Resumo: Os princípios no ordenamento jurídico brasileiro são normas abstratas, de observação obrigatória para criação de normas no sistema. Outrossim, os princípios constitucionais, bem como os princípios penais, sob ótica do Sistema Penal Brasileiro, corroboram à criação de normas, delimitando seus respectivos norteamentos, objetivando a aplicação das garantias humanas fundamentais, sendo a principal delas à Dignidade da Pessoa Humana. Dessa forma, este pequeno trabalho objetiva apontar e tecer breves considerações acerca do princípio da legalidade no Sistema Penal Jurídico Brasileiro.
Palavras-chaves: Princípios. Legalidade. Dignidade da Pessoa Humana. Direito Penal.
Sumário: 1 Princípios: Considerações iniciais; 2 Da Dignidade da Pessoa Humana ; 3 Princípio da Legalidade: contexto histórico; 4 Aspectos Jurídicos; 4.1 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Praevia: 4.2 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Scpripta; 4.3 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Stricta; 4.4 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Certa; 5 Apontamentos Finais.
1 Princípios: Considerações iniciais
Em uma primeira plana, urge conceituar a palavra princípio. Segundo Ruy Samuel Espíndola:
Pode-se concluir que a ideia de princípio ou sua conceituação, seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento-chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, se conduzem e/ou se subordinam.[1]
Nesse diapasão, podemos aponta que os princípios, sejam constitucionais, penais ou em qualquer outro ramo do Direito, são preceitos abstratos, norteadores do Sistema Jurídico Brasileiro, atuando de forma a basilar o ordenamento vigente. Assim, os princípios atuam concorrentemente, de forma que inspiram os legisladores na criação de normas, bem como suas delimitações, garantindo a simetria do sistema.
Ana Paula de Barcellos, por derradeiro, delimita os principais critérios de distinção entre princípios e regras, quais sejam: Conteúdo. Os princípios estão relacionados à ideia de valor, justiça e moralidade, ao passo em que as regras possuem um conteúdo diversificado, não necessariamente voltado à moral; Origem e Validade. A validade dos princípios encontra-se enraizada em seu próprio conteúdo, em contraponto, as regrar surgem de outras regras ou dos próprios princípios. Dessa forma, torna-se possível a identificação da regra como norma jurídica, sendo impossível quando se tratam de princípios; Compromisso histórico. Os princípios à luz da doutrina majoritária são universais, absolutos, objetivos e permanentes, ao tempo em que as regras possuem como principal característica à relatividade de tempo e lugar; Função no ordenamento. Os princípios possuem como principais funções as explicativas e justificativas, sintetizando uma grande quantidade de informações no ordenamento jurídico, dando-lhe ordenação; Estrutura linguística. A abstratividade é a principal característica dos princípios, não descrevendo, portanto, as necessárias condições de sua aplicação. No que tange às regras, é possível a identificação de suas hipóteses de aplicação; Aplicação. As regras têm estrutura biunívoca, ou seja, são válidas e aplicáveis ou são inválidas e inaplicáveis. Contrariamente, os princípios atuam concorrentemente, aplicando-se com maior ou menor intensidade, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes.[2]
2 Da Dignidade da Pessoa Humana
A Dignidade da Pessoa Humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dissertando sobre o tema, esclarece Guilhermo J. Yacobucci:
A dignidade da pessoa humana, dentro da vida social e política, reclama o exercício ordenado da liberdade através da convocação primária dos valores e fins comuns, preservando em todo momento aquele espaço de ‘interioridade’ e realização própria que é reclamado pela singularidade de cada homem, com uma vida e um fim por realizar existencialmente. Assim, da existência mesma da pessoa surgem determinados deveres e direitos que recebem a denominação de ‘humanos’, por sua quase imediata vinculação com as necessidades fundamentais para o desenvolvimento dos homens. Trata-se, obviamente, de direitos que não são criados nem construídos propriamente pelas instâncias dos poder político, senão, bem antes, que devem ser reconhecidos por este como primeiro nível de legitimação na tomada de decisões.[3]
Consoante a busca pela proteção dos bens vitais, percebe-se que os direitos humanos, como a dignidade da pessoa humana, não são criados pelo poder político, apenas são reconhecido por aquele. Outrossim, são direitos fundamentais singularizados em cada homem, direitos universais, irrenunciáveis em que o Estado deve respeitar, pois, trata-se de direitos que possuem valores primários de fins comuns. Sob a ótica do direito penal, percebe-se que a dignidade da pessoa humana, nas ultimas décadas, vêm se transformando em “verdadeiro Direito Penal do Terror”[4], pois, o homem quando do cometimento de infrações penais são tratados como inimigos do Estado. Entrementes, novas infrações são criadas a todo momento, penas são aumentadas, entretanto, incapazes de inibir a criminalidade, uma vez que o Estado não tem cumprido com suas funções sociais, tornando os infratores cada vez mais violentos, haja vista, a desumanidade dos Sistemas Carcerários Brasileiro, bem como a incapacidade do Estado de recuperar seus administrados infratores.
Dissertando acerca da dignidade da pessoa humana, Canotilho assevera que:
Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios. A compreensão da dignidade da pessoa humana associada a idéia de homo noumenon justificará a conformação constitucional da República Portuguesa onde é proibida a pena de morte e a prisão perpétua. A pessoa ao serviço da qual está à República também pode cooperar na República, na medida em que a pessoa é alguém que pode assumir a condição de cidadão, ou seja, um membro normal e plenamente cooperante ao longo da sua vida.
Por último, a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pautada pelo multiculturalismo muldividencial, religioso ou filosófico.[5]
Extrai-se dos ensinamentos de Canotilho que, o conteúdo histórico retrata a aniquilação do ser humano, entretanto, a dignidade da pessoa humana à luz do princípio constitucional da limitabilidade que norteia os direitos fundamentais, impõe ao Estado limitações constitucionais. Dessa forma, consolida o propósito Constitucional, qual seja: O Estado serve o homem, não é o homem que serve o Estado. Nesse diapasão, a dignidade da pessoa humana é um dos direitos humanos internacionalizados.
3 Princípio da Legalidade: contexto histórico
O Princípio da legalidade à luz do Direito Penal está previsto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como no artigo 1º, do vigente Código Penal Brasileiro. Em síntese, explica Jiménez de Asúa “todos tem o direito de fazer aquilo que não prejudica a outro e ninguém estará obrigado a fazer o que não estiver legalmente ordenando, nem impedido de executar o que a lei não proíbe”[6]. Trata-se de garantia constitucional do homem, elencado no rol dos direitos individuais constitucionalmente previstos. Ressalte-se que faz parte do elenco das cláusulas pétreas, conforme se extrai do artigo 60, §4, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Contextualizando a origem história do princípio da legalidade, Rogério Greco, apoiado pela doutrina majoritária sustenta que, o princípio da legalidade surgiu na Magna Carta Inglesa, em 1215, previsto no artigo 39 daquela Constituição. Entrementes, contrariamente posicionam-se Cobo Del Rosal e Vives Antón:
As origens do princípio da legalidade remontam, segundo alguns, a Magna Carta, mas seria enganoso situar nesse texto sua primeira formulação. E isso, nem tanto pelas razões deduzidas da natureza feudal do dito documento, senão porque, historicamente, o princípio da legalidade, tal e como é entendido no Direito Penal continental, não deriva dele. Na Magna Carta pode encontrar-se a origem da chamada rule of law própria do Direito anglo-saxão que, se tem certo paralelo com o princípio da legalidade, não deixa de apresentar importantes traços diferenciais. Com efeito enquanto o princípio da legalidade traduz o predomínio da Lei sobre os juízes, a rule of Law representa, fundamentalmente, uma garantia jurisdicional. Dita peculiaridade deriva das características do desenvolvimento histórico do Direito anglo-saxão (perpetuadas no sistema norte-americano), no qual a ‘lei da terra’, fundada no Direito natural e aplicada pelos juízes ordinários, chega a estar acima do Direito estatutário, criado pelo Parlamento. Pode, pois, afirmar-se que o princípio da legalidade é uma criação do pensamento iluminista, cujas primeiras manifestações positivas apareceram, ulteriormente, com a Revolução Francesa.[7]
Com escopo de definir os aspectos históricos do princípio da legalidade à luz do Direito Penal, batalhas doutrinarias foram criadas sobre seu surgimento, divergências a parte, cumpre-nos explicitar seu desenvolvimento histórico. Assim, tal princípio foi impulsionado no ano de 1762 pela Teoria do Contrato social, criada por Rousseau, segundo o qual, o cidadão só aceita viver em sociedade com a criação de garantias mínimas contra o arbítrio do Estado, prevendo, inclusive, regras sobre imposições de punições objetivas e impessoais, previamente delimitadas sob o prisma da legalidade estrita. Em 1764, Beccária em sua obra Dos delitos e das penas, influenciado por Rousseau, pontifica que só as leis podem estabelecer penas e delitos, através de Legisladores, representantes da sociedade. Ao depois, após a Revolução Francesa, o princípio da legalidade foi consagrado no artigo 8º, da Declaração de Direitos do Homem, de 26 de agosto de 1789. Em seguida, com o surgimento das liberdades públicas, o princípio da legalidade foi estabelecido em importantes diplomas consagradores da dignidade da pessoa humana, quais sejam: Bill of Rights, Filadélfia, 1774; a Declaração de Direitos da Virgínia e a Constituição dos Estados Unidos da América de 1776; o primeiro Código Penal Austríaco, 1787; a Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1789; Constituição Francesa de 1791. Outrossim, no Brasil, tal princípio foi acolhido a partir da Constituição Imperial de 1824, desenvolvendo-se nas demais Constituições brasileiras até a atual, promulgada em 1988, previsto em seu artigo 5º, XXXIX.
4 Aspectos Jurídicos
Sob o prisma da teoria de Binding, só há crime quando houver lei anterior que a defina. Entrementes, segundo o renomado autor, as normas penais incriminadoras não são proibitivas, sendo, assim, descritivas, pois, o sistema adotado pelo vigente Código Penal Brasileiro descreve os modelos legais, chamados de tipos, definindo as práticas delituosas, proporcionando, assim, o conhecimento prévio do agente sobre as condutas previstas como crime, bem como as sanções impostas a elas. Dessa forma, extrai-se que a lei emanada pelo Poder Legislativo, no exercício de sua função típica, de forma restritiva, definirá as condutas delituosas, bem como suas respectivas penas, nesse sentido leciona Bettiol: “a matéria penal deve ser expressamente disciplinada por uma manifestação de vontade daquele poder estatal a que, por força da Constituição, compete a faculdade de legislar, isto é, o poder Legislativo”.[8] Percebe-se, ainda, que tal função é indelegável, não podendo, portanto, serem criadas normas penais senão pelo Poder Legislativo, sob pena de ferir o princípio da separação dos poderes previsto no artigo 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assim, preleciona Alberto Silva Franco:
É evidente que, se o Poder Legislativo, na própria Constituição Federal, reservou com exclusividade para si a tarefa de compor tipos e cominar penas, não poderá o Poder Executivo, através de medida provisória, concorrer nessa competência. A matéria reservada é indelegável e a competência dos órgãos constitucionais é sempre uma competência vinculada. Daí a impossibilidade, por ofensa ao princípio da separação dos poderes, de invasão da área de reserva do Poder Legislativo”.[9]
Nesse sentido, a Constituição Federal, artigo 62, §1, I, b, com a redação determinada pela Emenda Constitucional nº. 32, de 11 de setembro de 2001, vedou expressamente a edição de medida provisória sobre matéria de Direito Penal e Processo Penal. Assim, qualquer norma penal e processual penal criada pelo Poder Executivo, por meio de Medida Provisória, será formalmente inconstitucional.
A norma penal tem como principal característica a taxatividade, vedado, assim, o emprego da analogia para criar norma penal incriminadora. Com precisão, Cernicchiaro lecionado sobre o tema esclarece que:
O princípio da legalidade veda por completo o emprego da analogia em matéria de norma penal incriminadora, encontrando-se esta delimitada pelo tipo legal a que corresponde. Em consequência, até por imperativo lógico, do princípio da reserva legal, resulta a proibição da analogia. Evidentemente, a analogia in malam partem, que, por semelhança, amplia o rol das infrações penais e das penas. Não alcança, por isso, a analogia in bonam partem. Ao contrário da anterior, favorece o direito a liberdade, seja com a exclusão da criminalidade, seja pelo tratamento mais favorável ao réu.[10]
Extrai-se dos ensinamentos supramencionados que, somente a analogia que beneficia o agente poderá ser aplicada no Direito Penal, ao passo em que a analogia que prejudicaria o agente não poderá ser aplicada, sob pena de ferir o princípio da legalidade estrita que vigora relativamente à criação de normas incriminadoras. Esmiuçando o tema acerca do conteúdo material do princípio da legalidade, Silva Franco expõe que:
No Estado Democrático de Direito, o simples respeito formal ao princípio da legalidade não é suficiente. Há, na realidade, ínsito nesse princípio, uma dimensão de conteúdo que não pode ser menosprezada nem mantida num plano secundário. O Direito Penal não pode ser destinado, numa sociedade democrática e pluralista, nem à proteção de bens desimportantes, de coisa de nonada, de bagatelas, nem à imposição de convicções éticas ou morais ou de uma certa e definida moral oficial, nem à punição de atitudes internas, de opções pessoais, de postura diferentes.[11]
Consoante se infere do artigo 1º, III, da Constituição Federal, bem como do exposto acima, o Direito Penal busca a legalidade, pautado na tipicidade material, ou seja, a norma penal deve se amoldar formal e materialmente a conduta praticada, que ponha em risco a coletividade, pois, trata-se de um Estado Democrático de Direito, onde, prevalece a Dignidade da Pessoa Humana.
4. 1 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Praevia
Estabelece o Código Penal uma das maiores conquistas dos direitos individuais, a saber: ninguém será punido pela prática de um comportamento que, ao tempo da ação ou da omissão, era penalmente indiferente. Nesse sentido, a Constituição Federal em seu artigo 5º, XL, determina que a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Assim, quando da criação de novos tipos penais incriminadores, agravantes, aumento de prazos prescricionais ou qualquer outro tipo de norma penal que venha prejudicar o réu, só será aplicada a partir de sua publicação, nas práticas delituosas futuras, não podendo retroagir, entretanto, na hipótese de norma penal que venha beneficiar o réu, retroagirá, aplicando-se aos casos anteriores à sua vigência.
Entrementes, surgiram divergências doutrinária, no que tange a definição de quando começa a aplicação de criações normativas benéficas. Duas correntes foram criadas. A 1ª corrente sustenta que, tendo em vista o disposto no artigo 2º e parágrafo único, do Código Penal, bem como o princípio da economia, a lei penal poderá ser aplicada a partir de sua publicação, pois, a lei que vigorava na data do fato, pouco tempo depois, estaria revogada pela lei que venha a melhorar a situação do agente, devendo ser aplicada a lei nova benéfica, ainda no período de vacatio legis; A 2ª corrente, por questão de segurança jurídica, posiciona-se no sentido de que, a lei penal, por mais benéfica que seja, somente poderá ser aplicada a partir de sua vigência. Reforçando esta posição, o fatídico Código Penal de 1969, criado pelo Decreto-Lei nº. 1.004, de 1969, permanecendo em vacatio legis pelo período de nove anos, sendo revogado pela lei nº. 6.578, de 1978, mesmo antes de sua entrada em vigor. Dessa forma, de todo o exposto, poder-se-á tratar a lei nova de duas formas, quais sejam: na hipótese de norma penal que prejudique o réu, esta será aplicada a partir da entrada de sua vigência. Doutro modo, quando tratar-se de norma penal que beneficie o réu, poderá ser adotada uma das correntes acima esboçadas.
4.2 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Scpripta
Partindo da vertente de que o princípio da legalidade penal proíbe a criação de normas penais incriminadoras através dos costumes, com precisão leciona Nilo Batista, “só a lei escrita, isto é, promulgada de acordo com as previsões constitucionais, pode criar crimes e penas: não o costume”[12]. Outrossim, o costume poderá ser utilizado como meio de compreensão das condutas tipificadas, pois, certas condutas explicitadas em determinados tipos penais, necessitam de uma interpretação social para sua total adequação. Assim, Hungria esclarecia que:
Tanto quanto a analogia, o costume não é fonte geradora do direito repressivo. Não pode suprir, ab-rogar ou retificar a lei penal. Cumprem, porém, distinguir entre costume contra, contra, extra, ou ultra legem e costume integrativo, subsidiário ou elucidativo da norma penal. Nesse último caso, o costume intervém ex vis legis, sem afetar, portanto, o dogma de que a única fonte do Direito Penal é a lei. Assim, por exemplo, ao incriminar o 'ultraje público ao pudor', a lei penal se reporta a um costume social, isto é, à moralidade coletiva em torno dos fatos da vida sexual, ficando subordinada, para o seu entendimento e aplicação, à variabilidade, no tempo e no espaço, desse costume. Não há caso algum em que o costume contra ou extra legem possa ter o efeito, já não dizemos de criar crimes ou penas, mas de expungir a criminalidade legal de um fato.[13]
Dessa forma, não se concede poder incriminador aos costumes, bem como reconhece-se sua impossibilidade de revogar lei, haja vista vigorar no sistema jurídico penal o princípio da legalidade estrita que limita o poder incriminador conferido ao Estado, destarte, tal princípio é direito fundamental, previsto no artigo 5º, da Constituição Federal, doutrinariamente conhecido como direito fundamental de primeira dimensão.
4.3 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Stricta
O princípio da legalidade, sob a vertente em testilha, proíbe a hipótese da aplicação de analogia in malam partem. Esmiuçando o tema, percebe-se que a analogia é forma de interpretação, bem como é integrativa da lei penal, visando o equilíbrio de ordenamento jurídico penal, na busca de assegurar o princípio da isonomia. Norberto Bobbio, conceituando, bem como desenvolvendo o tema assevera que:
Analogia é o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante.
Para fazer a atribuição ao caso não-regulamentado das mesmas consequências jurídicas atribuídas ao caso regulamentado semelhante, é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante; é preciso ascender dos dois casos uma qualidade comum a ambos, que seja ao mesmo tempo a razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras consequências.[14]
Consoante ensinamentos do renomado autor, para a aplicação da analogia como forma integrativa da lei, é necessário haver uma semelhança relevante, ou seja, capaz de amoldar-se o mais próximo materialmente possível, dando ensejo, por derradeiro, à mesma consequência. Doutro modo, Ferrajolli com maestria, ponderando sobre a aplicação da analogia in malam partem nos países totalitaristas no século passado, ensina-nos:
Na Alemanha nazista uma lei de 28 de junho de 1935 substituiu o velho artigo 2º do Código Penal de 1871, que enunciava o princípio da legalidade penal, pela seguinte norma: 'será punido quem pratique um fato que a lei declare punível ou que seja merecedor de punição segundo o conceito fundamental de uma lei penal e segundo o são sentimento do povo'. Se, opondo-se ao fato, não houver qualquer lei penal de imediata aplicabilidade, o fato punir-se-á sobre a base daquela lei cujo conceito fundamental melhor se ajuste a ele.[15]
O contexto histórico exposto acima demonstra que os países totalitários, ferindo o princípio da legalidade, bem como os direitos individuais humanísticos, aplicavam a analogia in malam partem, ou seja, puniam o indivíduo, mesmo na hipótese de fato não tipificado em lei.
Necessário se faz , por derradeiro, distinguir as lacunas voluntárias das lacunas involuntárias. Com a clareza que lhe é peculiar, dissertando sobre o tema, Antônio José Fabrício Leiria esclarece que
As lacunas voluntárias estão representadas pela inexistência de uma vontade no conteúdo da norma jurídica. Com efeito, poderá o legislador entender que, frente a uma realidade social vivenciada, um determinado fato, pela sua escassa relevância jurídica, não se apresente suficientemente maduro e com relevante carga axiológica para ser normado. Deste modo, ainda que previsto pelo legislador, este o deixa fora da lei. Pode-se mesmo dizer que, em tais casos, há um querer negativo, pois a lacuna propositada da lei não escapa à previsão do legislador. Ela insere-se no conteúdo da norma como vontade negativa desta. Como se constata, a lacuna voluntária escapa da previsão da lei, mas se insere no seu conteúdo, sob forma negativa de vontade da norma jurídica.
Aqui o legislador prevê a hipótese não contemplada pela norma, mas, propositadamente, deixa fora de seu âmbito de incidência, por motivos de ordem jurídica, política, econômica, social, religiosa ou outros. Diante da realidade de um problema de lacunas da lei, o juiz desenvolve um trabalho que ultrapassa a simples interpretação, visto que vai envolver com problemas de integração do direito.
Configura-se as chamadas lacunas involuntárias, quando o fato, posto que revestido de todo os caracteres necessários para ser regulado, situa-se fora do campo da incidência da lei, por não haver sido previsto pelo legislador. Nesta hipótese, inexiste valoração jurídica, e o espaço vazio escapa à vontade da norma, por falta de previsão do legislador. É o inverso do que se verifica nas lacunas voluntárias.
Comparada a ordem jurídica com uma atmosfera que circunda e envolve a vida social, consoante nos fala Ferrara, poderemos dizer que as lacunas da lei se apresentam como vácuos dessa mesma atmosfera. São vazios do ordenamento jurídico[16] (grifei).
Nesse diapasão, as lacunas voluntárias, tendo em vista a realidade social, são propositalmente estabelecidas pelo legislador, assim, por motivos econômicos, religiosos, e políticos, dá-se ensejo a uma interpretação ampla e integrativa da lei. Dessa forma, o conteúdo normativo propositalmente lacunoso merece atenção especial do operador do Direito, uma vez que exige maior sensibilidade jurídica daquele. Doutro modo, as doutrinariamente denominadas lacunas involuntárias, situam-se fora da previsibilidade do legislador, e consequentemente da lei, assim, inversamente às lacunas voluntárias, são consideradas vazios do ordenamento jurídico penal. Entrementes, tratando-se de matéria penal, só há permissão da aplicação da analogia in bonam partem, quando se tratar das denominadas lacunas involuntárias, ao passo que, proibido estará a aplicação da analogia quando as lacunas forem voluntárias, mesmo que benéfico ao agente.
4.4 Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege Certa
Necessário salientar que, a lei devem ser redigida de forma cristalina e certa, dando ensejo a totais condições de compreensão a todos, para que possam agir em consonância com a norma penal. Nesse sentido, Beccária dissertando sobre a obscuridade da lei, dizia:
Se a interpretação das leis é um mal, claro que a obscuridade, que a interpretação necessariamente acarreta, é também um mal, e esta mal será grandíssimo se as leis forem escritas e língua estranha ao povo, que o ponha da dependência de uns poucos, sem que possa julgar por si mesmo qual seria o êxito de sua liberdade, ou de seus membros, em língua que transformasse um livro, solene e público, em outro como que privado e de casa.[17]
As leis em sentido amplo, não podem ser obscuras, pois, afetam os direitos individuais de liberdade, limitando-as a agir em consonância com as normas emanadas do órgão Estatal. Assim, as normas penais devem ter caráter taxativo, ou seja, devem estar determinadas, conforme esclarece Cláudio do Prado Amaral:
Exige-se que a lei penal seja certa, isto é, que os tipos penais sejam elaborados legislativamente de forma clara e determinada, a fim de que as condutas incriminadas sejam passíveis de identificação, sem que se precise recorrer a extremados exercícios de interpretação ou integração da norma. Quer-se a clareza denotativa dos tipos penais, o que torna a norma legal prontamente inteligível a seus destinatários em termos cognitivos: todos os cidadãos. Se a norma penal incriminadora tem como um de seus objetivos intimidar para a não-realização da conduta proibida, é preciso que seja clara a todos, a fim de que saibam e conheçam sem quaisquer dúvidas o conteúdo da norma legal.
O fundamento do princípio da taxatividade assenta-se em dupla base, pois: a) norma penal incriminadora contém uma ordem de abstenção de conduta ou de realização de conduta; logo, o destinatário da norma penal precisa compreender exatamente sem conteúdo, para poder acatar a ordem; sob esse ângulo, o princípio da taxatividade encontra razão de ser na própria exigência de observância da norma penal; b) sob outro fundamento, o princípio da taxatividade encontra-se na função intimidadora da norma penal; assim, para que a intimidação ocorra, é preciso que seu conteúdo seja claro e preciso, a fim de que todos possam atendê-lo – sem compreensão da norma, não haverá intimidação.[18]
As condutas incriminadas devem ser necessariamente passíveis de identificação, para que possam ser compreendidas sem extremos esforços interpretativos, cognitivamente pelo cidadão. Fundamentando o princípio da taxatividade da norma penal, verifica-se que a norma penal incriminadora, contem uma conduta de abstenção, ou seja, impõe um não fazer, sob pena de incorrer nas penas aplicadas ao tipo penal. Complementando o tema, a norma penal taxativa, possui função intimidadora, bem como a função repressiva, uma vez que o artigo 59, do vigente código Penal, adotando a teoria mista da pena, estabelece que esta tem um caráter preventivo e repressivo. Outrossim, objetivando a segurança jurídica penal, não poderá haver redações imprecisas, uma vez que a imprecisão da norma apenas será utilizada quando não houver outra alternativa.
5 Apontamentos Finais
Sedimentado os argumentos acima, verifica-se que o princípio da legalidade estrita, inserida no Código Penal Brasileiro, esta enraizado no artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como no superprincípio e fundamento da República, basilar do Estado Social Democrático de Direito, qual seja: a Dignidade da Pessoa Humana. Entrementes, tal princípio limita o Estado através do Poder Legislativo, no que tange a punições desenfreadas por perseguições políticas. Dessa forma, tal princípio em consonância com o princípio da anterioridade, delimita a atuação do Estado na criação de tipos penais e, consequentemente na aplicação das penas impostas a tais praticas delitivas.
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[17] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
[18] AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios penais – Da legalidade à culpabilidade. V. 24. São Paulo: Revista do IBCCRIM, 2003.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, Danniel Gualberto Peres. O Princípio da Legalidade no Direito Penal Brasileiro sob a Ótica da Dignidade da Pessoa Humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2012, 07:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30334/o-principio-da-legalidade-no-direito-penal-brasileiro-sob-a-otica-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 14 nov 2024.
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