1. Introdução.
A Constituição Federal obrigou o Poder Público, em benefício às presentes e futuras gerações, a definir espaços territoriais e seus atributos a serem especialmente protegidos (art. 225 da Constituição Federal).
De outro lado, reconheceu aos índios direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231 da Constituição Federal).
E quando sobre um mesmo território incidirem a um só tempo a tutela indígena e a ambiental?
2. Espaços Territoriais e seus Atributos Ambientais a serem Especialmente Protegidos
Como já dito acima, a Constituição Federal obrigou o Poder Público, em benefício às presentes e futuras gerações, a definir espaços territoriais e seus atributos a serem especialmente protegidos (art. 225 da Constituição Federal).
Esses espaços territoriais e seus atributos a serem definidos e protegidos ganharam em sede legal a nomenclatura de unidades de conservação, notadamente por força da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Esse ato, esclareça-se, criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação Federais.
Para melhor compreensão do quanto afirmado acima, observe-se a redação constitucional, no que interessa:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)
(...)
Desse contexto, é possível concluir que a tutela ambiental é protegido constitucionalmente e as unidades de conservação somente podem ser suprimidas por meio de lei.
3. Direitos Originários Indígenas sobre os Territórios que Tradicionalmente Ocupam
Como também já foi, o art. 231 da Carta da República reconheceu aos índios direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Pela Constituição, isso significa que os índios são detentores do usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes. Confira-se a dicção constitucional:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
Mas e se esses territórios são a um só tempo indígenas e reconhecidos pelo Poder Público como unidades de conservação?
4. Petição nº 3.388-4 julgada pelo Supremo Tribunal Federal: Raposa Serra do Sol[1]
A resposta para a pergunta feita no item anterior se encontra, em alguma medida, na Petição nº 3.388-4 julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se do célebre caso da Raposa Serra do Sol. Nesse julgamento ficou reconhecido que o regime de dupla afetação, ou seja, vinculação a um interesse ambiental e a um interesse indígena, sendo necessária a convivência entre esses princípios, dado que ambos são direitos fundamentais.
O Ministro-Relator expôs seu voto e considerou constitucional a demarcação contínua da terra indígena. Confira-se resumo do voto cuja íntegra pode ser acessada em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf[2] :
Voto do relator: demarcação em ilhas asfixia cultura indígena
O ministro Carlos Ayres Britto considerou constitucional a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol de forma contínua, como determinado pela Portaria 534/05, do Ministério da Justiça, e homologada por decreto do presidente Lula. Para ele, a demarcação em forma de ilhas, ou ”queijo suíço”, como defendido pelo estado de Roraima e por produtores de arroz, seria asfixiar as culturas das comunidades e desrespeitar frontalmente a Constituição Federal.
O ministro disse ainda que, para ele, deve ser revogada imediatamente (após o fim do julgamento) a liminar concedida na Ação Cautelar 2009, em abril deste ano, que suspendeu operação Upakaton, da Polícia Federal, para retirada dos rizicultores da região.
A demarcação da Raposa Serra do Sol é um “ato meramente declaratório de uma situação jurídica preexistente”, disse o ministro. Isso porque, frisou Ayres Britto em seu voto, a Constituição determinou a data de sua promulgação como sendo o marco temporal para definir as posses imemoriais. É como se em outubro de 88, explicou, se tirasse uma radiografia da situação indígena em todo o Brasil.
Assim, como a área da Raposa Serra do Sol é ocupada há mais de 150 anos pelas etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapichana, elas têm direito à posse da área, conforme determina a Carta Magna em seu artigo 231. Os rizicultores só passaram a tomar posse, de forma ilegítima, a partir do ano de 1992, lembrou Ayres Britto. E segundo provas constantes dos autos, foi por meio de esbulhos que no decorrer dos anos fez suas extensões se multiplicarem.
O ministro fez menção direta à fazenda Guanabara, que teve ocupação autorizada pelo Incra com base em procedimentos ainda não concluídos, e sem consultar a Funai. Por isso, deve ser considerada inválida essa ocupação, mesmo que tenha havido um processo judicial envolvendo a fazenda, com trânsito em julgado no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, disse o ministro.
Reconhecimento constitucional
A Constituição Federal não concede aos índios o direito sobre as terras, disse o relator. A Constituição faz mais que isso. Em seu artigo 231, a Lei Republicana “reconheceu” os direitos originários dos aborígenes sobre as terras que ocupam.
Esse reconhecimento, ponderou Ayres Britto, prepondera sobre escrituras públicas ou outros títulos que supostamente garantiriam a posse aos fazendeiros. Para o ministro, esses documentos são nulos.
E é a própria Constituição quem diz como deve ser definida a demarcação, continuou o ministro. Está no mesmo artigo, em seu parágrafo 1º, que a área deve permitir aos índios habitação, bem-estar, atividade produtiva e reprodução física e cultural das etnias.
Para o ministro, também não se pode falar em subtração do território estadual. Nesse sentido, ele lembrou que, juntos, os estados do Espírito Santo, Alagoas e Rio de Janeiro reúnem uma população de mais de 21 milhões de brasileiros em uma área pouco superior a 121 mil quilômetros quadrados. Essa área é pouco menor do que a área que cabe ao estado de Roraima, descontadas todas as áreas indígenas demarcadas. E isso para uma população de cerca de 400 mil habitantes. “Tudo em Roraima é desmesurado, é gigantesco”, disse Ayres Britto.
Soberania Nacional
Sobre a questão da soberania nacional, Britto lembrou que as comunidades indígenas acabam ocupando mais densamente as faixas de fronteira exatamente porque são empurradas para lá, forçadas, esmagadas pela intolerância dos não-índios. Normalmente, disse Ayres Britto, os entes federados e fazendeiros locais se conjugam para discriminar os indígenas e acabam empurrando os índios para essas regiões mais inóspitas do país. Mas não existe proibição à atuação da Polícia Federal e do Exército nessa área. O ministro deixou claro, ainda, que as comunidades indígenas acabam ajudando, e muito, na defesa da soberania nacional.
Na verdade, o ministro disse entender que as autoridades devem se conscientizar de seu poder de alertar as comunidades indígenas dos riscos representados por algumas ONGs estrangeiras e reforçar nos índios o sentimento de brasilidade que nos une.
Os indígenas, como conhecedores da região, sabem opor-se a eventuais tentativas de invasão estrangeira, disse o ministro. O tráfico de drogas, o contrabando de armas não é culpa dos índios. Ninguém proíbe Exército e Polícia Federal de atuarem na área. “Estado e comunidades indígenas fazem a mais patriótica parceria”, arrematou.
Portaria
Ayres Britto defendeu a demarcação contínua, como definida na Portaria 534, do MJ, como única forma de garantir a sobrevivência das etnias indígenas. No caso da Raposa Serra do Sol, o ministro explicou que existem realmente várias etnias, mas que suas áreas são “lindeiras”, ou vizinhas. E que esses grupos estão acostumados a uma convivência pacífica na região, há décadas, além de compartilharem uma mesma língua.
Ao analisar a portaria que definiu a área, o ministro argumentou que não encontrou nenhuma ilegalidade. Tanto o estado de Roraima quanto os demais atores puderam exercer o direito à ampla defesa. Quanto à suposta parcialidade do advogado que assinou parecer favorável à demarcação, Britto salientou que o parecer é uma peça meramente opinativa. Sobre a alegação de que dois motoristas teriam sido citados como técnicos agrícolas e atuado nos estudos para a demarcação, o ministro revelou que o próprio laudo antropológico reparou o erro.
Argumentos
O Brasil se encontra na vanguarda mundial do cuidado jurídico com os indígenas. Nenhum documento estrangeiro supera a Constituição Federal brasileira em modernidade e humanismo, com relação à questão indígena.
Ayres Britto iniciou seu voto na Petição (PET) 3388 lembrando de antecedentes da Corte em questões indígenas. De acordo com o ministro, o tema é motivo de divergência entre antropólogos, militares, políticos, cientistas e diversas outras áreas do saber. Porém, frisou que é pacífico o entendimento do STF de que a disputa pelas riquezas das terras dos índios é sempre o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil.
O ministro, contudo, disse discordar da tese de que exista um antagonismo entre a causa indígena e o desenvolvimento, defendido principalmente por líderes políticos locais, fazendeiros e grupos econômicos com interesses particulares.
O que falta ao Brasil é aprender a tirar proveito da interação entre índios e não-índios, para permitir um desenvolvimento mais equilibrado, sustentável, com vantagens para os dois lados, defendeu o ministro.
O relator disse que é preciso fazer uma leitura sistêmica e global da Lei Republicana e dos nove preceitos que tratam da causa indígena. Mas deve ser dado destaque ao parágrafo 4º do artigo 231, que afirma que “as terras de que trata este artigo [indígenas] são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
Brasileiros
Todos os grupos humanos que existem no país formam uma única realidade cultural brasileira, lembrou o ministro, principalmente os europeus, os afro-descendentes e os índios. Portanto, como brasileiros, não se pode falar em nação ou pátria indígena. Nenhuma comunidade indígena pode ir a cortes internacionais como nação ou povo independente, criticou o ministro, em referência à possibilidade de grupos recorrerem a instâncias internacionais, caso o STF decida de forma contrária a seus interesses. Britto disse estranhar o fato de certas lideranças aderirem à Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas. “Nosso texto constitucional já os protege na medida certa”, afirmou.
Outro ponto que o ministro fez questão de ressaltar é o fato de que as terras indígenas são bens da União e se constituem em um patrimônio que não é compartilhado com nenhum outro ente jurídico. Mas que, nem por isso, os índios deixam de contar com um vínculo jurídico com os estados e são beneficiados com saúde, educação, segurança pública, profissionalização. A terra indígena é uma categoria jurídica, mas não um ente federado. Toda a atividade em área indígena deve ser feita em comum acordo com a União.
Fraternal
Em seu texto, a Constituição Federal brasileira permite que se chegue a um novo tipo de igualdade civil e moral, das minorias. Uma nova era, que direciona à inclusão social, para alcançar a integração comunitária de todo o povo brasileiro, índios, brancos e afro-descendentes. “É a fraternidade como princípio político”, pontuou Ayres Britto.
MB/LF
O referido voto foi objeto de pedido de vista pelo Ministro Menezes Direito cujo posição foi no sentido de acompanhar o voto do Relator com as conhecidas condicionantes acatadas, em sua maioria, pelo próprio Relator, o que exigiu reajustamento do seu voto. Confira-se[3]:
Ministro Menezes Direito vota pela manutenção, com restrições, da terra Indígena Raposa Serra do Sol
O ministro Carlos Alberto Menezes Direito acaba de votar pela preservação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, conforme definida pela Portaria nº 534, do Ministério da Justiça, homologada por decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de 15 de abril de 2005.
Entretanto, ele impôs 18 restrições, como as definidas no parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição Federal (CF) referentes à pesquisa e lavra de riquezas minerais e à exploração de potenciais energéticos, além de questões envolvendo a soberania nacional.
Voto-vista
Em seu voto-vista à Petição (PET) 3388, em que são questionados os procedimentos que levaram à demarcação da terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, Menezes Direito - que pediu vista do processo quando do início de seu julgamento, em 27 de agosto, e trouxe o processo de volta a julgamento nesta quarta-feira (10) - defendeu a delimitação, como área indígena, da área que era tradicionalmente ocupada por índios em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal (CF) brasileira ora em vigor. “Cabe verificar a presença índia na data de 5 de outubro de 1988”, sustentou.
O ministro defendeu a regularidade do processo demarcatório realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), embora os laudos que fundamentaram a demarcação da área fossem assinados, respectivamente, apenas por um antropólogo.
“Há elementos que, mesmo não expressos em números, podem justificar a extensão geográfica das terras indígenas”, sustentou o ministro. Segundo ele, a área indígena não é definida apenas pelo lugar que os índios – que se deslocam freqüentemente, condicionados por fatores geográficos, econômicos e ecológicos de que depende a sua sobrevivência - ocupam, mas também pelas terras adjacentes em que ocasionalmente se locomovam.
“Não há índio sem terra. Tudo o que ele é o é na terra e com a terra”, assinalou, lembrando que também os costumes e as tradições indígenas são atrelados à terra. Citando o sociólogo Darcy Ribeiro na obra “A Política Indigenista Brasileira”, ele disse que “o índio é ontologicamente terrâneo. É um ser de sua terra. A posse da terra é essencial a sua sobrevivência”.
Crítica
O ministro criticou, no entanto, a sistemática da Funai na demarcação de áreas indígenas, sustentando a necessidade de os laudos que lastreiam a demarcação serem assinados por pelo menos três antropólogos, para evitar que eventuais preconceitos de um só determinem todo um processo demarcatório. Este, segundo ele, deve ser feito por grupos interdisciplinares para que seja possível determinar o que denominou “fato indígena”. Por este conceito, ele entende não só a presença física dos índios, mas também os aspectos econômico, ecológico, cultural e demográfico a eles relacionados.
O ministro lembrou, também, que o artigo 231 da Constituição Federal (CF) define o direito dos indígenas sobre as áreas que tradicionalmente ocupam, mas lembrou que esse direito é limitado no que tange à soberania nacional e à exploração de riquezas minerais e ao aproveitamento de potenciais energéticos nessas áreas.
Soberania
Em seu voto, o ministro Menezes Direito advertiu que o STF precisa deixar claro que a Declaração Interamericana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de que o Brasil é signatário e que, freqüentemente, tem servido de inspiração para laudos de demarcação de terras indígenas assinados por antropólogos da Funai, não pode negar vigência às normas de hierarquia nacional, entre eles a soberania e o princípio federativo.
Segundo ele, essa declaração que, segundo prevê seu texto, pode ser invocada quando são afetados direitos dos indígenas, define povo indígena como nação, com possibilidade de autogoverno e desprezo de fronteiras, o que representa uma ambigüidade e representa risco de insegurança jurídica, no plano interno.
Áreas Indígenas
O Brasil tem, conforme levantamento feito pelo ministro Menezes Direito, 402 áreas indígenas já registradas e 21 estão em processo de registro, havendo ainda 24 já homologadas. No total, segundo ele, há 534 terras indígenas, não incluídas aquelas ainda em estudos na Funai.
A extensão total dessas áreas é de 1.099.744 quilômetros quadrados ou 12,92% de todo o território nacional, sendo que 187 delas se localizam em faixa de fronteira, enquanto 45 delas coincidem com áreas federais de conservação.
No estado de Roraima, são 32 terras indígenas, ocupando uma área total de 103.415 quilômetros quadrados, o que representa 46,11% de todo o território estadual, sendo que todas, exceto três, se localizam em área de fronteira.
Raposa Serra do Sol situa-se no Nordeste do estado, abrangendo os municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã. Sua área total é de 1.747.464 hectares em 17.430 quilômetros quadrados ou 7,7% da área do estado. Isso corresponde à área de todo o estado de Sergipe ou mais da metade da área da Bélgica, que tem 30 mil quilômetros quadrados. Em termos populacionais, abriga 4,9% da população total de Roraima, que tem 395.705 habitantes.
FK/MG
5. As Condicionantes Impostas pelo Supremo Tribunal Federal no caso da Raposa Serra do Sol e o Instituto Chico Mendes
O Ministro Menezes Direito, como dito, propôs o estabelecimento de condicionantes, no que foi acompanhado pela maioria dos Ministros[4]. Nesse ponto, ganha relevo a relação do caso com o Instituto Chico Mendes. Confira-se as condicionantes[5]:
STF impõe 19 condições para demarcação de terras indígenas
No julgamento que decidiu que a terra indígena Raposa Serra do Sol terá demarcação contínua e deverá ser deixada pelos produtores rurais que hoje a ocupam (Petição 3388), os ministros do Supremo Tribunal Federal analisaram as 18 condições propostas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito para regular a situação nos territórios da União ocupados por índios, e garantir a soberania nacional sobre as terras demarcadas. Ao final dos debates, foram fixadas 19 ressalvas, sujeitas ainda a alterações durante a redação do acórdão, que será feita pelo relator, ministro Carlos Ayres Britto.
Para cumprimento da decisão, foi designado o presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que agirá sob a supervisão do ministro Carlos Ayres Britto, como previu o presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, na proclamação do resultado do julgamento. “Quanto à execução, o Tribunal determinou a execução imediata confiando a supervisão ao eminente relator, ficando cassada a liminar [que impedia a retirada dos não-índios], que deverá fazer essa execução em entendimento com o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, especialmente o seu presidente”, disse Mendes.
As condições estabelecidas para demarcação e ocupação de terras indígenas terão os seguintes conteúdos:
1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar;
2 - O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;
3 - O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
4 – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;
5 - O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
6 – A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;
8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade imediata do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
9 - O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, que deverão ser ouvidas, levando em conta os usos, as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;
10 - O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes;
11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;
12 – O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;
13 – A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;
14 - As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena;
15 – É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;
16 - As terras sob ocupação e posse dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;
17 – É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;
18 – Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.
19 – É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.
MG,EH/LF
Os Ministros estabeleceram três condicionantes mais diretamente relacionadas com a autarquia federal denominada Instituto Chico Mendes. São elas as '8', '9' e '10'.
Ficou estabelecido que do balanço entre o princípio constitucional da proteção ambiental e a tutela indígena a sua expressão prática seria a de que “o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”.
Além disso, ficou estabelecido que o Instituto Chico Mendes responderá pela administração das áreas em regime de dupla afetação com a participação das comunidades indígenas da área, sendo possível se contar com a consultoria da Funai.
Por fim, estabeleceu que “o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes”.
6. Conclusões
Ante todo exposto, viu-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de convivência dos direitos fundamentais indígenas e ambientais, convivência materializada no atendimento fiel às suas condicionantes, que devem servir como diretriz para futuros casos.
Vários outros aspectos podem e devem ser explorados dada a riqueza e complexidade da discussão, ao que, de logo, manifestamos interesse em dar seguimento com outras produções, podendo apontar um relevante tema como a questão das ampliações das terras indígenas já demarcadas (objeto de uma das condicionantes), e também convidamos os leitores desta revista jurídica a também se debruçarem sobre o tema.
7. Referências Bibliográficas
Brasil. Legislação. Constituição Federal.
Brasil. Legislação. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000.
Supremo Tribunal Federal. Petição nº 3.388-4.
[1] Para se entender um pouco do que foi o conflito:
Em julgamento: os dois lados do conflito
O Supremo Tribunal Federal analisa, à luz da Constituição Federal, um dos maiores conflitos rurais da atualidade. De um lado estão etnias indígenas que reúnem 19 mil pessoas em 194 comunidades. Elas reivindicam o uso histórico da área Raposa Serra do Sol – reserva de 1,7 milhões de hectares que representa cerca de 7,5% do território de Roraima. Do outro, produtores rurais alegam que a receita proveniente do cultivo em 5% desse território ocupado pelos índios equivale a 15% do Produto Interno Bruto de Roraima e que, portanto, não podem abrir mão das terras. A luta pelas terras já teve mortos e feridos em conflitos armados, sendo necessária a intervenção da Polícia Federal.
Na Petição 3388, em julgamento no STF, os produtores alegam que a demarcação da área deve ser refeita excluindo da reserva as áreas produtivas onde há atividade agropecuária, principalmente da cultura de arroz. Os favoráveis a uma nova demarcação oferecem duas soluções para a Raposa Serra do Sol: o traçado de enormes “ilhas” para as tribos ou mesmo a exclusão de estradas, municípios e áreas de cultivo do mapa da reserva.
Os produtores apontam a existência de equívocos nos laudos técnicos e antropológicos que embasaram a primeira demarcação. Insistem, também, que a área ocupada pelos nativos é excessivamente extensa e impede mais plantações e, por conseguinte, mais riqueza para o Estado. Além disso, ressaltam a importância de uma presença mais marcante dos brasileiros na região para que a fronteira com a Venezuela (a Raposa Serra do Sol tem 700 km de área fronteiriça) fique mais vigiada e protegida.
Os índios, todavia, lutam para manter o mapa da Raposa Serra do Sol da maneira como está. Acusam os produtores de invadir as terras e criar novas cidades sem amparo constitucional. Além disso, argumentam que a Constituição Federal dá a eles o usufruto da reserva e das riquezas nela existentes, com a garantia da posse permanente do lugar (artigo 231). E lembram que as terras indígenas são bens de propriedade da União, sendo inalienáveis e indisponíveis.
Disputa envolve cidades, terras produtivas e estradas
Às vésperas do julgamento iniciado no dia 27 de agosto, o ministro Carlos Ayres Britto, relator da Petição (Pet 3388), recebeu líderes das partes envolvidas no conflito. Representantes de agricultores e índios foram ouvidos em audiência pelo ministro na noite de segunda-feira (25).
Ele admitiu que a decisão do Supremo Tribunal Federal pode servir de base para casos semelhantes. “Nós vamos decidir sobre Raposa Serra do Sol. Mas, se decidirmos a partir de coordenadas constitucionais objetivas, evidente que isso servirá de parâmetro para todo e qualquer processo demarcatório, senão para os passados, ao menos para os futuros”, estimou.
A advogada índia Joênia Batista de Carvalho, da etnia Wapichana, que classificou como “um momento histórico” poder falar à Suprema Corte em favor dos índios brasileiros, disse que os índios não cogitam uma decisão que exclua da Raposa Serra do Sol as áreas produtivas, cidades e suas expansões e estradas de acesso. A advogada disse ter certeza de que “o STF vai analisar (o tema) sob a ótica constitucional”.
Ela não descartou, contudo, a possibilidade de um conflito dos índios com rizicultores após a decisão. “Quem faz conflito são os arrozeiros e as pessoas que insistem em não obedecer à legislação provocando crimes. Nós nunca fomos violentos e estamos querendo mostrar nossa posição por meios legais”, afirmou.
De acordo com Joênia, a demarcação contínua (da maneira como é hoje) é necessária para sobrevivência fisio-cultural não só dessa geração de índios, mas das que virão: “Precisamos manter o ambiente equilibrado e ter condições de viver economicamente em áreas tradicionalmente nossas. Os arrozeiros, sim, ocupam irregularmente, provocam danos ambientais e levam a violência já registrada pela imprensa no começo do ano.”
Os povos indígenas estão ansiosos para participar da política de desenvolvimento do estado de Roraima, segundo informou a advogada-índia. “Se o Supremo se decidir a favor da Raposa Serra do Sol, nós passaremos para outra fase na relação do Estado com os povos indígenas, uma fase que vai mudar Roraima para trabalhar com a realidade de um plano de desenvolvimento a partir da presença indígena, sem colocar um contra o outro, sem os índios serem vistos como ameaça ao desenvolvimento”, informou.
Agricultores
O deputado Francisco Rodrigues (DEM/RR), por outro lado, disse que a bancada parlamentar do estado se juntou para “reivindicar o melhor para as comunidades indígenas e para o País”. Na opinião dos políticos roraimenses, a atual demarcação prejudica o Produto Interno Bruto do estado, uma vez que as áreas produtivas foram dadas aos índios. Essas áreas representam 5% da Raposa Serra do Sol.
Segundo o deputado, 15% do Produto Interno Bruto do estado é proveniente das plantações localizadas na Raposa Serra do Sol. Sozinha, a cultura de arroz responde por 6% desse total.
É da bancada do estado no Legislativo a proposta de retirar da reserva as áreas produtivas, as estradas de acesso e as sedes dos municípios e suas áreas em expansão, ou fazer a demarcação da reserva em “ilhas” (demarcação descontínua).
“Toda a população de Roraima e brasileira está ansiosa para ter regras definitivas nessas demarcações de terras indígenas e viver com mais tranqüilidade”, disse o deputado Rodrigues após o encontro com o ministro Ayres Britto. Ele acrescentou que a decisão do Supremo será entendida pelos agricultores como final e definitiva. “Deverá ser cumprida à risca até porque as autoridades da República estarão lá para garantir isso e, seja qual for a posição adotada pelo STF, estaremos lá para respeitar”, frisou.
Rodrigues fez a distinção entre a disputa de terras da Raposa Serra do Sol e a invasão de garimpeiros nas terras dos índios ianomâmi, ocorrida há cerca de duas décadas: “Aquela é a última tribo nativa do planeta sem contato com a modernidade. Agora tratam-se de cinco etnias que têm convivência com o homem branco”.
MG/EH
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=95095&caixaBusca=N . Acesso em: 24/06/12.
[2] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=95120&caixaBusca=N . Acessado em: 24/06/12.
[3] Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100567&caixaBusca=N Acesso em: 24/06/12.
[4] Confira-se o voto vencido do Ministro Marco Aurélio: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388MA.pdf . Acesso em 24/06/12.
[5] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=105036&caixaBusca=N . Acesso em 24/06/12.
Procurador Federal/AGU/PGF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Carlos Vitor Andrade. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e o caso da Raposa Serra do Sol julgado pelo Supremo Tribunal Federal: as sobreposições de unidades de conservação com terras indígenas e o regime de dupla afetação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jun 2012, 08:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29782/o-instituto-chico-mendes-de-conservacao-da-biodiversidade-e-o-caso-da-raposa-serra-do-sol-julgado-pelo-supremo-tribunal-federal-as-sobreposicoes-de-unidades-de-conservacao-com-terras-indigenas-e-o-regime-de-dupla-afetacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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