O presente artigo tem por objetivo fazer uma correlação entre as ideias principais contidas nos textos extraídos das obras Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro – 1930 aos dias atuais, Viagem incompleta – A grande transação, e A Constituição de 1988 na vida brasileira.
Serão apresentadas resenhas individualizadas para cada texto selecionado. Posteriormente, por meio de uma síntese das obras resenhadas, serão identificados os pontos de convergência e de divergência na abordagem feita por cada autor, valendo-se de bibliografias adicionais acerca dos temas tratados.
O presente tópico tem por intuito uma abordagem histórica acerca do período pós-1930 no Brasil através da obra Para uma visão de conjunto: a história do Brasil pós-1930 e seus juristas, elaborada por Carlos Guilherme Mota.
O autor, nesse estudo, busca demonstrar o papel que os juristas desempenharam ao longo da história de nosso país, num contexto que vai desde o início do Governo Vargas, em 1930, até o Governo Lula – conjuntura que ainda faz parte do período em que estamos atualmente. Em sua obra são feitas subdivisões para facilitar a delimitação de dos acontecimentos.
Iniciando-se, assim, pela Era Vargas, a qual pode ser dividida em três períodos: República Nova, de 1930 a 1937; Ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945, e, por fim, República Populista e República Patricial, de 1946 a 1964. É interessante salientar que a Era Vargas, de modo geral, é caracterizada pela ocorrência de diversas de reformas, levantes, representações e tentativas de superação da condição de país subdesenvolvido e dependente. As ideias reformadoras de uma burguesia, combinadas com as práticas “neocoronelísticas”, foram responsáveis pela instauração de um novo sistema de poder.
Ao longo da trajetória do presidente Vargas, pode-se observar o seu viés contraditório. O autor cita que Getúlio, como bacharel, era tido como liberal, e apresentava traços positivistas. Na ditadura do Estado Novo, este reafirmou seu poder jogando ora com os conservadores, ora com os progressistas – optando pelo primeiro grupo, mas praticando algumas medidas reformistas. Vargas lança os integralistas na ilegalidade, embora o regime continuasse com moldes fascistas, supervisionado por Francisco Campos. Nessa mesma linha, com o advento da 2ª Guerra Mundial, Vargas alternou-se entre as potências do Eixo e os Aliados; o Presidente não evitou a deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista, o que diz bastante sobre a sua postura pró-Eixo nesse determinado momento, tendo, contudo, mudado de lado ao final da guerra.
A crise de 1929 foi de amplos reflexos no mundo inteiro, não podendo ser diferente no Brasil. Tal fenômeno seria denominado por Celso Furtado de “socialização das perdas” e permitiu a ascensão de novos grupos sociais e novas definições dos monopólios políticos das elites. Foi assim que, a partir de 1930, o campo foi perdendo lugar para as cidades, posto que boa parte dos brasileiros passava agora a morar nos centros urbanos. Com relação aos novos monopólios políticos, no período do Estado Novo a democracia liberal das oligarquias foi substituída pelo corporativismo de inspiração fascista. Mudou-se o monopólio político, mas a população ainda encontrava-se excluída do processo político.
O período advindo de 1930 foi marcado, como dito acima, por uma série de mudanças de caráter cultural. O autor atesta que se vivia como “redescobrindo o Brasil”, era como se a sociedade brasileira estivesse abrindo os olhos para si mesma. Duas obras de grande importância nessa inauguração do pensamento brasileiro contemporâneo são Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Júnior. A denúncia da situação crítica do Brasil e a maior observância de suas mazelas sociais passaram a ser enfoque da intelectualidade, a qual, até então, não se manifestava de tal maneira. Exemplos dados por MOTA daquele contexto social são 1 milhão de e meio de eleitores para 20 milhões de habitantes adultos; e irrisórios 27% de matrículas para uma população de 8 milhões.
Em 1935, a Intentona Comunista representou um levante contra o autoritarismo, oferecendo a Vargas uma oportunidade de aumento da repressão; as liberdades individuais, que já não eram amplas, tornaram-se ainda menos presentes, culminando com a implantação do Estado Novo. Este, segundo a concepção de MOTA, não passou de um reflexo do regime fascista italiano, porém adaptado à mentalidade coronelística dominante. Cabe lembrar que o mais importante jurista desse regime foi o professor Francisco Campos, um dos arquitetos do Estado Novo para quem, inicialmente, governar seria resumido a prender. O professor também foi quem teria ajudado, juntamente com Benedito Valadares, a preparar o Plano Cohen – um plano preventivo contra o integralismo, o comunismo e o liberalismo[1].
Foi assim que, em dezembro de 1937, os jornais publicaram o plano COHEN: um plano supostamente elaborado pelos comunistas para tomar o poder. A verdade, contudo, é que toda história havia sido tramada de modo a justificar uma intervenção armada do governo e para assustar a população. Na data de 10 de novembro de 1937, as tropas leais ao golpe fecharam o Senado e a Câmara. À noite, Vargas explicava ao país porque havia desfechado o golpe militar. Era o início do Estado Novo, com extinção do sistema representativo, anulação das liberdades públicas, o Estado tutelando a sociedade. Nacionalista e antiliberal, com preocupação reformista voltada para os assalariados urbanos. Os partidários de Vargas redigiram uma nova carta constitucional, semelhante à constituição fascista da Polônia ocupada pelos nazistas alemães – a Polaca.
Durante o Estado Novo, houve a extinção dos partidos políticos, a concentração de todos os poderes na figura de Vargas, a supressão da Câmara e do Senado, a perseguição da oposição – seja liberal ou comunista -, além de diversas outras práticas repressivas. Também fica claro que, em seu estado de emergência, os atos do presidente não eram julgados por qualquer outro poder, o que reforçava a amplitude de sua discricionariedade.
Curioso é o fato de que o professor Francisco Campos, na iminência da queda do regime, abandonaria o discurso autoritário. Com o decorrer do tempo, Getúlio vai aos poucos perdendo o apoio dos militares, sendo deposto por um golpe militar em 1945. Vargas, pelo voto, retornou à presidência em 1950, mas pressionado pelas forças conservadoras, foi levado ao suicídio em 1954.
Dando um salto histórico para o governo do Presidente João Goulart, no qual se verificou que além da sua condição de subdesenvolvimento, o Brasil era amplamente dependente da assistência governamental. Em 1964, uma guarnição vinda de Juiz de Fora marcha em direção ao Rio de Janeiro, comandada pelo General Olímpio Mourão. O golpe militar depôs o Presidente Jango. Vale dizer que esse golpe foi bem-visto pelo governo dos Estados Unidos, preocupado com o avanço do nacionalismo econômico e social pregado pelo presidente civil. MOTA menciona que não teria sido difícil reprimir o levante de Juiz de Fora, composto de recrutas. No entanto, Goulart não teria oposto resistência por saber que, iniciada a luta, não haveria como interrompê-la; além disso, o então presidente não queria que se iniciasse uma guerra civil no país.
Relacionado à República Civil Militar, vigente no período de 1964 a 1985, MOTA discorre sobre os Presidentes, bem como sobre o contexto social em que estes atuaram. Os antigos tenentes estavam no poder, agora como generais, porém em um contexto histórico bastante diverso. O principal binômio dessa época tão importante da história brasileira – importante, aqui, não por ser boa ou ruim, mas por ter sido indubitavelmente marcante – é segurança e desenvolvimento. A população, que estava pouco a pouco reconquistando a sua participação política, volta a ser afastada das decisões políticas. Os militares empenharam-se principalmente no processo de modernização da economia, criando a infraestrutura necessária para o desenvolvimento industrial. Em contrapartida, deixou-se de lado a ampliação das liberdades democráticas no país, bloqueou-se o reformismo nacional-desenvolvimentista e anularam-se os esforços na busca de uma política externa independente, ou seja, fora da esfera de dominação americana.
Na época dos governos militares, uma série de Atos Institucionais foram criados, visando a determinações e restrições. O AI-1, por exemplo, permitiu punições extralegais de oposicionistas ao governo militar, além de tirar parte do poder do Legislativo, transferido, agora, para o Executivo. Inicialmente nomeado pelo Presidente Castelo Branco para Ministro do STF, Carlos Medeiros Silva seria, após, Ministro da Justiça. Silva redigiu o anteprojeto da Constituição de 1967, bem como a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Imprensa. Com a posse de Costa e Silva, Carlos Medeiros é exonerado de seu cargo.
Luís Antônio da Gama e Silva, professor da Universidade de São Paulo, é nomeado Ministro da Justiça no governo Costa e Silva. Foi o responsável pela redação do Ato Institucional Nº 5, tido como o ato mais autoritário. Dentre as principais prerrogativas desse ato: era autorizado ao presidente cassar mandatos eletivos, suspender os direitos políticos e suspender a garantia de habeas corpus. MOTA descreve que, por força do AI 5, em janeiro de 1969, três ministros do STF foram aposentados compulsoriamente. Em protesto, outros dois solicitaram aposentadoria. A dominação militar alastrava-se de modo a deter todos os segmentos do poder. No entanto, apesar de suas bases aparentarem coesão, o Governo Militar começava a romper a sua unidade devido a conflitos internos.
Passado o governo Médici – dito como o mais autoritário – seguimos rumo ao governo Geisel, o qual tinha como proposta inicial a abertura lenta, gradual e segura do seu regime - até porque a pressão internacional concernente aos direitos humanos aumentava a cada dia. Foi Geisel o responsável por tirar a censura dos jornais. O fato é que as forças da extrema direita mostravam-se vivas e muito bem articuladas, revelando uma frontal discordância das iniciativas do presidente. Foi assim que, representando um retrocesso com relação a sua proposta inicial de abertura, Geisel instituiu o Pacote de Abril. Num pacote de medidas jurídico-políticas, Geisel prorroga o mandato do futuro presidente, impõe eleições indiretas para os governadores, impõe ao Senado senadores por ele nomeados - para garantir maioria no Congresso -, fixa o número de deputados por estado sem atenção às diferenças populacionais, dando assim maior peso a políticos mais facilmente manipuláveis. O pacote configurou o retrocesso, gerando uma série de manifestações por parte da imprensa, da universidade e em várias organizações representativas da sociedade civil. Como bem atestado por Elio Gaspari: “Geisel queria menos ditadura sendo mais ditador”. Como visto, o Presidente não era tão “liberal” quanto se imaginava.
No contexto do Pacote de Abril esteve a Carta aos Brasileiros, um documento feito por Gofreddo Silva Telles Júnior que representou o marco decisivo no processo de abertura democrática no país. A Carta proclamava o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livremente pelos representantes do povo, numa Assembleia Nacional Constituinte. Interessante salientar que a Associação dos Advogados de São Paulo, contrariando a tradição de não se manifestar em matéria política, subscreveu a carta com a compreensão de que não se tratava de questão político-partidária, mas sim institucional.
Em 1978, Geisel, acuado, revoga todos os atos institucionais passados. No ano seguinte, Figueiredo é o quinto e último presidente militar. Em agosto de 1979 o projeto de anistia é aprovado pelo Congresso, a abertura do regime é inevitável. Em 1985 há a eleição indireta de Tancredo Neves, na qual, após a sua morte, Sarney assume: é o período da Nova República. De qualquer forma, a eleição de Sarney, mesmo que indireta - no caso, a eleição de Tancredo -, representou a transição de um regime de exceção para um regime liberal-democrático. Em 1988 é aprovada a nova Constituição, sob a presidência do Congresso de Ulisses Guimaraes, é a famosa Constituição Cidadã.
A extensão da Constituição de 1988 foi e é criticada. Porém, conforme MOTA demonstra, são necessárias as minúcias para impedir que, sob pretexto de necessidade de esperar por leis regulamentadoras, muitos direitos fiquem apenas na declaração formal, sem efetividade.
A abertura também pode ser verificada já nas greves operárias de 1978 e 1980, que simbolizam a profundidade das transformações vividas pelo país, principalmente aquelas localizadas no mundo trabalhista. O contexto social, a partir daí, tenderia a mudar consideravelmente, principalmente com o advento capitalista e o consequente surgimento de uma nova classe média emergente; o que não significa que o Brasil coronelista dos “parasitas de Estado” deixava de existir, pois ele continuava presente. Discussões sobre corrupção, reformas, educação, fome, miséria eram cada vez mais presentes. Faziam-se sentir os efeitos de longo prazo da ditadura e dos governos subsequentes. A cultura do marketing encobriria uma grande rede de interesses particulares, que estavam envolvidas grande parte do empresariado e dos políticos.
Com o advento dos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, houve uma consolidação da democracia liberal. Há que se entender que essa democracia não era – e ainda não é – perfeita, há um longo caminho a se trilhar. Contudo, ao voltar-se o olhar para a liberdade de expressão, verificamos que a tendência é de uma abertura democrática cada vez maior.
Nesse segundo tópico, nos ateremos ao artigo de Amélia Cohn, intitulado A questão social no Brasil: a difícil construção da cidadania, no qual a autora busca sintetizar os diversos conteúdos e consequências que a questão social assumiu no decorrer do século XX em nosso país.
A autora inicia seu trabalho a partir da necessidade de delimitação do termo “questão social”, afirmando que essa expressão normalmente aparece em nossa literatura como sinônima de “problemas sociais”, estes tidos por fenômenos sociais que, por critérios éticos ou morais, se destoam de um determinado padrão idealizado.
Dessa forma, muito embora possam violar algum aspecto ético ou moral, não são todos os problemas sociais que são socialmente intoleráveis, de modo a merecer prioridade em seu enfrentamento imediato. Fome, pobreza, analfabetismo são, sem dúvida, problemas relevantes, porém tidos como passivelmente toleráveis. Destarte, adquirem prioridade aqueles problemas identificados pela sociedade como ameaçadores - reais ou potenciais - à ordem social, e, por conseguinte, à segurança individual do cidadão; são exemplos o homicídio, a violência e o latrocínio. Aliás, a ideia de tolerável e intolerável está ligada à noção da definição social do “patológico” e do “normal”.
É esta última classe de problemas sociais que, no início do século XX, mereceu certa atenção do Estado, embora de maneira pontual. Aqueles problemas sociais que, numa primeira aproximação, não ameaçassem a manutenção da ordem social eram tidos como problemas atinentes à esfera privada, sendo tratados no âmbito da filantropia. “Em resumo, questão social é tida como objeto da filantropia, à qual se associava prestígio social” [2]. O maior exemplo deste segundo tipo de problema social é a pobreza.
Contudo, nos anos 1930, em decorrência da industrialização do país e da concentração de pessoas nas cidades, os movimentos de trabalhadores conseguiram atrelar a idéia de questão social ao trabalho, propagando o entendimento de que competia ao Estado intervir nas relações trabalhistas com vistas à manutenção de um patamar mínimo de bem-estar de seus cidadãos. A partir desse período também, a ideia de cidadão passa a ser distinta da noção de pobre; questão dos trabalhadores seria sinônimo de questão de cidadania, ao passo que a questão da pobreza seria ainda deixada de lado, ainda aos cuidados da esfera privada. Nesse sentido, afirma a autora:
É portanto via trabalho que determinados problemas sociais da realidade brasileira transformam-se em questão social, e como algo pertinente à esfera pública. Vale dizer, passa ao âmbito da política, uma vez que começa sistematicamente a ser remetida para a responsabilidade do Estado. Isso significa, em outros termos, que se assume aqui uma diferenciação básica entre problemas e questões sociais: enquanto os primeiros dizem mais respeito a coisas e fenômenos indesejáveis, porém aceitáveis de com eles se conviver, as segundas remetem à esfera do reconhecimento de alguns dentre esses fenômenos como legítimos, e como tal devendo ser enfrentados pela coletividade, constituindo-se e regulando-se assim determinados padrões de solidariedade social. [3]
Essa origem da questão social brasileira, atrelada intimamente à relação do indivíduo com trabalho, e não do conceito de cidadania, traz como conseqüência, que pode ser verificada até nos dias atuais, a destinação das políticas e programas sociais a dois públicos distintos: os cidadãos e os pobres. Cidadãos alcançariam o “merecimento” à proteção social tendo em vista a sua colaboração para com o sistema. Dessa forma, os pobres, por não contribuírem, deveriam esperar os “favores” a partir da boa-vontade das entidades filantrópicas.
Tal distinção, que traz em seu cerne a ideia de incapacidade das pessoas menos favorecidas economicamente, deu ensejo a políticas de caráter paternalista e clientelista. Conforme COHN atesta, o fato das políticas sociais comandadas pelo Estado reproduzirem a subalternidade dos segmentos mais pobres da população reforça o seu reconhecimento como sujeitos dependentes de favores do Estado[4]. Esse procedimento do Estado peca por não promover a inclusão social de seus cidadãos, reproduzindo uma mentalidade de inferioridade e incapacidade das classes mais pobres da população.
Assim, as duas características fundamentais, apontadas pela autora, de como o país trabalhou a “questão social” desde o início do século são: a antinomia entre políticas econômicas e políticas sociais e o traço centralizador do Estado como o grande modernizador da sociedade.
Não obstante esse aspecto autoritário e dominador constatado, COHN chama a atenção para o fato de, ao analisarmos historicamente quais os segmentos da sociedade são mais favorecidos por políticas e benefícios sociais, chegarmos à conclusão de que não são as classes mais baixas, mas sim, em primeiro lugar, os não pobres, seguidos dos pobres, e, por fim, os mais pobres dentre os pobres. Tal fato é realmente preocupante, visto que representa um absurdo e uma manutenção da desigualdade. Nesse sentido, registra a autora:
Em resumo, apresenta-se aqui a tese, compartilhada por numerosos analistas e estudiosos das políticas sociais no país, de que no caso brasileiro elas não só reproduzem as desigualdades sociais já existentes [...], como também reproduzem a subalternidade dos dominados[5].
Apesar de sua origem nas relações de trabalho, a partir da segunda metade dos anos 90, tem se verificado uma nova conformação nas bases da política social brasileira. A solidariedade social, outrora fundada no mercado de trabalho, agora se volta para o mercado de consumo. Como reflexo dessa mudança de paradigma, houve uma alteração no conceito de cidadão, uma vez que não mais prevalece a situação de cidadão como membro do mercado de trabalho, mas sim como consumidor, como gerador de poupança. A denominada “flexibilização das relações de trabalho”, isto é, a terceirização de partes do processo produtivo, bem como a busca da diminuição dos custos sociais, são características marcantes dessa nova fase.
Nesse panorama, em vias de implementar a pretensa “competitividade econômica” em relação às outras nações, o Estado tem reduzido os direitos sociais conquistados pelos trabalhadores, tais como: saúde, ensino e previdência, deixando o acesso a essas necessidades básicas - as quais deixam de ser vistas como direito - à capacidade de poupança de cada indivíduo.
Conforme Cohn:
Uma vez mais, instiga o fato de ser exatamente quando da consolidação da ordem democrática no país que se assiste ao “desmonte” dos direitos sociais básicos do cidadão, o que remete de imediato para a questão de que o país, vale dizer nossas elites políticas, tal como desde os tempos imemoriais, continua não enfrentando a questão central da articulação entre democracia política e democracia social[6].
Corrobora com a visão da autora o fato de o Brasil estar entre as dez maiores economias do mundo e, simultaneamente, apresentar uma elevada taxa de desigualdade social.
Tem-se, portanto, que a questão social no Brasil atual deixou de ser uma questão de inclusão social por meio do trabalho, para ser inclusiva em termos de consumo. A capacidade de contribuição de cada um, independente deste estar ou não empregado, é o que prevalece. Tal fato tem imprimido - não só em nosso país, mas na maioria dos países emergentes - novos padrões de regulação da sociedade, os quais suprimem direitos de cidadania conquistados no passado.
Para a autora, esse cenário de abstenção estatal só tende a agravar a pobreza e os problemas de distribuição de renda em nosso país. COHN expressa esse fenômeno pela expressão “naturalização da pobreza”, posto que agora a pobreza faria parte de uma fatalidade. Nessa nova realidade, por meio da “naturalização da pobreza”, o Estado tenta conclamar a sociedade e o setor privado para atender determinados indivíduos que se enquadram em um “parâmetro técnico” de socialmente vulneráveis, visando, ao mesmo tempo, a gerar um novo tipo de solidariedade social e transferir para a esfera privada a materialização das necessidades básicas de cada um. Ademais, as propostas políticas atuais são acompanhadas da perspectiva de que o Estado não pode fazer tudo, e de que lhe faltam recursos para sanar, ou ao menos abrandar a desigualdade social. É também interessante verificar que o que outrora era tido como moderno – os direitos sociais – passa a ser considerado ultrapassado e deixado de lado.
Destarte, o nosso grave cenário de desigualdade social exige uma atuação do Estado como promotor da redistribuição de renda. O que deve ser levado em consideração não são os custos do Estado como competidor no mercado internacional, mas sim que tipo de Estado é necessário para se enfrentar esse desafio representado pela crescente distância que nosso país tem vivenciado entre a democracia formal e a democracia real.
Conclui a autora:
A grande tarefa que ainda está para ser enfrentada neste país consiste portanto em efetivamente se constituir e consolidar uma ordem democrática. Desafio não de pequena monta, uma vez que implica deslocar a questão social do âmbito da pobreza para o da desigualdade social, vale dizer, de transformar a questão social numa questão redistributiva de riqueza e poder[7].
Quanto a essa última obra, será tratado exclusivamente o capítulo referente à incorporação dos direitos humanos na nossa atual Constituição, segundo Sérgio Adorno.
O autor inicia a sua explicação realizando um breve relato acerca do contexto histórico dos direitos humanos, mais especificamente quanto à edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esse documento - inspirado na Magna Carta, de 1215; na Bill of Rights, de 1689; na Constituição Americana, de 1787, e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 - foi elaborado no período posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, tinha como pretensão proclamar direitos que pudessem alcançar todos os homens, indistintamente, independentemente de cor, raça, sexo, credo ou nacionalidade. Isto é, buscava colocar o ser humano no centro do direito internacional, como sujeito de direitos.
Na ocasião da elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, os direitos humanos então discutidos referiam-se aos hoje denominados direitos da primeira e da segunda gerações. Os direitos da primeira geração se remetem às liberdades individuais, aos direitos civis e políticos, os quais se relacionam à esfera de liberdade individual na qual o Estado deve abster-se de intervir; já os direitos da segunda geração relacionam-se com os direitos econômico-sociais, exigindo um Estado mais atuante para sua materialização.
A despeito da positivação de tais direitos fundamentais, outros tantos foram ganhando espaço posteriormente à edição da Declaração Universal. Em realidade, os direitos nunca irão parar de surgir, tendo em vista que estes não representam uma esfera estática, mas sim uma esfera dinâmica, em constante renovação. Em decorrência disso, diferentes documentos internacionais foram elaborados no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) de modo a abarcar essas novas demandas. Dentre eles, podemos citar o Estatuto dos Refugiados e Apátridas (1950), a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre a Biodiversidade Biológica ( Rio-92).
Deve-se ter em mente, em meio a tantas reivindicações, o papel central desempenhado pelo Estado na perpetuação desses direitos. Conforme o autor: “Sem a intervenção ativa do poder público e dos Estados soberanos é improvável que as sociedades do mundo ocidental tivessem logrado respeito e consolidação de direitos humanos[8]”.
A partir dessa breve contextualização, o autor faz uma imersão no cenário brasileiro, de modo a buscar dados que indiquem o período em que os direitos humanos emergiram em nossa sociedade, como uma questão pública e política. Claro está que a sua ocorrência no Brasil diferiu, e muito, de sua ocorrência na França, por exemplo. Assim, ao que tudo indica, esse marco foi sendo construído durante a resistência ao regime militar instaurado entre 1964 e 1985.
O Regime Militar, mormente descrito na primeira obra, caracterizou-se pela expansão da intervenção estatal nos mais diversos setores da sociedade, bem como pelo aspecto centralizador do processo decisório. Sua manutenção se deu à custa de um sistema de repressão militar, responsável por diversos atos dignos de um estado de exceção.
Segundo ADORNO, não obstante tenha havido resistência ao regime militar desde a sua instauração, os movimentos mais significativos em favor do retorno ao Estado de Direito e à normalidade democrática ganharam corpo por volta da década de 1970.
Nesse processo de transição democrática, assistiu-se à constituição de movimentos de defesa dos direitos humanos por todo o país, em especial em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre. Se, por um lado, as motivações internas eram cada vez mais evidentes, a organização desses movimentos foi em grande medida influenciada por pressões externas, como a da Liga dos Direitos Humanos da França e a política de direitos humanos do Governo Carter (1977-1981)[9].
Apesar de não se alinharem ideologicamente à política norte-americana conduzida por Carter, muitos movimentos em prol dos direito humanos viram, nessas alianças com organismos internacionais, uma oportunidade política para materializar seus anseios. Tais alianças foram preponderantes na luta pela anistia geral e irrestrita (1978-79) e na campanha pelas Diretas Já (1984). Os movimentos acima, como não poderiam deixar de ser, tiveram impacto relevante nos trabalhos da Assembléia Constituinte instaurada nos momentos finais do governo militar.
Como produto desse embate, foi elaborada a Constituição de 1988. A nossa Carta Magna traz como fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. Estatui, igualmente, como um objetivo fundamental, a promoção do bem geral, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Juntamente com a elaboração da nossa Constituição, veio o conceito de sujeito universal de direitos, o qual abarca consigo duas perspectivas. A primeira refere-se ao sujeito como titular de direitos individuais que devem ser garantidos pela ação do Estado; a segunda diz respeito ao sujeito coletivo,
para quem o acesso a direitos é função de sua inserção original na comunidade humana, com a qual compartilha valores universais independentemente da singularidade de que tal inserção possa revestir-se em grupos sociais portadores de identidades próprias[10].
É relevante o papel conferido ao Estado nesse novo ordenamento jurídico. Por um lado, compete a ele proteger os cidadãos contra qualquer violação aos direitos humanos. Por outro, é responsável por promover, por meio de políticas públicas, a universalização do acesso aos direitos econômicos, sociais, políticos e culturais.
De acordo com a sistemática adotada em nossa Constituição, os direitos humanos estão dispostos, principalmente, em seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, o qual se divide em quatro capítulos: dos direitos e deveres individuais e coletivos; dos direitos sociais; da nacionalidade; e dos direitos políticos. Entretanto, tais dispositivos não encerram a questão, haja vista a previsão de direitos humanos em outros dispositivos constitucionais, bem como externamente à Constituição, em tratados internacionais que o Brasil seja signatário versando sobre o assunto.
E é assim que o autor assevera que,
o desejo de enterrar o passado autoritário, de evitar retrocessos e as tentações golpistas bem como de proscrever a repetição dos regimes de exceção fizeram com que a Constituição lançasse, por todos os lados, as bases de uma verdadeira armadura jurídico-legal contra a violência institucionalizada e o poder arbitrário. Pois, ambos – violência institucionalizada e poder arbitrário – haviam alcançado, ainda há pouco, cidadãos vulneráveis e desprotegidos de proteção legal, que simplesmente reivindicavam direitos consagrados nas convenções internacionais de direitos humanos [...][11].
Passando à efetividade das nossas normas constitucionais, o autor sustenta que são inverídicas as suspeitas de que a Constituição brasileira seja pouco respeitada. Uma simples comparação com experiências constitucionais anteriores revelaria avanços e conquistas em diversas áreas, dentre elas os direitos e garantias constitucionais. Nesse sentido, assevera que, num passado recente, não obstante os preceitos constitucionais fossem aplicados genericamente a todos, sua efetividade alcançava um número muito restrito de cidadãos, geralmente pertencente às elites econômica e política. Alterando esse cenário, a “Constituição Federal de 1988 [não só] alargou o leque de direitos humanos como também os sujeitos de direito”[12].
Como exemplo dessa mudança propiciada pela Carta Constitucional, o autor destaca os seguintes avanços em relação ao regime anterior: o retorno ao estado democrático de direito alterou as tradicionais assimetrias de poder entre elites e “não-elites” a ponto de um operário assumir, pela primeira vez na história, o posto de Presidente da República; a garantia de liberdade de imprensa e a ausência de censura à livre circulação de informações tem permitido denunciar abusos de poder, corrupção de autoridades e maus usos da maquina pública, possibilitando um maior controle social do estado; há uma maior participação da população na definição da agenda política e no encaminhamento de processos decisórios.
Não obstante essas melhorias, há ainda muitos outros problemas que a Constituição de 1998 não pôde solucionar, uma vez que já se encontravam fortemente incrustados na cultura política nacional. Dentre eles, destacam-se as praticas patrimonialistas de apropriação do estado por agrupamentos políticos e a atuação estatal de forma autoritária e paternalista.
Outros problemas que merecem destaque são aqueles relacionados às violações de direitos humanos, tais como existência de tortura, impunidade para crimes cometidos por classes sociais de destaque, racismo, etc.
Diante de tal contexto, conclui o autor:
É certo que em outras sociedades do mundo ocidental, em particular as do hemisfério norte constituídas em torno do capitalismo avançado, a consolidação dos direitos humanos não foi obra exclusiva de ilustrados juristas e legisladores herdeiros das tradições iluministas e racionalistas. Resultaram, como demonstram estudos históricos, de sofrimentos inomináveis nos campos de concentração e de trabalhos forçado com dolorosas perdas para não poucos grupos sociais, estimulando lutas de resistência às graves violações de direitos humanos e pelo reconhecimento universal desses direitos. É igualmente certo que, mesmo nestas sociedades, há quem – autoridades e civis – faça vista grossa ao genocídio em sociedades africanas, aos crimes contra a humanidade ocorridos durante as ditaduras militares, ao estado de exceção que vem sendo aplicado aos prisioneiros de Abu-Graieb e Gunatánamo nas guerras contra o terrorismo. Sob essa perspectiva, direitos humanos são dinâmicos; consistem em conquistas e formulações históricas, como tais suscetíveis de constantes avanços e recuos, assim como submetidos a um processo inevitável de invenção e de expansão de novos direitos. Em certa medida, não tem sido diferente na sociedade brasileira contemporânea[13].
3. Correlação entre os textos resenhados: O Paradigma procedimental
A partir da leitura dos textos Os juristas na formação do Estado Brasileiro – 1930-dias atuais, Viagem Incompleta – A grande transação e A Constituição de 1988 na vida brasileira, pode-se fazer um paralelo acerca da questão política aliada aos aspectos históricos e jurídicos. Em realidade, o exame de cada aspecto isoladamente não permite uma análise satisfatória, uma vez que todas as categorias são interdependentes na composição de um contexto social. Dessa forma, será feita, aqui, uma análise conjunta entre os aspectos correlatos e os dissidentes das obras.
Conforme MOTA, os anos 1930 foram de grande efervescência cultural: era um redescobrimento do Brasil. Desse período em diante, a intelectualidade sairia de sua consciência de atraso, apontando a situação problemática do país, em termos de miséria. E, de fato, a desigualdade social era alarmante, com 1 milhão e meio de eleitores para 20 milhões de habitantes adultos e míseros 27% de matrículas para uma população de 8 milhões. De acordo com COHN, a carência na educação é um exemplo de problema social que não ocupa posição de prioridade junto ao governo, por ser relativamente tolerável. Salienta-se, ainda, que apesar dos dados descritos corresponderem ao início do século XX, tal realidade não se encontra tão distante do contexto social atual, pois a educação brasileira ainda carece de muitas melhorias.
De fato observa-se o descaso com a educação desde muito tempo. Em verdade, nunca houve real interesse em amenizar a desigualdade social e a miséria através de um amplo acesso à educação pelas camadas menos favorecidas. Era mais prático “conceder favores”, através de um Estado paternalista que não ensina o filho a pescar, e sim lhe entrega o peixe. Aliás, MOTA é feliz em sua observação de que “Uma população trabalhadora menos rústica não seria reduzida à condição de substituta e sucessora da população escrava e liberta por tanto tempo, se dispusesse de melhor nível educacional e cultural”. Nesse mesmo pensamento, também Boaventura, o qual revela que a distância entre os cidadãos menos favorecidos e a administração da justiça é relacionada não só a fatores econômicos, como também a fatores sociais e culturais[14].
A ideia de incapacidade dos menos favorecidos é justamente o que dá ensejo às políticas paternalistas do Governo. No entanto, essa mesma política paternalista, como dito, não propõe uma reforma de base, capaz de sanar o problema da desigualdade e da exclusão. Há que se ter em mente que a carência educacional é um aspecto de extrema relevância, ademais, uma população sem educação qualificada é também uma população ausente, excluída da participação política, e, conseguintemente, não há a plenitude do exercício democrático.
Para Habermas, os indivíduos apenas podem produzir normas justas para si se estes utilizarem seus direitos políticos na esfera pública. Daí advém ideia do paradigma procedimental. Já não há uma grande separação entre as esferas pública e privada. A ampliação do público, fazendo com que a fronteira seja pouco a pouco derrubada, pode ser paradoxal. Isso, pois, ao mesmo tempo em que a massa passou a ser mais citada e considerada, esta se encontra distante do poder de decisão e de sua distribuição efetiva. Além disso, a sua racionalidade encontra-se comprometida por não ser estimulada e pela grande presença da cultura de massas. Dessa forma, o paradigma procedimental, idealizado por Habermas, não pode alcançar a sua efetividade.
No período posterior a 1945, verificava-se que, além de subdesenvolvido, o Brasil era um país “dependente”. O crescimento populacional urbano desencadeou uma série de problemas, dado que a nova população necessitava de uma estrutura da qual o país não dispunha. Além disso, os novos trabalhadores, vindos do interior do país, não possuíam qualquer tradição de luta por seus direitos trabalhistas contra os baixos salários.
É conveniente notar que um problema social tido como tolerável ou “normal” – segundo a concepção de COHN - pode ser o mesmo a desencadear o problema social “patológico”, intolerável, isto é, aquele que ganha prioridade no tratamento; por exemplo: a pobreza pode ser um dos fatores responsáveis pela geração de violência; trata-se prioritariamente o produto – no caso, a violência - e não a causa – a pobreza.
A massa dos pobres no período colonial prolongou-se no período republicano, estes sem ter noção de seu papel na história, isolados e excluídos da sociedade em que viviam. “Desmemoriada, sem ter noção do tempo perdido por seus ancestrais anônimos, a massa de “desenraizados” cresce em contraste e confronto com a “boa sociedade”, ciosa de suas raízes e de sua “formação”, “ilhas de excelência” numa terra de miseráveis[15]”. De acordo com o sistema descrito pela autora sobre o conceito de “cidadão” atrelado à noção de trabalhador, os ditos “cidadãos” alcançariam o merecimento à proteção social tendo em vista a sua colaboração para com o sistema. Dessa forma, os pobres, por não contribuírem, deveriam esperar os “favores” a partir da boa-vontade das entidades filantrópicas.
Embora, segundo a concepção de COHN, a esfera pública e a esfera privada estejam bastante limitadas, ficando alguns problemas sociais, em determinados períodos históricos, sob a tutela da esfera privada, Habermas observa uma tendência de maior aproximação entre Estado e Sociedade. Em sua obra Mudança na estrutura social da esfera pública, ele atesta para a publicização do Direito Privado, como também para, mais tarde, uma privatização do Direito Público. Alguns exemplos disso: medidas públicas relacionadas à segurança que muitas vezes restringem propriedades privadas; o crescente número de contratos entre poder público e pessoas privadas; as empresas industriais privadas que constroem moradias, parques e que promovem manifestações culturais, dentre outras realizações. É útil observar que tais transformações emanaram de um longo processo social, de mudança nas relações pessoais, econômicas e ideológicas.
Destarte, o filósofo alemão afirma não existir grande diferença entre as esferas constituintes de uma sociedade - esfera pública e privada - na medida em que uma se interpenetra uma na outra. Embora boa parte de algumas instituições sejam tradicionalmente classificadas como privadas, o autor percebe que elas possuem um certo grau de influência na esfera pública. Entretanto, ao pensar que políticas públicas afetam diretamente a esfera privada, Habermas deduz que a esfera pública se funde, de certa maneira, com a privada – não mais cabendo separar as duas nas sociedades modernas.
Com relação aos direitos fundamentais, o Brasil possui um considerável histórico de sua violação – principalmente quando se menciona o Estado Novo ou o Regime Militar. A tortura, por exemplo, é narrada como prática recorrente em tais regimes. No Estado Novo houve a extinção do sistema representativo e a anulação das liberdades públicas; no Regime Militar, o AI-5 autorizava o presidente a cassar mandatos eletivos, suspender os direitos políticos e suspender a garantia de habeas corpus.
Dentro do estado de exceção, encontramos um dos temas presentes no estudo de Agamben. Pela concepção de Agamben em Homo Sacer, tal seria a consolidação da bio-política, ou seja, “a crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder[16].” Isso seria como se todos os direitos que teoricamente são inerentes a todos os indivíduos, inclusive o direito à vida, pudessem ser “confiscados” em um dado estado de exceção. Essa questão apresenta-se como paradoxal, uma vez que, com o passar do tempo, as garantias constitucionais deveriam estar teoricamente mais consolidadas.
A transformação da vida nua implica na perda de seu caráter natural em ordem da ampliação dos poderes públicos com relação a ela. O autor propõe uma diferente metáfora do Leviatã, cujo corpo de indivíduos representaria os corpos matáveis dos súditos do corpo político[17]. A vida nua torna-se o fundamento terreno da soberania e da legitimidade estatal[18] na bio-política. Nos Estados em que a bio-política está exacerbada - Nazismo alemão e Fascismo italiano, por exemplo - percebe-se claramente a influência do homem político sobre a vida comum[19].
Sob o enfoque dado por Agamben, a unificação da vida nua e da vida sacra se dá, atualmente, com o processo de instrumentalização jurídica. O primeiro registro da vida nua como novo sujeito político já está implícito no documento que é unanimemente colocado à base da democracia moderna: o writ de Habeas corpus de 1679[20]. Curioso ou não, o Habeas Corpus foi uma garantia suspensa no Regime Militar.
O Governo Militar empenhou-se prioritariamente no processo de modernização da economia brasileira; apesar disso, a ampliação das liberdades democráticas não foi explorada. Aliás, concernente ao golpe de 1964, muitos latifundiários, por temerem a revolução e a reforma agrária, apoiaram o golpe - fica clara a mentalidade reacionária dos detentores do poder político. A Carta aos brasileiros, no contexto repressivo do Pacote de Abril, representou o acendimento da chama democrática no país. Proclamava o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livremente pelos representantes do povo, numa Assembleia Nacional Constituinte. Aos olhos de hoje, parece óbvia essa necessidade, no entanto, naquela época, era uma relevante inovação.
Dentro da história brasileira, pode-se afirmar que um dos apogeus do curso da transição democrática foi a Constituição de 1988. A luta pelos direitos humanos no país obteve, com o advento dessa Constituição, um importante avanço, embora essa consolidação dos direitos humanos ainda não tenha se completado. ADORNO faz lembrar que a violência institucional, também representada pela tortura, não se restringiu aos regimes de exceção – embora tenha sido mais aplicada nesses regimes -, assim como não tinha como alvo apenas os dissidentes políticos. O que ocorreu foi uma maior atenção a esse tipo de prática nesse período, muito embora já ocorresse há certo tempo. Inclusive, ressalta-se que até hoje há a ocorrência de maus-tratos nas delegacias, bem como nas ruas, por intermédio de abuso de autoridade policial.
A amplitude dos direitos nas disposições da Constituição vigente é, sem dúvidas, um aspecto positivo, simbolizando a vitória frente a um histórico de desconsideração dos direitos humanos. No entanto, vale dizer que não faz sentido a existência de tais direitos no plano formal, quando não há a sua observância no plano concreto. Inclusive, sobre isso, atesta Boaventura de Sousa Santos:
Pode mesmo avançar-se como hipótese de lei sociológica que quanto mais caracterizadamente uma lei protege os interesses populares e emergentes, maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada. Sendo assim, a luta democrática pelo direito deve ser, no nosso país, uma luta pela aplicação do direito vigente, tanto quanto uma luta pela mudança do direito[21].
Aliás, sobre as disposições Constitucionais, MOTA traz um aspecto interessante, citando o economista Delfim Netto, o qual remete à ideia de que a Constituição não caberia sequer no PIB. Ora, se o próprio PIB não é capaz de efetivar o cumprimento do que está estabelecido na “Magna Carta” brasileira, já se pode inferir que os direitos não serão plenamente aplicados.
Como se não bastasse o afastamento da população do debate político, a cultura do marketing encobriu - e ainda encobre - uma grande rede de interesses particulares, em que estava envolvida grande parte do empresariado e dos políticos. A imprensa é concebida por Habermas como um meio de garantir à massa uma maneira de obter as informações da esfera pública. Entretanto, se essa esfera for ampliada demasiadamente, seu caráter político é esvaecido - ela acaba ganhando um aspecto prioritariamente comercial[22]. Além disso, ele entende que alguns dos meios de divulgação de informações - rádio, cinema e televisão - distanciam uma possível emancipação do público, pois ela impossibilita o espectador de dizer e contradizer[23].
Em Faticidade e validade, o filósofo atribui grande poder à capacidade de influência da opinião pública. Porém, esse poder comunicativo só pode se desenvolver perante a interação de fluxos comunicativos informais e difusos da esfera pública como um todo com a opinião formalmente organizada. Trocando em miúdos, ele sugere que a comunicação pública ocorra de maneira inclusiva e seletiva, a qual deve ser regida por bons argumentos ou compromissos justos - de maneira simplista, o conteúdo deve ter qualidade.
Dessa forma, deve-se atentar para o fato de que a mídia pode ser utilizada como um instrumento de alienação. Habermas afirma que a comercialização dos bens culturais ocorre numa proporção inversa à sua complexidade[24]. Dessa forma, o entretenimento rápido, de fácil digestão, aliena os indivíduos, distraindo-os e dispensando o uso público da razão. Um problema dessa esfera apontado pelo autor seria a perda de comunicação entre uma minoria de especialistas – que não pensam publicamente -, e uma maioria de consumidores de uma cultura de massas. [25]
Habermas sugere a utilização do paradigma procedimental para haver equiprocedência entre a autonomia privada e pública. Ele tem seu foco no cidadão que participa da formação da opinião pública e dos processos de decisões públicas[26]. Esse paradigma está em consonância com o restante de seus projetos políticos "inclusivistas" que pretendem formar uma democracia participativa.
Ao se analisar a trajetória histórica brasileira com relação à política e ao direito, bem como com relação aos aspectos sociais, observa-se que muito foi conquistado. Entretanto, também é possível notar que há muito a ser feito.
Problemas sociais como a pobreza e a educação foram tratados, desde muito tempo, sem a devida atenção. O questionamento que se faz é no sentido de entender o porquê de tais problemas não serem tratados com a devida prioridade. É necessária uma mudança estrutural em nosso país, de modo a sanar essas demandas que já são parte de nossa história. Muito já foi feito, mas ainda há muito a ser mudado. As prioridades devem ser revistas para que se possa galgar a um novo modelo.
Falou-se, neste trabalho, em educação. É importante que esta seja proporcionada de maneira igualitária, a fim de que os direitos possam ser mais bem reivindicados e a democracia seja efetivada.
ADORNO, Sergio. Direito Humanos. In: OLIVEN, Ruben George. RIDENTI, Marcelo. BRANDÃO, Gildo Marçal (org.). A Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: ANPOCS/Hucitec, 2008, p. 191-224.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, 1ª ed. 2ª reimp. p. 125-150.
COHN, Amélia. A questão social no Brasil: a difícil construção da cidadania. In: MOTA, Carlos Guilherme (org). Viagem Incompleta – A grande transação. 2ª ed. São Paulo: Ed. Senac, 2000, p. 383-403.
HABERMAS, Jürgen. Mudança na estrutura social da esfera pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 169-212.
HABERMAS, Jürgen. Faticidade e validade: reflexões de um autor. Trad. para fins acadêmicos Paulo Henrique Blair de Oliveira. Texto não publicado.
MOTA, Carlos Guilherme. Para uma visão de conjunto: a história do Brasil pós-1930 e seus juristas. In: MOTA, Carlos Guilherme. SALINAS, Natasha S. C. (org.). Os juristas na formação do Estado Brasileiro – 1930-dias atuais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25-141.
SANTOS, Boaventura Sousa Santos; MARQUES, Maria Manueal Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm - Acessado no dia 10/11/2011.
[1] Para muitos dos que acompanhavam o golpe, o liberalismo não tinha relação alguma com a conjuntura histórica brasileira, sendo incapaz de gerar soluções satisfatórias aos problemas brasileiros daquele período.
[2] COHN (2000, p. 387)
[3] COHN (2000, p. 388)
[4] COHN (2000, p. 390)
[5] COHN (2000, p. 393)
[6] COHN(2000, p. 397)
[7] COHN (2000 p. 402)
[8] ADORNO (2008, p. 197)
[9] ADORNO (2008, p. 200)
[10] ADORNO (2008, p. 204)
[11] ADORNO (2008, p. 208)
[12] ADORNO (2008, p. 210)
[13] ADORNO (2008, p. 218-219)
[14] SANTOS(p. 170)
[15] MOTA (p. 48)
[16] AGAMBEN ( 2004, p. 125)
[17] AGAMBEN (2004, p. 131)
[18] AGAMBEN(2004, p. 134).
[19] O poder que o Führer detinha para decidir o futuro da vida privada dos alemães era tão grande que ele instituiu uma espécie de eutanásia obrigatória para aqueles que não se enquadravam em padrões pré-estabelecidos.
[20] AGAMBEN (2004, p. 129)
[21] SANTOS (p. 178)
[22] HABERMAS (1984, p. 200)
[23] HABERMAS(1984, p. 202).
[24] HABERMAS(1984,p. 196)
[25] HABERMAS (1984, p. 207)
[26] HABERMAS ( p. 5)
Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiária da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Ana Carolina Lappe do Prado Teixeira. O paradigma procedimental na história brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jul 2012, 07:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/29880/o-paradigma-procedimental-na-historia-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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