RESUMO: Um grande e indispensável artifício utilizado é a mutação constitucional, um método de modificar a interpretação de dispositivos constitucionais, que acompanham a evolução da sociedade. Entenderemos como essas modificações ocorrem e exploraremos a antiga prisão civil do depositário infiel, um claro exemplo de mutação constitucional ocorrido.
PALAVRAS-CHAVE: Mutação constitucional; Depositário infiel; Tratados Internacionais.
INTRODUÇÃO
A mutação constitucional é de grande relevância, por se tratar da compreensão do texto constitucional, o ordenamento hierarquicamente superior de nosso país, que garante e relata tudo em nossa sociedade. Dada tal importância, será feito um aprofundamento nesse tema da mutação constitucional, buscando boas definições e explorando um exemplo claro de como ocorre tal fenômeno, isso com o objetivo de compreender corretamente como essas mudanças acontecem.
Por fim, um exemplo, o caso concreto da prisão civil do depositário infiel será exposto e analisado. Será visualizada a interpretação comum dada a ela, e consequentemente vira uma análise final, contendo uma conclusão sobre o estudo em geral.
1 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
É necessário entender que a Constituição, como carta maior do Ordenamento jurídico, não pode permanecer parada, ela deve então se adequar às mudanças e às evoluções da sociedade.
Para que ocorra essa atualização as Constituições são divididas em rígidas, onde a mudança deve ser lenta e feita em um processo difícil, e em flexíveis, em que o processo é mais fácil, podendo ser modificado como uma lei infraconstitucional.
Portanto, como posto por Bezerra (2001, p.5), as Constituições, sejam rígidas ou flexíveis, são cabíveis de mudança. Cabe distinguir qual o meio foi utilizado para essa mudança, podendo ser formal, que seria por meio da revisão constitucional e as emendas à Constituição, ou pelo meio informal, as mutações constitucionais.
Posto isso, Pedra (2005) declara que
Assim, enquanto a reforma constitucional consiste na modificação dos textos constitucionais produzida através de ações voluntárias, a mutação constitucional opera-se modificando o sentido sem mudança do dispositivo, mediante fatos não acompanhados necessariamente de consciência de tais modificações. (PEDRA, 2005, p.151)
Essa explicação diferencia bem, o que seria o meio formal e informal. Um ponto que ele destaca é que essa mudança informal, mutação, não necessita de alteração na escrita normativa.
Além disso, novamente Pedra (2011) completa
as mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação. (PEDRA, 2011, p. 27)
Diante disso, fica clara a relevância do tema, por se tratar de mudanças de como interpretar a mesma norma, que, por um tempo, foram lidas e aplicadas de uma forma e, após tal processo, são vistas de maneira diferente.
Um grande e recente exemplo de mutação constitucional no Brasil, foi a aprovação da união estável homoafetiva, dada pelo Supremo Tribunal Federal no dia 5 (cinco) de maio desse ano. Um ponto interessante nesse caso, sem aprofundar, é a reconhecida rejeição pela maioria nacional em relação a essa união, mesmo assim, no entendimento dos ministros, era necessário esse avanço. Então, pode-se relacionar tal exemplo com o trecho final da fala de Pedra (2005) “[...]mediante fatos não necessariamente de consciência de tais modificações.” Quando se fala em necessária, pode comentar a questão dos Direitos Humanos, o grande avanço ocorrido no mundo em defesa desse ponto, que incentiva tais mudanças, então as minorias tem cada vez mais ganhado força e voz na sociedade, principalmente utilizando esse meio informal.
Outros exemplos de mutação constitucional no Brasil foram a questão da infidelidade partidária, também a individualização da pena, questão penal relacionada ao regime integralmente fechado em crimes hediondos, a correção monetária em face da inflação, processo esse ocorrido em meio ao agravamento do problema monetário.
2 O CASO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL
Para o caso da prisão civil do depositário infiel, vamos recorrer às noções já expostas acima, faremos uma análise desse processo, vendo suas etapas, de como era compreendido até o seu atual entendimento.
A priori, é necessária uma breve explicação (GALVÃO, 2000, p.1) do que seria um depositário, palavra vinda do latim “deponere”, que institui pessoa que receberá alguma coisa, em depósito. Sendo assim, o indivíduo passa a ter certas obrigações com a coisa recebida, como a conservação e, em caso de contrato, a devolução no tempo positivado, então, caso esses princípios não forem efetuados, o depositário é considerado infiel.
Como o ponto a ser abordado é a prisão civil, é importante a identificação dessa norma, que está na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LXVII, “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Em relação a essa norma, sempre houve sanções para tal depositário, como exemplifica Miguel Paulo de Carvalho (2001, p.14), nas Ordenações Filipinas, impressa em 1603, observa-se essa previsão, em que, se o depositário recusasse devolver o bem em questão ou usufruir-se dela sem permissão do dono, deveria ser preso até que devolvesse o bem, junto com o dano causado.
Além disso comenta o Código de Processo Civil de 1939, do art. 366 ao art. 370, que relata como a prisão é feita nesses casos, em que o réu é citado para devolver o bem em 48 (quarenta e oito) horas, caso haja a restituição, o processo por ai se finalizará. Entretanto, passado o tempo sem entrega do bem ou quantia equivalente ao bem, o juiz, com vontade do autor, expede mandado de prisão por depositário infiel ao réu.
Sempre houve essa interpretação constitucional do depositário infiel, como sendo uma exceção, assim como a obrigação alimentícia, de ser punida com pena privativa de liberdade, mesmo sendo uma questão civil por dívida. Um ponto interessante, aludido por Gomes (2008, p.1), é que, no Império Romano, essa reclusão por dívida foi abolida no século V a.c. justificando que a violação da liberdade do indivíduo não deveria ser tolerável em função de dívidas, e só agora no Brasil, em pleno século XXI, foi feita a mesma coisa.
Fica certo que com a ratificação do Brasil no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Adotado pela Resolução n. 2.200 A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966) e no Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos) ambos incluídos em 1992, esse tema, além de outros, ganham força para suas transformações de interpretação.
Tais pactos negam a implementação da prisão civil do depositário infiel, como visto no art. 7º, 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que diz “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
Portanto, após adesão brasileira nesses pactos, ocorreu um questionamento sobre a hierarquia das normas, entre os tratados internacionais e a Constituição Federal de 1988, como diz Fernando Capez (2009, p.39), pois cada um traz um enunciado diferente sobre o mesmo assunto. Posto isso, inicialmente a postura do Supremo Tribunal Federal foi de relatar que os tratados são inferiores a Carta Magna, por isso não poderiam prevalecer sobre as normas constitucionais.
Mas um fato importante trouxe à tona novamente esse caso, com a Emenda Constitucional 45/04, que fez nascer o parágrafo terceiro ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Tal parágrafo previa que os Tratados e Convenções poderiam ser equiparados com emendas constitucionais se preencherem dois requisitos, que seriam abarcar matéria relacionada a Direitos Humanos e que sejam aprovados pelo Congresso Nacional em dois turnos. Feito isso, a norma torna-se imune de reduções futuras.
Bom a resposta dada pelo STF, no dia 03 de dezembro de 2008, foi que, por unanimidade, o Supremo, por meio da Súmula Vinculante 25, decidiu sobre o fim da prisão civil do depositário infiel.
Como exposto na decisão.
O Tribunal, por unanimidade, acolheu e aprovou a proposta de edição da Súmula Vinculante nº 25, nos seguintes termos: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa e, neste julgamento, o Senhor Ministro Gilmar Mendes (Presidente). Presidiu o julgamento o Senhor Ministro Cezar Peluso (Vice-Presidente). Plenário, 16.12.2009
Com isso GOMES (2008, p.1) explica o caso, dissecando o voto do min. Gilmar Mendes, que acrescentou outros dois fundamentos, afirmando que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos só prevê a prisão civil por alimentos (art. 7º, n. 7), como já dito acima, e que nossa legislação ordinária relacionada com o depositário infiel conflita com o teor normativo desse texto humanitário internacional, e, portanto, o conflito de uma norma ordinária com a CADH resolve-se pela invalidade da primeira, pois a segunda está acima da lei ordinária.
Já o Min. Celso Mello, como noticiado pelo site do Supremo Tribunal Federal, também citou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, e a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. O ministro acionou o disposto do artigo 4º, inciso II, da Constituição, que relata a prevalência dos direitos humanos como princípio nas suas relações internacionais, isso para fortalecer sua tese de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, mesmo aqueles firmados antes do advento da Constituição de 1988, devem ter o mesmo status dos dispositivos inscritos na Constituição Federal (CF).
Portanto, nesse caso, fica claro também que o exposto pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de extinguir a prisão civil do depositário infiel é a mais benéfica ao ser humano. Isso, como já dito anteriormente, pelo grande reconhecimento dos Direitos Humanos.
Posto isso, a transformação de interpretação sobre esse tema fica visível e devido a essa decisão, que é considerada como histórica, fortifica os Direitos Humanos e também da aos tratados um papel de grande importância em nosso Ordenamento.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o exposto, é válido ressaltar a grande importância desse processo em nosso meio jurídico, seja em relação a questões que já são aceitas e valorizadas pela sociedade, ou por posições que a sociedade ainda rejeita, sendo assim grandes avanços sociais e jurídicos.
Em relação à prisão civil do depositário infiel, conclui-se como uma decisão mais justa, pois como exemplificado é uma situação que é naturalmente rejeitada em outras ordenações historicamente. Cabe relacionar isso com o novo Código Civil de 2002, que tem como um novo princípio a eticidade, que busca a resolução do caso concreto com “mais justiça”, dando, assim, mais poder aos juízes para chegarem com mais eficácia nesse resultado esperado, ajudando na evolução e no desenvolvimento no meio jurídico e principalmente na sociedade, seja nos seus princípios seja nas suas condutas.
REFERÊNCIAS
BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Mutação Constitucional: Os processos mutacionais como mecanismos de acesso à justiça. Disponível em .< http://www.sefaz.pe.gov.br/flexpub/versao1/filesdirectory/sessions579.pdf>. Acesso em 18 nov. 2011
CAPEZ, Fernando. A prisão civil do Depositário Infiel na visão do Supremo Tribunal Federal. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Editora Magister, n. 28, p. 39-41, 2009.
CARVALHO, Milton Paulo de. Ainda a prisão Civil em caso de alienação fiducíaria. Da desconsideração do depósito. Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.787, p. 14-17, 2001.
STF restringe a prisão civil por dívida a inadimplente de pensão alimentícia. 2008. Disponível em .<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100258>.
Estudante do curso Direito da Faculdade de Direito de Vitória - FDV;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORRES, José Neto Rossini. Mutação Constitucional e as peculiaridades do caso da prisão civil do depositário infiel Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2012, 07:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29619/mutacao-constitucional-e-as-peculiaridades-do-caso-da-prisao-civil-do-depositario-infiel. Acesso em: 23 dez 2024.
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