INTRODUÇÃO
O estudo que aqui se apresenta tem como maior propósito uma análise crítica da construção do direito à saúde no Brasil. Para tanto, primeiramente, haverá um reconstrução histórica da saúde como política pública, delineando os principais contornos que levaram a efetivação da saúde como um direito social fundamental na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Em um segundo momento, analisará o sistema normativo posterior a essa Constituição, bem como o advento desta Lei Maior fez com que a saúde fosse perseguida pelo ordenamento jurídico vigente como um direito a ser efetivado.
É o que este trabalho se propõe a fazer, sendo a metodologia utilizada o artigo e a técnica de pesquisa a bibliográfica empregando como fonte a Constituição da República Federativa do Brasil, as legislações infraconstitucionais, livros e doutrinas condizentes com o tema.
RETROSPECTIVA HISTÓRICA
A história da saúde pública no Brasil inicia-se com a vinda da corte portuguesa em 1808. Procurava-se, neste período, a realização de algum controle sanitário. As precárias condições de higiene, em especial da cidade do Rio de Janeiro, haviam disseminado doenças temíveis como o cólera, a varíola, a peste e a febre amarela. Era preciso retirar o risco iminente de tais doenças das proximidades da Coroa Portuguesa. Mas, foi somente a partir de 1870 que o Estado passou praticar algumas ações mais efetivas no campo da saúde, com a adoção do modelo “campanhista”.
Até os anos 30 do século XX, a atuação do Estado brasileiro, em termos de saúde, foi voltada, principalmente, para amparar o modelo de desenvolvimento agroexportador. A presença sanitarista do Estado não significou, porém, uma atuação de intervenção social, suas atitudes eram centradas apenas em programas que privilegiavam os setores hegemônicos da economia, ainda que muitas vezes comandados com racionalidade técnica. O que se exigia do sistema de saúde, na época, era uma política de saneamento dos espaços e circulação de mercadorias e a erradicação ou o controle de doenças que poderiam prejudicar a exportação.
É nesse contexto que é adotado o modelo “campanhista”, guiado pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz que agiu, exclusivamente, com base na autoridade de seus conhecimentos médicos, sem a preocupação de esclarecer a opinião pública. Entretanto, em 1923, houve uma reforma nas ações de saúde pública, promovida por Carlos Chagas. Tal reforma incluiu como responsabilidade do Estado, além do controle das endemias e epidemias, a propaganda e a educação sanitária como técnica rotineira de ação para o controle da saúde.
Uma característica importante dessa época era a divisão entre as ações e serviços de saúde pública e as ações e serviços de assistência médica. Existia uma rede de serviços de saúde pública que eram, em sua maioria, prestados em centros de saúde e unidades ambulatoriais que realizavam atividades como vacinação, vigilância epidemiológica etc. É verdade que elas também desenvolviam algumas ações de assistência médica, como atendimento aos pacientes com tuberculose e hanseníase (doenças consideradas graves problemas de saúde pública). No entanto, se alguém fosse acometido por doenças diversas destas não deveria buscar atendimento em um centro de saúde, pois o centro de saúde não o atenderia, uma vez que o atendimento às pessoas acometidas por doenças não consideradas problema de saúde pública deveria ocorrer apenas no âmbito particular. As ações de saúde pública eram oferecidas gratuitamente e financiadas com recursos que provinham dos tributos. Já as ações e serviços de assistência médica eram prestados àqueles que tinham condições financeiras para custeá-los.
É nesse contexto que entrou em vigor a Lei Eloy Chaves (1923) que criou as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP). Esses fundos representavam categorias profissionais e ofereciam assistência médica aos beneficiários e seus familiares. Com o surgimento das CAP a assistência médica passou a ser oferecida a determinada parcela da população que não tinha acesso a esses serviços.
Mas, somente a partir da década de 1930, há a estruturação básica do sistema público de saúde. As CAP transformaram-se em Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) que eram mantidos da seguinte forma: os empregados de determinada categoria profissional tinham no próprio contracheque um desconto de parte de sua remuneração que ia para o respectivo IAP; os empregadores, por sua vez, recolhiam junto ao IAP parte do ganho de suas empresas. Com esses recursos, os IAP garantiam alguns benefícios: aposentadoria por tempo de serviço, pensão em caso de morte e assistência médica. Mas só os contribuintes e seus dependentes tinham acesso a esses benefícios.
A industrialização acelerada vivida pelo país e a migração da população do campo para as cidades, principalmente a partir da década de 1950, fez com que a demanda por assistência médica aumentasse drasticamente. Era preciso atuar sobre o corpo e garantir a capacidade produtiva do trabalhador. Já não bastava sanear o espaço de circulação de mercadorias. O sanitarismo “campanhista” já não respondia as necessidades de uma economia industrializada. O dito é corroborado pelas seguintes palavras (ALMEIDA, 2001, p. 24):
Durante o segundo governo Vargas e o governo JK ampliaram consideravelmente os IAP em sua estrutura, principalmente a hospitalar. Concomitante, adotava-se cada vez mais o modelo de saúde americano, incorporando-se indiscriminadamente tecnologia, numa visão de saúde hospitalocêntrica e, naturalmente, de alto custo, favorecendo o fortalecimento da indústria de medicamentos e de equipamentos hospitalares.
Após o golpe militar de 1964, os IAP foram fundidos em um só instituto: o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Dessa forma, deixou-se de diferenciar as diversas categorias profissionais e passou a atender qualquer trabalhador regularmente inscrito no trabalho formal. Ter a carteira assinada fazia do trabalhador um contribuinte do INPS e, consequentemente, ele e seus dependentes passavam a ser beneficiários daquela instituição.
Na década de 1970, o governo federal subdividiu o INPS, criando um instituto só para lidar com as arrecadações da previdência (o IPAS), um instituto voltado só para assistência médica (o INAMPS) e mantendo no INPS apenas as funções de cuidar das aposentadorias e pensões. Ao mesmo tempo, novas categorias profissionais foram sendo incluídas entre os contribuintes da Previdência Social e, portanto, passaram também a ser beneficiários.
Em resumo, pode-se dizer que até a década de 1970 havia uma separação muito nítida entre as ações e serviços de saúde pública e as ações e serviços assistenciais. Apenas as ações de saúde pública eram consideradas direito de todos: todos podiam ter acesso à saúde pública sem ter que pagar por isso. Por outro lado, o acesso aos serviços de assistência médica só era assegurado aos que tinham condições para custeá-los ou aos beneficiários da Previdência Social.
No início da década de 1980 o país apresentava um modelo hegemônico médico assistencial-privatista que demandava altos investimentos. Aliado a este fator havia fraude no sistema de pagamento e faturamento da Previdência, desvio de verbas para megaprojetos do governo e acordos espúrios com o sistema financeiro. Foram essas as causas que levaram à chamada “crise na Previdência”. Mas foi também nesse período que surgiram os alicerces político-ideológicos para erguer o movimento da Reforma Sanitária.
Para controlar a crise financeira da Previdência Social foi criada uma instância reguladora da saúde previdenciária, o Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP). Esse conselho tinha a finalidade de estudar e propor normas mais adequadas para a prestação de serviços de assistência, indicar a utilização dos recursos financeiros e propor medidas de avaliação e controle do sistema. Entre outras mudanças, o Conasp permitiu o surgimento das Ações Integradas de Saúde (AIS). As AIS consistiam em construção de unidades de saúde e financiamento do seu funcionamento com recursos do INAMPS. Para fazer isso, o INAMPS assinava convênio com estados e municípios e com esses recursos os gestores estaduais e municipais construíam as unidades de saúde para atender a todos os seus cidadãos. Começava assim a construção do direito à saúde no Brasil.
Entre 1982 e 1986, essas ações integradas de saúde foram muito expandidas, tornando-se uma verdadeira estratégia de reforma. Na medida em que mais municípios aderiam às chamadas ações integradas de saúde, mais pessoas tinham a possibilidade de ter acesso aos serviços de saúde, independentemente da possibilidade de custeá-los e independente de qualquer forma de contribuição. É o que evidencia os dados do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2002, p. 43):
Com a estratégia das ações integradas a cobertura dos serviços de saúde no Brasil aumentou muito: as ações integradas de saúde alcançaram 664 municípios, que correspondiam a cerca de 70% da população brasileira.
Significava que em meados da década de 1980 mais da metade da população brasileira já podia ser atendida gratuitamente sem ter que comprovar qualquer vínculo de contribuição para a Previdência Social.
Por volta de 1986 já era claro que para continuar expandindo o direito à saúde seria necessário superar de vez a divisão entre assistência médica e a saúde pública. Aqueles que defendiam o movimento da Reforma Sanitária promoveram um amplo fórum de debates sobre como deveria ser a configuração desse sistema que garantisse o direito à saúde. Esse fórum foi a VIII Conferência Nacional de Saúde Pública (CNS) que contou com ampla participação popular e levou a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) em 1987.
O SUDS propunha uma descentralização ao mesmo tempo em que se unificava. Aumentava-se as responsabilidades e a autonomia dos superintendentes do INAMPS em cada estado da Federação, reduzindo a concentração de poder na cúpula. Ao mesmo tempo, estabeleciam-se convênios com as secretarias estaduais de saúde para que estas assumissem de fato o comando único da rede sob responsabilidade do INAMPS.
Foi nesse contexto que foram firmadas posições, como o reconhecimento de que saúde deve ser direito de todos e dever do Estado, que influenciaram a Assembléia Nacional Constituinte levando à redação do capítulo da saúde da CF/88 a estabelecer uma nova lógica de organização em saúde.
O SISTEMA NORMATIVO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Em 05 de outubro de 1988 houve a promulgação da atual Constituição Federal que incorporou conceitos e princípios, em termos de saúde, defendidos pelo movimento da Reforma Sanitária, demonstrando, assim, claro compromisso com o Estado de bem-estar social. O texto constitucional individualizou-se no cenário do constitucionalismo internacional por positivar o direito à saúde, bem como o sistema incumbido de sua garantia, em termos os mais abrangentes. Nessa sistemática o direito à saúde é assegurado como um direito social fundamental através do artigo 6°, caput, e está previsto nos artigos 196 a 200, todos da CF/88.
O artigo 196 da CF/88 estabelece:
A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Ao positivar o direito à saúde, a Constituição trouxe um conceito de saúde abrangente, como já preconizava o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), datada de 26 de julho de 1946, agregando a este conceito todas as formas de concepção de saúde, quais sejam: promoção, proteção e recuperação. Ademais, a própria legislação brasileira incorporou o conceito amplo de saúde, trazendo como fatores condicionantes e determinantes para a efetivação da saúde, a alimentação, a moradia, assim como todas as ações que se destinem a garantir o bem-estar físico, mental e social dos cidadãos. É o que se depreende do artigo 3° e seu parágrafo único da Lei n° 8.080/90:
Art. 3º - A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.
Parágrafo Único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.
Procurando realizar o dever estatal de prestação positiva no que tange os direitos sociais, o artigo 198 da CF/88 traz consigo outra inovação no constitucionalismo pátrio, instituindo o sistema capaz de dar efetividade ao direito à saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS é a principal política social e econômica para a proteção e garantia da saúde no Brasil e é regulado pela já referida Lei n° 8.080/90, conhecida como a Lei Orgânica do SUS.
Por todo o exposto, afirma-se que o acesso à saúde no Brasil é assegurado como um dos direitos sociais previstos na Carta Magna (art. 6º) e também, incluído na Seguridade Social do mesmo texto normativo (art. 196), onde preceitua saúde como direito de todos e dever do Estado. Sendo assim, reafirma-se, que a saúde no Brasil pressupõe um direito do cidadão e, em contrapartida, uma obrigação do Estado. Este dever abrange uma série de medidas estatais no saneamento básico e ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) com o essencial objetivo de proporcionar um atendimento eficaz a coletividade.
CONCLUSÃO
Ao analisar o histórico da saúde no Brasil, podemos concluir que, não só de direito, mas como de fato, o direito a saúde só foi ser concretizado com o advento da Constituição de 1988. Anteriormente a esta Constituição, as ações de saúde não eram prestadas a todos. Tal Constituição não só garantiu o direito a saúde, como criou um sistema capaz de efetivá-lo. Assim surgiu o Sistema Único de Saúde (SUS) que é regulamentado pela Lei n° 8.080/90.
Sendo assim, conclui-se que a República Federativa do Brasil seguiu a concepção de Estado Social e buscou para si a responsabilidade de proporcionar o bem-estar social, garantindo a saúde como um direito fundamental.
Bacharelanda em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Estagiária da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Anelisa Mota Sales. A construção do direito à saúde no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jul 2012, 09:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29874/a-construcao-do-direito-a-saude-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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