrumentos processuais postos pela lei à disposição da sociedade.
Esse desvirtuamento muitas vezes decorre da falta de informação dos operadores do direito, no que diz respeito às políticas públicas de saúde e aos aspectos técnicos que envolvem a prescrição medicamentosa, outras vezes decorre da má-fé de profissionais médicos e da indústria farmacêutica.
O ex-secretário da saúde do Estado de São Paulo, Dr. Luiz Roberto Barradas Barata, revelou a preocupação com esse desvirtuamento:
Nos últimos anos, o avanço da indústria farmacêutica tem sido notório. Entretanto, muitos produtos recém-lançados possuem, em maior ou menor grau, eficácia similar à de remédios já conhecidos, disponíveis no mercado e inclusos na lista de distribuição da rede pública de saúde. No entanto, os novos remédios custam muito mais que os atualmente padronizados pelo SUS. Outros produtos, comercializados fora do Brasil ou ainda em fase de testes, não possuem registro no país e não devem ser distribuídos pelo SUS, pois podem pôr em risco a saúde de quem os consumir. São justamente esses medicamentos que o Estado mais vem sendo obrigado a fornecer por pedidos na Justiça. (BARROSO, 2012)[3]
Dentro desse contexto, algumas cautelas ou critérios devem ser observados no manejo dos mecanismos processuais que viabilizam a intervenção jurisdicional na efetivação da assistência farmacêutica pelo Poder Público, a fim de se evitar prejuízos ao SUS e, conseqüentemente, à própria população. Porém, para que o Estado possa atender a esses preceitos legais, faz-se necessária a implementação de políticas públicas, no que tange à matéria de medicamentos e assistência farmacêutica, a fim de racionalizar a prestação coletiva. Por necessitar da atuação do Estado, implementando políticas públicas, os direitos sociais acabam por ficar limitados a uma atuação política dos legisladores e governantes. O que se deve observar, porém, é que o atual quadro político brasileiro depara-se com a situação de descaso frente às políticas públicas destinadas à efetivação do direito à saúde. Desse modo, imprescindível se faz intervenção do Poder Judiciário, com o escopo de concretizar tal direito fundamental, vez que a omissão do Estado, nesses casos, pode implicar na morte, degradação física ou psíquica do ser humano.
Ao decidir esse tipo de questão, o Judiciário precisa se ater ao fato de que, para desempenhar suas funções, o SUS e necessita de planejamento, e justamente por isso é que o Ministério da Saúde elabora políticas que delimitam seus serviços e ações, com o fim de melhor atender seus usuários, sempre tentando respeitar os princípios da dignidade, universalidade e isonomia. Ressalte-se que tais decisões são tomadas em um quadro de escassez de recursos disponíveis.
É sabido que o Judiciário não é o responsável por solucionar questões sobre alocação de recursos, mas, como esse tipo de demanda vem crescendo, e este não pode se eximir de julgar, então é necessário que se prepare melhor seus componentes para decidir os casos que envolvam direito à saúde, principalmente no que se refere à assistência farmacêutica. Analisando a jurisprudência que defere pedido de fornecimento de medicamentos, é possível perceber a falta de preparo dos magistrados, advogados e defensores públicos. É preciso ter cautela, respeitando não apenas o disposto no artigo 196 da CRFB/1988 de maneira extensiva, mas também o previsto nas políticas públicas estabelecidas pelo Poder Executivo. Ressalte-se, ainda, ser indispensável a melhor dilação probatória nos feitos que envolvam concessão gratuita de medicamentos, a fim de comprovar a real necessidade do medicamento pleiteado, bem como para evitar erros entre a doença alegada e o medicamento concedido, permitindo a racionalização do seu fornecimento.
Os magistrados precisam, além de observar somente a previsão legal, analisar se o medicamento consta da lista do Ministério da Saúde; se está previsto para ser fornecido gratuitamente; se possui registro na Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA); se o medicamento indicado é, realmente, o recomendado para a moléstia do paciente; se o médico que prescrever é especialista na área da doença do paciente; se a dosagem indicada realmente confere ao tratamento; se não existe outro medicamento que faça o mesmo efeito e que seja disponibilizado pelo Estado; se há medicamento genérico ou de menor custo que substitua o medicamento originariamente prescrito pelo médico. “O sistema jurídico deve pautar por uma política pública de maneira equitativa e universal” (BARROSO, 2007, p. 55).
Cabe ressaltar que os magistrados não são os únicos responsáveis pelo crescente número de ações judiciais que visam à concessão de medicamentos gratuitos pelo Estado. Esse contexto, como já citado anteriormente, muitas vezes decorre da falta de informação dos operadores do direito, no que diz respeito às políticas públicas de saúde e aos aspectos técnicos que envolvem a prescrição medicamentosa, outras vezes decorre da má-fé de profissionais médicos e da indústria farmacêutica.
Os laboratórios farmacêuticos, muitas vezes, interferem nesse processo de judicialização da saúde, uma vez que estão interessados no aumento da comercialização de seus medicamentos e, para isso, bombardeiam os médicos de propagandas, gerando a crença em milagres. Os médicos, por sua vez, acabam sendo seduzidos pela oferta da novidade, prescrevendo medicamentos que não constam da lista elaborada pelo Estado. Porém, tal prescrição tanto pode ser feita visando, efetivamente, um melhor tratamento ao paciente, quanto buscando o recebimento, por parte dos laboratórios, de algum benefício quando da indicação dos novos medicamentos.
O médico deve privilegiar a prescrição por medicamento genérico ou menor custo, deve privilegiar os medicamentos que constam nos Protocolos Terapêuticos, nas listas de medicamentos que são fornecidos gratuitamente.
Quanto aos laboratórios farmacêuticos, é necessário que o governo fiscalize sua atuação nos consultórios médicos, tendo em vista a concessão de vantagens aos médicos que prescrevem seus medicamentos, ou até mesmo que patrocinam pacientes a fim de ajuizar ação, com a finalidade de compelir o Estado a comprar seu medicamento. O Conselho de Farmácia também deve atuar para evitar que médicos venham a ter esse tipo de atitude.
A Administração Pública também precisa promover mudanças, organizando melhor o serviço, vendo as necessidades da população e os recursos disponíveis. Portanto, pelo o exposto, freqüentemente, médicos, laboratórios e judiciário são responsáveis pelo excesso de demandas judiciais cujo objeto é a concessão gratuita de medicamentos.
3.2 O que gera a judicialização do direito à saúde
A judicialização excessiva do acesso à saúde, além do farto dispêndio dos recursos públicos, muitas vezes acaba por ferir a igualdade do acesso á saúde pública pela população.
Barroso ressalta que:
“Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.” (BARROSO, 2012)[4]
Não raro, muitas pessoas se aproveitam da jurisdição para obter vantagens nos serviços fornecidos pelo SUS. Noutro ponto, os recursos estatais são de fato limitados para que sejam desperdiçados em demandas judiciais que não venham a possibilitar o acesso à saúde aos mais necessitados. Portanto, a judicialização excessiva do acesso à saúde compromete a universalização da saúde no ponto em que vem a estabelecer desigualdades entre cidadãos e dificulta a eficácia das políticas públicas de saúde, considerando que grande parte dos recursos alocados à saúde destina-se às demandas judiciais. Nesse momento surge a questão da colisão entre os direitos fundamentais daqueles que postulam judicialmente o acesso à saúde e a promessa constitucional da universalização da saúde.
A colisão entre o direito à vida e à saúde de uns e a promessa constitucional da universalização da saúde surge como o ponto central das demandas da saúde. A coletividade e o individual representam as duas formas de concretização da saúde, devendo harmonizar-se ao ponto de que um lado não prejudique o outro. Para uma atuação judicial adequada na distribuição de medicamentos, foram destacados os seguintes parâmetros: as ações individuais destinam-se apenas à dispensação dos medicamentos considerados essenciais inclusos na lista elaboradas pelos entes federais, exceto se o caso envolva risco à saúde, em que se admitirá a postulação de outros medicamentos; as ações coletivas servirão para a alteração da lista de medicamentos, seja para a inclusão de algum medicamento, seja para a substituição de um medicamento por outro mais eficaz. Deve haver nesse caso uma harmonização entre direitos, de forma que a necessidade de uns não prejudique as políticas coletivas de saúde.
O ex-secretário da saúde do Estado de São Paulo, Dr. Luiz Roberto Barradas Barata, coloca:
É importante ressaltar que a entrega de medicamentos por decisão da Justiça compromete a dispensação gratuita regular, já que os governos precisam remanejar recursos vultosos para atender situações isoladas. Em São Paulo, a Secretaria da Saúde gasta cerca de R$ 300 milhões por ano para cumprir ações judiciais para distribuição de remédios não padronizados de eficácia e necessidade duvidosas. Com esse valor é possível construir seis hospitais de médio porte por ano, com 200 leitos cada. Além de medicamentos, o Estado vê-se obrigado a entregar produtos como iogurtes, requeijão cremoso, queijo fresco, biscoitos, adoçante, leite desnatado, remédio para disfunção erétil, mel e xampu, dentre outros itens. Em 2004, por exemplo, chegou a ter de custear, por força de decisão judicial, a feira semanal para morador da capital. (BARROSO, 2012)[5]
Como exposto, a entrega de medicamentos por decisão da Justiça compromete a dispensação gratuita regular, já que os governos precisam remanejar recursos vultosos para atender situações isoladas.
Evidente que resulta da sentença grave lesão à saúde e às finanças públicas na medida em que, pela via judicial privilegia um Município na distribuição de recursos destinados ao financiamento do SUS, em detrimento dos demais. O Judiciário não pode se sobrepor à Administração ou fazer às vezes do Poder Executivo nas escolhas das metas e prioridades de investimentos, bem como no orçamento estadual ou municipal. Ponderando acerca dessa questão, destaca Luiz Carlos Romero:
"Atualmente, os governos federal, estaduais e municipais – gestores do SUS – sofrem uma avalanche de ordens judiciais determinando a dispensação de medicamentos, o que gera efeitos negativos, especialmente sobre o gerenciamento da assistência farmacêutica nos estados e sobre os seus benefícios diretos, como a interrupção do tratamento de pacientes regulares em razão da transferência de medicamentos em estoque que lhe seriam destinados para pacientes beneficiados por determinação judicial (TCU, 2005). Essas decisões da Justiça comprometem, assim, a dispensação regular, o atendimento de prioridades definidas e a implementação das políticas de assistência farmacêutica aprovadas, já que os gestores precisam remanejar recursos vultosos para atender situações isoladas." (ROMERO, 2008).[6]
É evidente que o Judiciário não deve ignorar o fato de que indivíduos correm sérios riscos de vida, visto não terem acesso a novas tecnologias farmacêuticas ou condições financeiras para a aquisição dos medicamentos. Porém, é preciso que os interesses individuais sejam contextualizados dentro das políticas públicas estabelecidas, a fim de garantir um tratamento mais igualitário.
3.3 A posição da jurisprudência pátria sobre o tema, sobretudo os posicionamentos atuais do STF;
Não é de hoje que a Justiça se tornou refúgio dos que necessitam de medicamentos ou de algum procedimento não oferecido pelo SUS. A premissa inaugurada na CRFB/1988 de que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado arrombou as portas dos tribunais para a chamada judicialização da saúde.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a discussão sobre o tema reflete a dicotomia que cerca a questão: privilegiar o individual ou o coletivo? De um lado, a participação do Judiciário significa a fiscalização de eventuais violações por parte do Estado na atenção à saúde. Mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos do SUS.
Os órgãos da Seção de Direito Público (Primeira Seção – Primeira e Segunda Turmas) são encarregados de analisar as ações e os recursos que chegam ao Tribunal a respeito do tema. Para o presidente da Primeira Seção, ministro Teori Albino Zavascki, não existe um direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde.
O ministro Teori Zavascki esclarece que o direito à saúde não deve ser entendido “como direito a estar sempre saudável”, mas, sim, como o direito “a um sistema de proteção à saúde que dá oportunidades iguais para as pessoas alcançarem os mais altos níveis de saúde possíveis”.
No entanto, o ministro pondera que isso não significa que a garantia constitucional não tenha eficácia. “Há certos deveres estatais básicos que devem ser cumpridos”, explica. “Assim, a atuação judicial ganha espaço quando inexistem políticas públicas ou quando elas são insuficientes para atender minimamente”, conclui o ministro.
O senador Tião Viana milita contra a judicialização da saúde. Segundo dados divulgados pelo senador, haveria no Brasil um movimento financeiro da ordem de R$ 680 milhões em compras de medicamentos decididas por ordens judiciais. Ele chama de “temerosa” a tendência de se substituir um pensamento técnico e político de gestão da saúde pela decisão de um juiz.
Mas, a depender do caso, o entendimento pode pender para garantir tratamento ao indivíduo. O STJ tem reconhecido aos portadores de doenças graves, sem disponibilidade financeira para custear o seu tratamento, o direito de receber gratuitamente do Estado os medicamentos de comprovada necessidade. Foi o que ocorreu na análise de um recurso especial na Primeira Turma (Resp 1.028.835).
O relator, ministro Luiz Fux, entende que, sendo comprovado que o indivíduo sofre de determinada doença, necessitando de determinado medicamento para tratá-la, o remédio deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. No entanto, é preciso investigar a condição do doente.
Na análise de um recurso especial (Resp 944.105), o ministro Fux constatou que o paciente, que reivindicava o fornecimento de medicamentos para asma brônquica severa, não comprovou impossibilidade de arcar com o custo. No caso, apesar de alegar uma renda no valor de R$ 350, ele tinha conta de telefone de mais de R$ 100.
Em outro caso analisado pela Segunda Turma, os ministros definiram que o direito à saúde não alcança a possibilidade de o paciente escolher o medicamento que mais se encaixe no seu tratamento. A relatora foi a ministra Eliana Calmon (RMS 28.338). Ela observou que, na hipótese, o SUS oferecia uma segunda opção de medicamento substitutivo, mas que, mesmo assim, o paciente pleiteou o fornecimento de medicamento de que o SUS não dispunha, sem provar que aquele não era adequado para seu tratamento.
São inúmeros os casos relacionados à judicialização do direito à saúde no Brasil. No primeiro semestre de 2009, o STF recebeu uma audiência relacionada à saúde, onde esteve em debate a judicialização da saúde pública – principalmente a viabilidade de decisões judiciais que obrigam o Estado a fornecer tratamentos e medicamentos de alto custo para doentes crônicos. Convocada pelo ministro Gilmar Mendes, essa foi até então, a maior das audiências: durou seis dias (27, 28 e 29 de abril e 4,5 e 6 de maio de 2009), nos quais foram ouvidos 50 especialistas – advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do SUS.
O resultado desse debate foi percebido no julgamento de Plenário do dia 17 de março de 2010, quando o Supremo indeferiu nove recursos interpostos pelo Poder Público contra decisões judiciais que determinaram ao SUS o fornecimento de remédios de alto custo ou tratamentos não oferecidos pelo sistema a pacientes de doenças graves que recorreram à Justiça. Com esse resultado, essas pessoas ganharam o direito de receber os medicamentos ou tratamentos pedidos pela via judicial.
Sobre judicialização do direito à saúde, também destaca-se o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Ceará quando provocado a se manifestar sobre o direito à saúde. No julgamento do Agravo de Instrumento 2007.0008.0173-7/0, a relatora Des. Gisela Nunes da Costa determinou que o Estado do Ceará fornecesse os medicamentos ácido folínico de 15mg, decadrom de 4 mg, daratin de 25mg, idantal e sulfadiazina 500mg, pelo tempo que fosse necessário, bem como fosse disponibilizado ao autor a realização de um exame de ressonância magnética do crânio com o objetivo de preservar a saúde do indivíduo. Desta feita, manifestou-se o Tribunal da seguinte forma, in verbis:
Logo, avaliada perfunctoriamente a situação espelhada nestes autos, à luz dos princípios da proporcionalidade, da reserva de consistência e da reserva do possível, correta se me afigura a concessão da liminar perseguida - presente que se faz a relevância nos fundamentos da impetração.
Com efeito, não se trata, a priori, de tratamento experimental. Trata-se de medicamentos que existem e estão disponíveis no mercado, logo, sua utilização em território nacional é autorizada pelos Poderes Públicos. Demais disso, não se tem notícia de outras drogas, disponibilizadas na rede pública de saúde, capazes de gerar uma resposta eficaz à sua ministração.
Doutra parte, não se pode permitir que a reserva do possível se converta "em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de direitos sociais" (FARENA, Duciran Van Marsen. A Saúde na Constituição Federal, p. 14. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, n. 4, 1997, p. 12/14).
A par disso, diante da alegação de inexistência de verbas específicas para o fornecimento do medicamento, nada impede que o Judiciário determine, por exemplo: a) o remanejamento de verbas orçamentárias de menor importância (v.g., publicidade institucional) e b) autorização do custeio por entidades particulares, mediante compensação fiscal dos gastos efetuados. Lembre-se, em todo caso, na hipótese de remanejamento de verbas orçamentárias, que nenhuma responsabilidade caberá ao administrador, por se cuidar de ordem judicial.
De mais a mais, não basta ao ente estatal invocar o princípio da reserva do possível de forma genérica; é preciso que justifique, que apresente dados concretos para cotejo entre a prestação positiva visada pelo particular e as suas possibilidades materiais para arcá-la. Do contrário, não haverá como se saber se existe, realmente, uma real impossibilidade de satisfação da obrigação contra si imposta. (ANDRADE,2012)[7].
A 2ª Turma do STF, no RE 195.192-3/RS, resultou no entendimento segundo o qual o Poder Público proporcionaria meios para a aquisição e fornecimento de medicamentos para crianças e adolescentes. Nesse sentido, o acórdão restou assim ementado:
“SAÚDE – AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – DOENÇA RARA. Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. (...).” (STF, 2012)[8].
Os posicionamentos atuais do STF, em especial os de primeira instância, se veem frente a frente com o necessitado, surgindo aí um grande conflito:
A primeira dificuldade diz respeito à atuação do juiz e a suas impressões psicológicas e sociais, que não podem ser desconsideradas. Um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde – não incluída no mínimo existencial nem autorizada por lei, mas sem a qual ele pode vir mesmo a falecer – é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica. (BARCELLOS, 2002, p. 305)
Decidir em favor ao pleito de medicamentos é o mais conveniente, desde que fiquem comprovadas a precisão do autor e a ajustamento ao tratamento solicitado, o que se corrobora com um atestado médico. Entretanto, em sentido contrário, negar o pedido exigirá do magistrado um conduta decisória bem mais abarcante, complexa.
Não se pode supor que seja neutro para o ser humano que proferirá a decisão saber que se sua decisão for de negar o tratamento uma determinada pessoa, com nome, CPF e talvez rosto, venha a sofrer e talvez morrer ao passo que se a decisão for contrária não será visíveis efeitos tão dramáticos. O julgador é um ser humano e assim deve se portar. Não é desejável que o julgador tenha a insensibilidade de um carrasco, pois estes atuavam com máscaras, o que não é possível no nosso sistema. (AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle, 2008, p. 102.)
O atual presidente do STF, ministro Cezar Peluso, ao suspender a execução de um acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região em autos de ação civil pública nos autos de STA n. 390, destacou que em determinadas situações, mesmo nas quais se está em discussão questão complexa que envolve direito à saúde, com várias considerações de ordem técnica, há necessidade de se exaurir o conhecimento antes de um provimento cautelar. Afinal, regra geral, “A discussão, na espécie, diz respeito ao princípio da separação dos poderes, a princípios orçamentários (art. 167 da CF), ao princípio da reserva do financeiramente possível e ao direito à saúde (art. 196 da CF).” (BRASIL, 2010, p. 69).
Noutra vereda, poucos dias após a decisão exarada na STA n. 390, o ministro Cezar Peluso manteve uma decisão do TJ do estado de Goiás que determinava que a Secretaria Estadual da Saúde daquele estado da federação fornecesse medicamentos e exames imprescindíveis ao tratamento de um grupo de pacientes portadores de doenças graves e raras.
A decisão, todavia, não acarreta lesão à ordem e à economia públicas, por determinar a aquisição de medicamentos específicos, cuja disponibilização foi precedida de comprovação da necessidade a pacientes portadores de doenças raras e graves, de forma individualizada, consoante documentação e pareceres técnicos acostada aos autos originários. [...] É que, em pedidos de suspensão, alegação de grave dano aos interesses públicos tutelados não se presume. Deve ser provada pelo requerente, ante a natureza incidental deste tipo de processo, que não admite profunda dilação probatória. No caso, não há nenhum indício sua existência, apenas meras alegações do Estado da Bahia. O pressuposto básico da suspensão é a ocorrência concreta de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas. A lesão há de ser de grande monta e não meramente hipotética ou potencial, não sendo suficiente o fato de o Poder Público ter interesse, de uma forma ou de outra, na causa. O que se quer é que a medida pela qual se procura impedir a execução do ato tenha dimensão maior, mais ampla. [...] A necessidade dos fármacos para evitar o agravamento do estado de saúde dos pacientes ficou evidenciada na decisão questionada que, ao analisar a presença dos indispensáveis requisitos de verossimilhança do direito invocado e do periculum in mora (...). A suspensão dos efeitos da decisão pode, portanto, ocasionar danos graves e irreparáveis à saúde e à vida dos pacientes substituídos, parecendo indubitável, na espécie, o chamado perigo de dano inverso, a demonstrar a elevada plausibilidade da pretensão veiculada na ação originária, minando, em contrapartida, a razoabilidade da suspensão requerida” (BRASIL, 2010, p. 23).
Como exposto, são muitas as divergências em relação ao tema “Judicialização do Direito à Saúde”. Neste caso, o Poder Judiciário está tendo uma tendência em acompanhar a doutrina majoritária, tem entendido que a competência comum dos entes resulta na sua responsabilidade solidária dos entes da Federação para responder pelas demandas de saúde.
Segundo apreciação de diversos julgados que estão sob a custódia da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, a jurisprudência é praticamente uníssona em condenar, de forma solidária, a União, o estado e o município no qual reside o autor a fornecerem a medicação ou o tratamento médico demandado.
No processo de concretização do direito à saúde – de implantação sempre onerosa – caberá ao Judiciário a observância do binômio razoabilidade da pretensão e disponibilidade de recursos públicos como elementos necessários à efetivação deste direito, sob pena de o excesso de decisões inócuas e irrazoáveis levarem à falência o Estado diante a impossibilidade de cumprir todas essas decisões.
Deve-se ainda ressaltar que ao Judiciário incumbe um papel inovador, ao agregar novas soluções na efetivação dos direitos sociais. Decisões inteligentes e fundamentas dentro dos parâmetros constitucionais serão sempre bem vindas e necessárias para a consecução desses direitos. Portanto, as ações ajuizadas contra os entes públicos, para obrigá-los indiscriminadamente a fornecer medicamento de alto custo, devem ser analisadas com muita prudência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma enorme demanda tem assolado o Poder Judiciário em se tratando de distribuição de medicamentos por parte do Poder Público. Isso, de certa forma, afeta o sistema, considerando que o Estado não se mostra preparado para assumi-la, bem como a jurisprudência até o momento não adotou um critério para a concessão dos medicamentos, ora proferindo decisões extravagantes condenando a Administração a custear tratamentos caros, ora determinando a concessão de medicamentos, muitos de alta onerosidade.
Essas demandas judiciais terminam por acarretar superposição de esforços e defesas, envolvendo várias entidades federativas e mobilizando uma grande quantidade de agentes públicos, servidores e procuradores, acarretando um enorme dispêndio de recursos públicos, tendo como principal reflexo da judicialização o aumento de gastos pelos governos para cumprir as decisões.
Especificamente no tema em discussão, no Brasil são inúmeras as decisões judiciais proferidas Pelo Judiciário com base no direito constitucional à saúde, em especial os julgados que obrigam o Poder Público a fornecer medicamentos diversos a pessoas carentes, como também que condenam o Estado a custear tratamentos e exames específicos.
A discussão sobre o tema reflete a dicotomia que cerca a questão: privilegiar o individual ou o coletivo? De um lado, a participação do Judiciário significa a fiscalização de eventuais violações por parte do Estado na atenção à saúde. Mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos do SUS.
Essa discussão, adentrada no tópico dos denominados entendimentos contraditórios entre si: “Mínimo Existencial” e “Reserva do Possível”, revela que é essencial um desvelo ao se dar efetividade a um direito fundamental que demanda em volumosos gastos financeiros aos poderes públicos. Deve-se verificar até onde a decisão está sujeita ao atendimento sem arriscar o equilíbrio financeiro do SUS, sobretudo em período de crises econômicas. Porém é deve ser realizada uma advertência: as alegações de negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível precisam sempre ser analisadas com cautela. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidade financeira de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la.
Destarte, o argumento da reserva do possível apenas deve ser acolhido se o Poder Público evidenciar de maneira satisfatória que a decisão acarretará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais, o que, em última análise, implica numa ponderação, com base na proporcionalidade em sentido estrito, dos interesses em jogo.
Conclui-se que sendo comprovado que o indivíduo sofre de determinada doença, necessitando de determinado medicamento para tratá-la, o remédio deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna. Com a devida atenção de que é preciso investigar a condição financeira do doente, comprovando a impossibilidade de arcar com o custo.
É evidente que o Judiciário não deve ignorar o fato de que indivíduos correm sérios riscos de vida, visto não terem acesso a novas tecnologias farmacêuticas ou condições financeiras para a aquisição dos medicamentos. Porém, é preciso que os interesses individuais sejam contextualizados dentro das políticas públicas estabelecidas, a fim de garantir um tratamento mais igualitário. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, conhecido também como o núcleo essencial de tais direitos.
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ACADÊMICA DE DIREITO - UNIMONTES (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS) - MINAS GERAIS
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAMELUK, Lethícia Andrade. Consequências da judicialização do direito à saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2012, 07:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29552/consequencias-da-judicializacao-do-direito-a-saude. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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