A declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo decorre sobretudo do princípio supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de nulidade (ou inexistência, segundo alguns doutrinadores).
Entretanto, na atualidade, diante de circunstâncias fáticas excepcionais e tendo em vista a repercussão social, política e econômica do thema decidendum, a Corte Constitucional detém o poder de modular os efeitos da decisão de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, permitindo, portanto, que a lei inconstitucional produza alguns efeitos.
Destaca-se na teoria do controle de constitucionalidade a técnica da chamada “lei ainda constitucional”, “inconstitucionalidade progressiva” ou “declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade”.
A técnica da “lei ainda constitucional” surgiu no direito brasileiro por ocasião do julgamento do HC 70.514, quando se discutiu a constitucionalidade do prazo em dobro para a Defensoria Pública em processo penal. Abaixo, a transcrição do acórdão:
Direito Constitucional e Processual Penal. Defensores Públicos: prazo em dobro para interposição de recursos (§ 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989). Constitucionalidade. "Habeas Corpus". Nulidades. Intimação pessoal dos Defensores Públicos e prazo em dobro para interposição de recursos. 1. Não é de ser reconhecida a inconstitucionalidade do § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal pública. 2. Deve ser anulado, pelo Supremo Tribunal Federal, acórdão de Tribunal que não conhece de apelação interposta por Defensor Público, por considerá-la intempestiva, sem levar em conta o prazo em dobro para recurso, de que trata o § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989. 3. A anulação também se justifica, se, apesar do disposto no mesmo parágrafo, o julgamento do recurso se realiza, sem intimação pessoal do Defensor Público e resulta desfavorável ao réu, seja, quanto a sua própria apelação, seja quanto à interposta pelo Ministério Público. 4. A anulação deve beneficiar também o co-réu, defendido pelo mesmo Defensor Público, ainda que não tenha apelado, se o julgamento do recurso interposto pelo Ministério Público, realizado nas referidas circunstâncias, lhe é igualmente desfavorável. "Habeas Corpus" deferido para tais fins, devendo o novo julgamento se realizar com prévia intimação pessoal do Defensor Público, afastada a questão da tempestividade da apelação do réu, interposto dentro do prazo em dobro.
(HC 70514, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/1994, DJ 27-06-1997 PP-30225 EMENT VOL-01875-03 PP-00450)
No caso concreto, foi observada pelo Supremo Tribunal Federal a circunstância fática de absoluta carência de estrutura e recursos humanos das Defensorias Públicas, como motivo decidir.
A priori, o prazo em dobro conferido à Defensoria, mas não ao Ministério Público, ofenderia o princípio da isonomia, a paridade de armas, a proporcionalidade, o devido processo legal, entre outros argumentos possíveis.
Entretanto, calcado na cristalina situação fática de ausência de estrutura da Defensoria Pública (instituição essencial à função jurisdicional do Estado), em oposição à estruturação do Ministério Público, o Judiciário entendeu que a regra é constitucional até que a defensoria pública efetivamente se instale, com estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se a regra inconstitucional, quando essa igualdade (circunstância de fato) se verificar. Nesse sentido:
Ressalvou-se, portanto, de forma expressa, a possibilidade de que o Tribunal possa vir a declarar a inconstitucionalidade da disposição em apreço, uma vez que a afirmação sobre a legitimidade da norma assentava-se em uma circunstância de fato que se modifica no tempo (MENDES, 2004, p. 12).
Outro caso em que houve a aplicação da técnica ocorreu no julgamento do RE 147.776/SP, no qual se discutia a legitimidade de propositura de ação civil ex delictu pelo Ministério Público (art. 68 do CPP). Transcrevemos a ementa do acórdão:
Ministério Público: legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135328): processo de inconstitucionalização das leis. 1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição - ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada - subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. 2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal - constituindo modalidade de assistência judiciária - deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que - na União ou em cada Estado considerado -, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135328.
(RE 147776, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 19/05/1998, DJ 19-06-1998 PP-00009 EMENT VOL-01915-01 PP-00136)
Na discussão desse caso, aventou-se que a implementação de uma nova ordem constitucional não é evento instantâneo, mas um processo no qual a “possibilidade de realização da norma da Constituição subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a viabilizem”[1]. Portanto, essa atribuição conferida pelo ordenamento anterior à Constituição de 1988 ao Ministério Público, reputar-se-á válida até que se opere a organização de direito e de fato da Defensoria Pública. Nas palavras de LENZA:
Portanto, vem o STF entendendo, de maneira acertada, que o art. 68 do CPP é uma lei ainda constitucional e que está em trânsito, progressivamente, para a inconstitucionalidade, à medida que as Defensorias Públicas forem sendo, efetiva e eficazmente, instaladas (2010, p. 259).
Para MENDES:
Fica evidente, pois, que o Supremo Tribunal deu um passo significativo rumo à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, introduzindo, ao lado da declaração de inconstitucionalidade, o reconhecimento de um estado imperfeito, insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei (2008, p. 1260-1261).
A técnica da lei ainda constitucional ou inconstitucionalidade progressiva calca-se em situação de previsão legal em aparente contrariedade ao texto constitucional, a qual subsiste em face de uma circunstância fática excepcional, a justificar a constitucionalidade da norma, até que sobrevenha a modificação fática a tornar a norma inconstitucional. Trata-se, indubitavelmente, de técnica que flexibiliza o controle de constitucionalidade em prol de um valor relevante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, pp. 29-49. Material da 2ª aula da Disciplina Controle de Constitucionalidade, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Constitucional Anhanguera – Uniderp – Rede LFG.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Breves linhas sobre a inconstitucionalidade progressiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2012, 08:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29753/breves-linhas-sobre-a-inconstitucionalidade-progressiva. Acesso em: 23 dez 2024.
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