I - Introdução
Embora a regra seja a imediatidade dos efeitos da lei, o direito positivo brasileiro não contém regra genérica de transição para a contagem do prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei.
A ausência, na lei nova, de regra de direito intertemporal que regule expressamente a transição entre os regimes jurídicos tem ensejado impugnações judiciais e revelado a existência de divergência entre o entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal acerca da questão.
No julgamento do RE 566621, ocorrido em 04.08.2011, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a sua jurisprudência sobre a contagem do prazo prescricional reduzido e reputou a vacatio legis como regra de transição suficientemente asseguradora da observância do princípio da segurança jurídica e a autorizar a aplicação irrestrita da nova lei a todas as ações posteriores ao início da vigência do prazo reduzido.
Diante disso, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o RESP 1269570 alterou o entendimento antes firmado para acompanhar a interpretação fixada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 566621, conforme notícia veiculada no site do STJ no dia 19.06.2012.
O artigo que se segue procura analisar a aplicação do prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei e a incidência do princípio da segurança jurídica como instrumento de controle constitucional da regra de direito intertemporal que regula a transição, inclusive a que fixa a vacatio legis.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. A REDUÇÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS PELA LEI NOVA
A contagem do novo prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei pode ocorrer de maneiras distintas a depender das seguintes particularidades:
a) existência de vacatio legis;
b) existência de regras específicas de direito intertemporal que regule a transição entre os regimes jurídicos
c) ausência de vacatio legis e regras de transição.
Casa uma dessas situações enseja tratamento diferente em relação à contagem do prazo prescricional reduzido e os tópicos seguintes destina-se a estudá-las.
2. A REDUÇÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS E A EXISTÊNCIA DE VACATIO LEGIS
A alteração de prazos e sua eventual aplicação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei é juridicamente possível desde que observados os condicionamentos constitucionais para sua validade.
Esses condicionamentos, em regra, consistem no dever de observar o princípio da segurança jurídica e a necessária salvaguarda ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.
A propósito, vale ressaltar que a alteração de prazos não representa ofensa ao direito adquirido porque não existe direito adquirido a regime jurídico. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal expresso no voto proferido pela Ministra Ellen Gracie ao relatar o RE 566.621, aqui transcrito no que interessa:
É certo que a alteração de prazos, indubitavelmente, não ofende direito adquirido, porquanto, inexiste direito adquirido a regime jurídico, o que já restou definitivamente assentado na jurisprudência desta Corte, do que são exemplos os precedentes em que se entendeu ser viável a alteração de prazo de recolhimento do tributo depois da ocorrência do fato gerador e o estabelecimento de novos requisitos par o prosseguimento do gozo de imunidade por entidade já reconhecida, no passado, como beneficente:
A inexistência de direito adquirido a regime jurídico afasta, pois, qualquer pretensão de aplicação do prazo prescricional vigente à época do nascimento da pretensão (actio nata) sujeita à prescrição.
O que não se admite, em nome do princípio da segurança jurídica, é que a norma redutora de prazos fulmine imediatamente as pretensões que, segundo as regras até então vigentes, ainda poderiam ser exercidas.
A impossibilidade de fulminar imediatamente as pretensões que ainda poderiam ser deduzidas no prazo vigente quando da modificação legislativa por representar ofensa ao princípio da segurança jurídica, e consequentemente, ao necessário resguardo da certeza do direito, da estabilidade das situações jurídicas, da confiança no tráfego jurídico e do acesso à justiça, foi abordada no voto proferido pela Ministra Ellen Gracie no julgamento do RE 566.621 no seguintes termos:
Isso não quer dizer, contudo, que a redução de prazo possa retroagir para fulminar, de imediato, pretensões que ainda poderiam ser deduzidas no prazo vigente quando da modificação legislativa. Ou seja, não se pode, de modo algum, entender que o legislador pudesse determinar que pretensões já ajuizadas ou por ajuizar estejam submetidas, de imediato, ao prazo reduzido, sem qualquer regra de transição.
É que isto, ainda que não viole estritamente ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada, atenta contra outros conteúdos do princípio da segurança jurídica. Efetivamente, se, de um lado, não há dúvida de que a proteção das situações jurídicas consolidadas em ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada constitui imperativo de segurança jurídica, concretizando o valor inerente a tal princípio, de outro, também é certo que tem este abrangência maior e que implica, também, resguardo da certeza do direito, da estabilidade das situações jurídicas, da confiança no tráfego jurídico e do acesso à justiça.
Há, efetivamente, conteúdos do princípio da segurança jurídica que se encontram implícitos no texto constitucional.
O princípio da segurança jurídica decorre implicitamente não só da sua concretização em direitos e garantias individuais expressamente contemplados no art. 5º da Constituição, como, entre vários outros, os incisos XXXV e XXXVI, mas também de outros dispositivos constitucionais e diretamente do sobreprincípio do Estado de Direito, estampado no art. 1º da Constituição, do qual se extraem, independentemente de norma expressa, garantias como a proteção da liberdade e contra a arbitrariedade, bem como de acesso ao Judiciário.
(..)
A atribuição de efeitos retroativos, ou seja a possibilidade de atingir as situações jurídicas pendentes, exige cláusula expressa nesse sentido e esta somente será válida se houver o necessário resguardo ao princípio da segurança jurídica nos seus conteúdos de proteção da confiança e de acesso à Justiça.
Cabe, pois, analisar se a fixação de vacatio legis para a entrada em vigor da nova norma redutora de prazos prescricionais atende ao propósito do necessário resguardo da segurança jurídica quando fixada em tempo razoável para possibilitar que os titulares de eventuais direitos possam exercê-lo antes da entrada em vigor do novo prazo prescricional.
A vacatio legis é o período de tempo que se estabelece entre a publicação e a entrada em vigor da lei e durante o qual a lei nova não produzirá efeitos. Ele é fixado em razão da repercussão que a lei nova nas relações jurídicas pendentes e nas que se realizarão a partir de sua vigência .
O art. 1º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei 4.657/42, estabelece que “Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”.
Além disso, o art. 8º da LC 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, nos termos do art. 59 da Constituição Federal, a vigência da lei deve “contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão.
Esse prazo tem o propósito de possibilitar que os destinatários da norma tomem conhecimento do seu teor antes de sua vigência e adotem todas as medidas e cautelas em relação às situações jurídicas que serão produzidas na vigência da nova lei como também as medidas que se fizerem necessárias para a salvaguarda dos direitos que possam ser alterados ou modificados ou extintos a partir da vigência da nova lei.
É dizer : a vacatio legis destina-se a atender o princípio da segurança jurídica possibilitando que os titulares de direitos eventualmente ainda não exercidos adotem as medidas que se fizerem necessárias para exercê-los ou preservá-los através de medidas que assegurem a interrupção do prazo prescricional, a exemplo das elencadas no art.202 do Código Civil Brasileiro.
O estabelecimento de vacatio legis na lei redutora de prazo prescricional possibilita a aplicação da lei nova a partir do início da sua vigência não só em relação aos fatos ocorridos após a sua entrada em vigor, mas a todas as prescrições em curso na data de sua vigência, ressalvados, obviamente os casos em que o titular do direito o tenha exercido até a data de início da vigência da nova lei, propondo a respectiva ação judicial.
Decorrido o prazo da vacatio legis, a lei entra em vigor imediatamente e alcança todas as situações jurídicas pendentes, entendidas estas como aquelas representativas de direitos ainda não exercidos por seus titulares, independentemente da época do nascimento da pretensão (actio nata) sujeita à prescrição.
Esse o entendimento consolidado na Súmula 445 do Supremo Tribunal Federal ao considerar que a lei que reduz prazo prescricional é aplicável às prescrições em curso na data de sua vigência, salvo quanto aos processos então pendentes. ´
Esse enunciado teve origem na análise da aplicação de diversos prazos prescricionais reduzidos pela Lei 2.437/55, que alterou o Código Civil de 1916. A lei, com vacatio legis estipulada em 10 meses, houvera reduzido diversos prazos prescricionais, como o do art. 177, relativo às ações pessoais e o art. 550, relativo ao usucapião, que passaram de 30 para 20 anos.
A Corte Constitucional entendeu que a vacatio legis de 10 meses possibilitou aos interessados ajuizarem suas ações, interrompendo os prazos prescricionais em curso, na certeza de que, a partir da vigência da lei o novo prazo prescricional reduzido seria aplicável a todos os casos ainda não ajuizados.
Esse entendimento não só permaneceu inalterado como foi mencionado como precedente no julgamento do já citado RE 566621. O STF considerou como regra de transição suficiente a alargada vacatio legis estabelecida, de forma a possibilitar a aplicação irrestrita da lei nova a todas as ações posteriores ao início da vigência do prazo reduzido.
Importa salientar que nesse último julgamento, após pós ter sido firmado, por maioria de votos, o entendimento de que a LC 118/05, não tinha natureza interpretativa, mas que houvera inovado o ordenamento jurídico ao reduzir o prazo prescricional estabelecido para o exercício da ação de restituição de indébito, foi analisado a partir de quando e com que efeito o novo prazo pode ser validamente aplicado. Nessa tarefa é que se concluiu pela aplicação da solução que já houvera sido adotada no precedente que deu origem a Sumula 445.
Por representativo do entendimento firmado, cumpre transcrever o voto da Ministra Ellen Gracie na parte relativa à suficiência da vacatio legis como regra de transição no caso analisado:
Se, de um lado, como já afirmado, a aplicação retroativa e a aplicação imediata às ações ajuizadas em seguida à sua publicação implicariam violação à segurança jurídica, de outro, é certo que não há direito adquirido à regime jurídico e que, como visto no caso da Súmula 445, não ofende a Constituição a aplicação do prazo reduzido às pretensões pendentes nas ações ajuizadas após a vacatio legis.
(..)
Aliás, é relevante considerar que a LC 118/05, assim como a antiga Lei 2.438/55, objeto da Súmula 445, estabeleceu uma vacatio legis superior à prevista na Lei de Introdução ao Código Civil (DL 4.657/42), cujo art. 1º diz que: “Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”. A LC 118/05 estabeleceu prazo maior, de 120 (cento e vinte dias): Art. 4º Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966- Código Tributário Nacional”.
Ainda que a vacatio legis estabelecida pela LC 118/05 seja menor do que aquela prevista na Lei 2.437/55, de 10 meses, não há como negar que os tempos são outros.
Desnecessária, até mesmo, qualquer comparação mais detida, bastando imaginar a dificuldade de acesso à informação em uma época em que o Diário Oficial da União só era publicado em meio físico e levava muito tempo para chegar aos diversos estados e municípios do país, em que a qualidade das transmissões de rádio ainda era precária, em que a própria TV era incipiente, em que os escritórios de advocacia não eram tão especializados e em que as petições iniciais eram datilografadas para serem protocoladas, muitas vezes, em varas da Justiça distante do domicílio do autor.
Como se observa, o Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação de que a vacatio legis, desde que fixada em prazo razoável, é regra de transição suficientemente asseguradora da observância do princípio da segurança jurídica, constitucionalmente tutelado, e autoriza a aplicação irrestrita da nova lei a todas as ações posteriores ao início da vigência do prazo reduzido.
Vale ressaltar que a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o RESP 1269570 reformou seu entendimento para acompanhar a interpretação fixada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 5666212 em relação ao prazo aplicável para a repetição de indébitos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Dessa forma, decorrido o prazo da vacatio legis que tenha sido fixada em tempo razoável, a lei entra em vigor imediatamente e alcança todas as situações jurídicas pendentes, entendidas estas como aquelas representativas de direitos ainda não exercidos por seus titulares, independentemente da época do nascimento da pretensão (actio nata) sujeita à prescrição.
3. A REDUÇÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS E A EXISTÊNCIA DE REGRAS ESPECÍFICAS DE DIREITO INTERTEMPORAL
Na hipótese da lei nova fixar regras de direito intertemporal para contagem do prazo prescricional reduzido em relação as situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei, terão aplicação essas disposições específicas.
Em casos tais, a própria lei traz regras específicas de direito intertemporal regulando a transição entre os regimes jurídicos e, em tese, não haveria maiores questionamentos quanto a contagem do prazo prescricional em relação às situações jurídicas pendentes.
Exemplifica muito bem essa hipótese o Código Civil de 2002. Essa codificação além de estabelecer vacatio legis de 01 (um) ano, estabeleceu, em relação à contagem dos prazos reduzidos pelo código, regras de direito intertemporal dispostas nos artigos 2.028 e 2.029. Eis o teor desses dispositivos:
Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.
Art. 2.029. Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior.
Dentre os prazos reduzidos pelo Código Civil de 2002 encontra-se o relativo ao exercício das pretensões indenizatórias que passou de 20 para 03 anos (ar 206,§3º,V, do CC 2002.).
O titular de pretensão dessa natureza e eventualmente sujeita à aplicação do prazo prescricional reduzido teve, a partir da publicação do novo código e antes de sua entrada em vigor, o prazo de 01 ano para exercer a sua pretensão e interromper o prazo prescricional em curso.
Mas, houve os que não adotarem qualquer medida para exercer a sua pretensão no prazo da vacatio legis. E, muito embora as regras de direito intertemporal tenham sido fixadas no propósito de regular, de forma específica, a transição entre os regimes, surgiram questionamentos quanto à sua forma de aplicação.
Argumentou-se que a incidência imediata do prazo prescricional reduzido a partir da vigência da nova lei fulminaria pretensões nascidas na vigência da lei anterior e ainda não exercidas, o que determinaria a contagem do prazo prescricional reduzido somente a partir da data do início da vigência do novo código e não a partir do nascimento da pretensão.
A questão foi submetida à apreciação do Superior Tribunal de Justiça através do Resp 83841. Na decisão proferida, a vacatio legis não foi reputada como regra de transição suficiente para assegurar a observância do princípio da segurança jurídica e se firmou o entendimento de que o marco inicial da contagem do prazo prescricional reduzido é a data de início da vigência do novo código civil e não a data do nascimento da pretensão. Eis a ementa:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ATO ILÍCITO. PRESCRIÇÃO. PRAZO. CONTAGEM. MARCO INICIAL. REGRA DE TRANSIÇÃO. NOVO CÓDIGO CIVIL.
1 - Se pela regra de transição (art. 2028 do Código Civil de 2002) há de ser aplicado o novo prazo de prescrição, previsto no art. 206, §3º, IV do mesmo diploma legal, o marco inicial de contagem é o dia 11 de janeiro de 2003, data de entrada em vigor do novo Código e não a data do fato gerador do direito. Precedentes do STJ.
2 - Recurso especial conhecido e provido para, afastando a prescrição, no caso concreto, determinar a volta dos autos ao primeiro grau de jurisdição para julgar a demanda.
Resp 838414, Relator Ministro Fernando Gonçalvez, v.u. T-4 – Quarta Turma, Dta do julgamento 08.04.208, Dje 22.04.2008.
Porém, reputa-se que o entendimento no sentido de que, mesmo diante da existência de regra de transição, a contagem do prazo prescricional reduzido somente tem início a partir do início da vigência da nova lei caracteriza inobservância da orientação da Corte Constitucional sobre o alcance do princípio da segurança jurídica na fixação das regras de transição e altera, sem amparo legal, a regra de que o termo inicial da prescrição é no nascimento da ação, determinado tal nascimento, pela violação de um direito.
A propósito do termo inicial da prescrição importa citar o posicionamento de Agnelo Amorin[1] no valoroso artigo destinado a estabelecer critérios científicos para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis, assim expresso:
Mas há um ponto que deve ficar bem ressaltado, porque interessa fundamentalmente às conclusões do presente estudo: os vários autores que se dedicaram à análise do termo inicial da prescrição fixam esse termo, sem discrepância, no nascimento da ação (actio nata), determinado, tal nascimento, pela violação de um direito. SAVIGNY, por exemplo, no capítulo da sua monumental obra, dedicado ao estudo das condições da prescrição, inclui, em primeiro lugar, a actio nata, e acentua que esta se caracteriza por dois elementos: a) - existência de um direito atual, suscetível de ser reclamado em juízo; e b) - violação desse direito (op. cit., tomo IV, pág. 186). Também CÂMARA LEAL afirma, peremptoriamente:
sem exigibilidade do direito, quando ameaçado ou violado, ou não satisfeita sua obrigação correlata, não há ação a ser exercitada; e, sem o nascimento desta, pela necessidade de garantia e proteção ao direito, não pode haver prescrição, porque esta tem por condição primária a existência da ação.
..........
Duas condições exige a ação, para se considerar nascida (nata) segundo a expressão romana: a) um direito atual atribuído ao seu titular; b) uma violação desse direito, à qual tem ela por fim remover.
.....
O momento de início do curso da prescrição, ou seja, o momento inicial do prazo, é determinado pelo nascimento da ação - actioni nondum natae non praescribitur.
Desde que o direito está normalmente exercido, ou não sofre qualquer obstáculo, por parte de outrem, não há ação exercitável.
Mas, se o direito é desrespeitado, violado, ou ameaçado, ao titular incumbe protegê-lo e, para isso, dispõe da ação... (CÂMARA LEAL, Da Prescrição e da Decadência, págs. 19, 32 e 256).
Opinando no mesmo sentido, poderão ser indicados vários outros autores, todos mencionando aquelas duas circunstâncias que devem ficar bem acentuadas (o nascimento da ação como termo inicial da prescrição, e a lesão ou violação de um direito como fato gerador da ação).
Essa a orientação acolhida pelo art. 189 do Código Civil de 2002 ao fixar o momento do nascimento da pretensão:
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
Por sua vez, e conforme amplamente abordado no tópico anterior, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no enunciado 445 e no julgamento do RE 566.621 é no sentido de que, decorrido o prazo da vacatio legis, a lei entra em vigor imediatamente e alcança todas as situações jurídicas pendentes, entendidas estas como aquelas representativas de direitos ainda não exercidos por seus titulares, independentemente da época do nascimento da pretensão (actio nata) sujeita à prescrição.
Esses precedentes da Corte Constitucional consideraram que a fixação de vacacio legis para a entrada em vigor da nova norma redutora de prazos prescricionais atende ao propósito do necessário resguardo da segurança jurídica quando fixada em tempo razoável para possibilitar que os titulares de eventuais direitos possam exercê-lo antes da entrada em vigor do novo prazo prescricional.
A aplicação dessa orientação do Supremo Tribunal Federal às regras de transição contidas na condição civil de 2002 autoriza, nos casos em que aplicável o prazo reduzido, a sua incidência imediata quando do início da vigência da nova codificação para alcançar todas as situações jurídicas para pendentes, contado o prazo prescricional reduzido desde a data do nascimento da pretensão.
Dessa forma, na hipótese da lei nova fixar regras de direito intertemporal para contagem do prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei, terão aplicação essas disposições específicas, lembrando sempre, que, na ausência de disposição especial, a vacatio legis é considerada como regra de transição suficiente para possibilitar a imediata aplicação da lei nova a todas as situações jurídicas pendentes, entendidas estas como aquelas representativas de direitos ainda não exercidos por seus titulares.
4. A REDUÇÃO DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS SEM A FIXAÇÃO DE REGRAS DE TRANSIÇÃO VACATIO LEGIS OU OUTRAS REGRAS DE TRANSIÇÃO
A edição de lei nova reduzindo o prazo prescricional sem a fixação de regras de transição, inclusive vacatio legis, tem suscitado, ao longo da história, discussões acerca da contagem do prazo prescricional em relação a situações jurídicas ainda não consolidadas.
A solução da questão, envolve regras de direito intertemporal. A propósito do tema, importa consignar que o art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil estabelece que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
Embora a regra seja a imediatidade dos efeitos da lei, o direito positivo brasileiro não contém regra genérica de transição para a contagem do prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei.
Na ausência, na lei nova, de regra de direito intertemporal que regule a transição, o posicionamento doutrinário de Wilson de Souza Campos Batalha[2], inspirado nas diretrizes do Código Civil alemão, aponta os seguintes critérios:
(..)
II - Se a lei nova reduz o prazo de prescrição ou decadência, há que se distinguir:
a) se o prazo maior da lei antiga se escoar antes de findar o prazo menor estabelecido pela lei nova, adota-se o prazo estabelecido pela lei anterior;
b) se o prazo menor da lei nova se consumar antes de terminado o prazo maior previsto pela anterior, aplica-se o prazo da lei nova, contando-se o prazo a partir da vigência desta".(1) (grifamos)
Serpa Lopes[3] ao tratar da lei nova que abrevia o prazo de prescrição, aponta idêntica solução:
“(...)
Em casos tais é de se acolher não só a doutrina de R. Porchat como ainda a de Clóvis Beviláqua e Eduardo Espíndola que sustentam que se o prazo da lei nova é mais curto, cumpre distinguir:
a) se o tempo que falta para consumar-se a prescrição é menor do que o prazo estabelecido pela lei nova, a prescrição se consuma de acordo com o prazo da lei anterior;
b) se o tempo, que falta para se consumar a prescrição pela lei anterior excede ao fixado pela lei nova, prevalece o desta última, contado do dia em que ela entrou em vigor.
O Supremo Tribunal Federal adotou esse entendimento ao julgar o Recurso Extraordinário 79.327-5, de 03.10.75, que tratou da redução do prazo prescricional para o exercício da pretensão executiva em relação ao crédito tributário, que era vintenário, e passou a ser regulado pela disposição contida no art. 174 do Código Tributário Nacional, Lei 5.172/66, que fixou o prazo qüinqüenal. A ementa foi assim redigida:
EMENTA: 1.Prescrição. Direito Intertemporal. Caso em que o prazo prescribente fixado na lei nova é menor do que o prazo prescricional marco na lei anterior. Feita a contagem do prazo prescribente marcado na lei nova (isso a partir da vigência dessa lei), se ocorrer que ele termine antes de findar-se o prazo maior fixado na lei anterior, é de considerar-se o prazo menor previsto na lei posterior, contado esse prazo a partir da vigência da segunda lei.
2.Doutrina e jurisprudência do assunto.
(...)”
Do voto condutor da decisão unâmine do Supremo Tribunal Federal cumpre transcrever o que segue:
“(...)
Estou em que o acórdão recorrido não diverge do que expressa a mencionada ementa jurisprudencial, por que, na verdade, um e outra repetem conhecida lição doutrinária, qual seja a de que, feita a contagem do prazo prescribente marcado na lei nova (isso a partir da vigência dessa lei), e se ocorrer que ele termine em antes de findar-se o prazo maior fixado na lei anterior, é de se considerar o prazo menor previsto na lei posterior, contado esse a partir da vigência da segunda lei.
É o que se lê nos acórdãos que o STF editou para RE. 42.766 e para RE 47.802, ambos indicados como fundamentadores do verbete 445 da súmula.
É o que se lê nos doutrinadores abalizados (Reynaldo Porchat, Da Retroatividade das Leis Civis, 1909, n.43; Carpenter, Da Prescrição, 1929, p.596; Serpa Lopes, comentário Teórico e Pratico da Lei de Introdução do Código Civil, II, 1944, p.37; Wilson de Souza Batalha, Lei de Introdução ao Código Civil, v.II, t.I, p. 231).
Registrado que, no caso, a dívida fiscal foi inscrita em 1964, f.3, e que a ação executiva documentada nestes autos foi posta em juízo aos 29.4.70, f. 2, isto é, quando transcorria o prazo prescribente de vinte anos marcado na lei anterior (código civil, art. 177), prazo esse que terminaria em 1984; registro, ainda, que o novo prazo (menor) marcado no art. 174 do cód. Trib. Nacional teve o seu dies a quo coincidente com a da vigência desse diploma (1.1.67, art.218); portanto, esse novo prazo (menor) abreviou para 1.1.72 o termo final da prescrição; sucede que, no caso, a demanda foi ajuizada em 1970, isto é, em antes de se consumar a prescrição de que trata a lei nova.
Em seu respeitável parecer, a eg. Procuradoria Geral da República sustenta que, na espécie, o dies a quo do prazo prescribente é o de constituição definitiva do crédito tributário, tal como se lê no art. 174 do C. Trib. Nacional.
Estou em que esse termo inicial foi fixado para os casos que se formarem na vigência do mencionado Código, pois no tocante ao direito intertemporal o dies a quo é o da vigência da lei nova, como se lê no art. 69, caput, da lei de Introdução ao código Civil.
(...)”
Com base no precedente judicial acima mencionado e nos ensinamentos doutrinários referidos, de concluir-se que na ausência, na lei nova, de regra de direito intertemporal que regule a transição i) aplicar-se-á o prazo previsto na lei anterior se o tempo que falta para consumar-se a prescrição é menor que o prazo estabelecido na lei nova; ii) aplicar-se o prazo previsto na lei nova, se o período de tempo que falta para se consumar a prescrição pela lei anterior excede ao fixado pela nova lei, contado este do dia em que ela entrou em vigor.
5. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS REGRAS DE TRANSIÇÃO
Os dispositivos legais que fixam as regras de transição de um regime jurídico para outro, inclusive o dispositivo que fixa a vacatio legis, estão sujeitos ao controle jurisdicional quanto à sua extensão e possível aplicação à luz da Constituição Federal, avaliando-se, notadamente, a sua aptidão para assegurar a eficácia do princípio da segurança jurídica.
Pelo princípio da tutela da confiança legítima, o Estado precisa conferir estabilidade às relações jurídicas evitando surpresas e imprevistos. Nesse sentido a doutrina de Ricardo Marcondes Martins[4]:
“(...) a segurança jurídica não se restringe ao fato objetivo da positividade, tem também um aspecto subjetivo, identificado pelo valor certeza do Direito. A insegurança decorre do imprevisto, da surpresa, e é a principal causa da positividade: O Direito existe para eliminar a incerteza, para dar às pessoas o mínimo de previsibilidade. A existência do sistema jurídico – de um conjunto de normas jurídicas -, quando dotado de correção estrutural e funcional, supre de forma objetiva esse intento.
Não basta: necessita-se assegurar a estabilidade das relações jurídicas, e prata tanto há uma série de normas. Dentre elas, muitas se encontram positivadas: as normas referentes à prescrição e à decadência, ao usucapião, à coisa julgada, à vacacio legis, dentre muitas outras, existem para dar segurança às relações jurídicas; para garantir, enfim, a certeza do Direito. Outrossim, um importante princípio extraído do postulado da segurança jurídica, também tem esse desiderato: o princípio da confiança legítima, segundo o qual o estado deve respeitar as expectativas por ele geradas.”
Na mesma linha a doutrina de José Carlos Francisco[5] ao referir-se a segurança jurídica como direito fundamental expresso no caput do art. 5º da Constituição Federal:
Visto o Estado de Direito como uma qualidade do Estado que busca a realização de direitos fundamentais, por certo os poderes públicos devem respeitar os imperativos de segurança jurídica marcada pela noção de estabilidade ou de continuidade, permitindo comportamentos segundo parâmetros normativos vigentes ao tempo em que atos e fatos ocorrem, de maneira que suas conseqüências sejam previsíveis. Assim, ordenação, previsibilidade, constância e durabilidade são essenciais à noção de Estado de Direito assim como ao próprio Direito, sendo freqüente a referência à segurança jurídica no rol de direitos fundamentais.
Vale destacar que o Supremo Tribunal Federal ao firmar, nos precedentes que deram origem à Súmula 445 e no julgamento do RE 566621, o entendimento de que a vacacio legis é regra de transição suficiente para assegurar a eficácia imediata do prazo prescricional reduzido a partir da vigência da nova lei, essa conclusão foi sempre precedida da análise da suficiência da regra de transição para atender o princípio da segurança jurídica.
A observância do princípio da segurança jurídica ocorre sempre que for concedido prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento e para que s interessados exerçam, antes do início da vigência da nova lei, as pretensões que possam restar fulminadas a partir de então. Destaca-se, a propósito, o que constou do já citado voto da Ministra Ellen Gracie:
Relembro que a Lei 2.437/55 , alterando o Código Civil de 1916, reduziu diversos prazos, como o do art. 177, relativo às ações pessoais, e o do art. 550, relativo ao usucapião, que passaram de 30 para 20 anos. Entendeu, esta Corte, nos precedentes que deram origem ao enunciado analisado que, tendo havido uma vacatio legis alargada, de 10 meses entre a publicação da lei e a vigência do novo prazo, tal fato teria dado oportunidade aos interessados para ajuizarem suas ações, interrompendo os prazos prescricionais em curso, sendo certo que, a partir da sua vigência, em 1º de janeiro de 1956, o novo prazo seria aplicável a qualquer caso ainda não ajuizado.
Considerou, ademais, o Tribunal como regra de transição suficiente, a observância da alargada vacatio legis, permitindo a aplicação irrestrita da lei nova a todas as ações posteriores ao início da vigência do prazo reduzido.
(...)
Tenho que o art. 4º da LC 118/05, na parte em que estabeleceu vacatio legis alargada de 120 dias, cumpriu tal função, concedendo prazo suficiente para que os contribuintes não apenas tomassem conhecimento do prazo novo, como para que pudessem agir, ajuizando as ações necessárias a tutela dos seus direitos.
Dessa forma, no caso concreto submetido à sua apreciação, cabe ao poder judiciário aferir se as regras de transição, inclusive a vacatio legis, foram fixadas em período de tempo apto a atender o comando normativo imposto pelo princípio da segurança jurídica.
A esse propósito, cumpre ressaltar que o Supremo Tribunal Federal entendeu, nos precedentes que deram origem ao enunciado 445 e também na apreciação do RE 566621. que a alargada vacatio legis fixada nos casos analisados asseguraram a observância do princípio da segurança jurídica nos seus conteúdos de proteção da confiança e de acesso à justiça.
III- CONCLUSÃO
A contagem do novo prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei pode ocorrer de maneiras distintas a depender da existência ou não de regras de transição a regular suficientemente a transição entre os regimes jurídicos.
As regras específicas de transição eventualmente fixadas na nova lei é que determinam quando com que efeito o novo prazo prescricional pode ser validamente aplicado.
A vacatio legis, desde que estabelecida em prazo que assegure a observância do princípio da segurança jurídica, é considerada regra de transição suficiente para assegurar a aplicação imediata da lei nova a todas as situações jurídicas pendentes, entendidas estas como aquelas representativas de direitos ainda não exercidos por seus titulares, independentemente da época do nascimento da pretensão (actio nata) sujeita à prescrição.
Na falta de regra de transição, inclusive de vacatio legis: i) aplicar-se-á o prazo previsto na lei anterior se o tempo que falta para consumar-se a prescrição é menor que o prazo estabelecido na lei nova; ii) aplicar-se o prazo previsto na lei nova, se o período de tempo que falta para se consumar a prescrição pela lei anterior excede ao fixado pela nova lei, contado este do dia em que ela entrou em vigor.
[1] Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as Ações Imprescritíveis. Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., ano 49, n. 300, pp. 7-37, outubro de 1960
[2] 01 BATALHA, Wilson de Souza Campos, in Lei de Introdução ao Código Civil, cit. por GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo, in Novo Curso de Direito Civil, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 508.
[3]LOPES, Miguel Maria de Serpa,In Comentário Teórico e Prático da Lei de Introdução do Código Civil, Vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Jacinto Editora,1944, p.39
[4]Efeitos dos Vícios dos Ato Administrativo, 2008, pp 313 e 314, nº 5.8
[5] FRANCISCO, José Carlos ; MESSA, Ana Flávia . Confiança Legítima, Modulação de Efeitos e Súmula Vinculante 8 do E.STF. In: MESSA, Ana Flávia; MAC CRACKEN, Roberto Nussinkis. (Org.). Tendências Jurídicas Contemporâneas. Estudos em homenagem a Nuncio Theophilo Neto. 1ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, v. 1, p. 447-468.
Procuradora Federal junto à Procuradoria Federal Especializada Anatel.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Marisa Pinheiro. A redução do prazo prescricional e a sua aplicação às situações jurídicas pendentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 ago 2012, 09:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30200/a-reducao-do-prazo-prescricional-e-a-sua-aplicacao-as-situacoes-juridicas-pendentes. Acesso em: 23 dez 2024.
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