Há certas obviedades que, pela aparência dos desdobramentos práticos a nós apresentados, através dos fatos, não nos parecem adequadamente assimiladas por algumas pessoas. Uma delas que comumente escapa ao alcance intelectivo de muita gente, caso não se trate de má fé, é o conceito de funcionário público.
É percebido claramente em alguns ocupantes de cargo público, aqui no Brasil, certo desnorteamento no que tange a conscientização de sua função, papel e finalidade do seu exercício, plasmado no resultado decorrente do seu desempenho. Ora, é elementar entender-se que todo funcionário público representa o Estado quando no exercício de sua função. A razão de ser desse Estado é a de guardião da sociedade, que o financia através dos impostos. Ele encerra um poder necessário e suficiente, pelo menos em tese, de fazer valer todos os direitos e obrigações dos cidadãos ao mesmo tempo em que lhe é devido garantir a observância e o respeito à cidadania legitimadora da dignidade de todos que estejam comprometidos com esta estrutura civilizadora.
Até aqui acho que não há nada de complicado na compreensão de tudo o que foi dito. Se imaginarmos uma sociedade recreativa qualquer, guarda certa semelhança, pois, ela será provida de um estatuto onde estará estabelecido através de cláusulas todos os direito e obrigações de seus constituintes com as conseqüentes punições previstas aos transgressores, incluída a possibilidade de expulsão dos mesmos. Em essência, é isto que ocorre no pacto macro social onde nossos direitos estabelecem uma relação direta com nossas obrigações definindo o nosso próprio status social, que nos situa na escala da dignidade possível, estando ele a depender de nossos merecimentos consoantes a nossa capacidade de adesão e integração nessa sociedade. Simplificando, a sociedade é constituída dos que estão comprometidos com ela na observação e respeito à cidadania com tudo o que isto implica. O Estado existe em função dela e por ela. Os que não se incluem nesse balizamento são aqueles que estão, conseqüentemente, alijados, senão completamente, pelo menos parcialmente de suas prerrogativas de cidadão.
Todo este preâmbulo vem a propósito de um fato ocorrido no dia 2 de fevereiro deste ano na Praça Jerusalém, no Jardim Guanabara, Ilha do Governador, que chocou e comoveu todo o país.
Na referida data Vítor Suarez Cunha, de 21 anos, pela madrugada, ao tentar proteger um enfermiço morador de rua que estava sendo atacado fisicamente por cinco homens fortes, foi brutalmente espancado quase até a morte pelos agressores. Ele foi internado com muitos ferimentos e fraturas no Hospital Santa Maria Madalena, também na Ilha do Governador. Na unidade, Vitor passou por uma cirurgia de reconstrução da face e precisou receber oito placas de titânio na testa e no céu da boca, além de 63 parafusos, com possibilidade de ficar com seqüelas e perda da visão em um dos olhos. Permaneceu vivo graças a dois fatores importantes quais sejam; foi socorrido a tempo e entregue nas mãos de excelentes profissionais médicos cirurgiões, que não dispensaram uma providencial intervenção divina milagrosa.
O relatado acima compreende um quadro clássico e inequívoco de expressão da bestialidade no seu mais intenso grau, de que são capazes espécimes hominídeos que não obtiveram sucesso, face ao processo civilizatório disponibilizado a todos, em promoverem-se a condição de ser humano. http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.33661&seo=1
Ficaria a seguinte questão a se considerar: dentre todos os sete protagonistas deste dramático e deplorável acontecimento quais poderiam ser classificados como cidadãos e quais como facínoras marginais? Cada brasileiro que pense e tire a sua conclusão.
Como se não bastasse o impacto de tal brutalidade manifesta a agredir a sensibilidade de todas as pessoas de bem do nosso país e quem sabe do mundo, veio-nos, pela mídia televisiva, a notícia referente à decisão da Justiça de não levar os agressores a júri popular além de ter revogado a prisão preventiva de um dos acusados e aplicado medidas alternativas para os outros quatro, ou seja, foram todos para casa. E aí, a gente se pergunta! O que agride mais o etos do nosso povo; a violência gratuita em si, que se sabe existente, sempre existiu e existirá ou o posicionamento da justiça formal minorando a gravidade do fato, argüindo que o grupo de agressores não teve intenção de matar a vítima? Em que estado de lesões corporais necessitaria a vítima se encontrar, após ser covardemente atacada com socos e pontapés desferidos de forma sincronizada por cinco homens fortes, de tal maneira que seu crânio teve que ser reconstituído com muitas placas de titânio e 63 parafusos, para que a justiça formal pudesse firmar convicção de que os agressores não estavam apenas pretendendo dar um susto na vítima? Precisaria a vítima virar patê? Meu Deus que horror! http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=.38208
Casos assim em que o tratamento jus-institucional dispensado a ele deixa transparecer flagrante dissonância entre as consequências da ação criminosa e a tímida resposta de uma corte jurídica desdobra implicações negativas não só quanto à possibilidade da injustiça realizada, mas subtrai mais um tijolo no edifício da credibilidade do judiciário haja vista o clamor da sociedade em tais situações. Isto é muito grave! Há quem conteste, por considerar que tal clamor da sociedade não deve se constituir referência balizadora no exercício técnico do fazer justiça. Não acho que seja bem assim. A questão é bem mais complexa. Vejo, em certa medida, um grave equívoco nessa radicalização. A justiça institucional tem satisfação a dar a sociedade sim! Entender de forma diversa com certeza chega a ser absurdo!
Nas redes sociais da mídia digital formou-se uma corrente infinda de indignação nos mais variados matizes da expressão linguística, desde a mais educada a desabrida. E agora? Vai ficar só nisso? Será que algum comitê de direitos humanos, habitual em se manifestar com indignação, na mídia televisiva, quando alguma autoridade policial aborda com mais energia um traficante ou um estuprador, vai reivindicar uma atenção especial para este caso em que, não o facínora, mas o cidadão, na pessoa do Vítor Suarez Cunha, que, de forma heroica, corajosa, não se omitiu em defender a cidadania vilipendiada de um enfermiço morador de rua e que por tal ousadia quase perde a vida? E o Ministério Público será que vai recorrer à outra instância peticionando que a decisão atual seja reformada e os agressores de Vítor sejam julgados em jure popular? Aguardemos e depois veremos. Enquanto isso rezemos para que alguém detentor do poder institucional pertinente a resolução de casos como este, se movimente e, sendo possível, no caso em questão, avie as necessárias correções em proveito da justiça, no resgate do devido respeito a cidadania no seu conceito mais legítimo, personificado na pessoa do Vítor Suarez Cunha, que apesar do seu gesto tão nobre se vê, ironicamente, coroado numa auréola de humilhação em face dos resultados jurídicos colhidos até o presente momento, evocando simbolicamente a coroa de espinhos imposta a Jesus, enquanto seus algozes pousam de poderosos, inatingíveis e insinuam ameaças a ele e a seus familiares.
A continuar, em termos de justiça, as questões sendo tocadas da forma como se vê neste caso, conseguiremos erradicar a cultura da impunidade que se disseminou neste país reforçando o potencial de violência urbana? Não tarda ficarmos conhecido no mundo inteiro como o país onde é freqüente rapazes “filhinhos de papai” divertirem-se tocando fogo em índio, em mendigos, descendo a porrada em trabalhadora doméstica que se encontra cedinho na parada de ônibus aguardando a condução, idem a moradores de rua, e por aí segue a infindável seqüência de descalabro, indício da já referida cultura da impunidade.
O povo quer acreditar nas instituições de seu país, mas não encontra estímulo no que lhe é apresentado como realização de justiça. A ressonância que decorre de tudo isso numa dimensão moral não se restringe apenas aos atores que protagonizam o caso, mas atinge a própria dignidade do país, como nação, que é visto como representado pela qualidade do resultado que emana dos parâmetros, dos critérios, dos valores, dos paradigmas utilizados na forma de se realizar, em muitos casos, a nossa Justiça. Ora, nós já não temos pena de morte, não temos prisão perpétua, o tempo máximo de permanência preso permitido por lei não pode ultrapassar 30 anos e ainda por cima aconteceu de ser detonada a nossa Lei de Crime Hediondo que se tornou inócua em razão da possibilidade de se poder aplicar sobre a mesma o instituto do regime de progressão da pena que transforma 30 anos em cinco. Nós como sociedade não merecemos isso.
O nosso povo já percebeu que por aí fora, em países de primeiro mundo, notadamente nos Estados Unidos, o transgressor quando alcançado pelo braço do Estado, seja rico ou pobre, não tem moleza porque lá as Leis têm conseqüências, eficácia e os criminosos pagam o preço devido, consoante à gravidade do delito. A pena a ser aplicada além do caráter punitivo de que é revestida leva em conta na sua dosimetria a satisfação das vítimas e de seus familiares, numa ostensiva demonstração de respeito, por parte do Estado, ao cidadão ofendido. Muito diferente da humilhação de que é objeto o nosso herói Vítor, em paga por ter ousado defender um vulnerável morador de rua, como estar a mostrar o tratamento que receberam da justiça formal os seus algozes. Pode-se constatar a veracidade disto na recente ocorrência havida nos Estados Unidos, 20 Jul do ano em curso, no cinema "Century 16" em um shopping de Aurora (Colorado), por ocasião da mostra do filme "Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge" em que James Eagan Holmes, 24, comete um massacre resultando na morte de 12 pessoas e de 58 feridos. A promotora Carol Chambers vai consultar sobreviventes e parentes das vítimas fatais com vista a resolução a ser decidida referente a condenação do réu que já é quase certa definir-se pela pena de morte. Isto sim é que é um tratamento respeitoso dos agentes representantes do Estado aos cidadãos vítimas de facínoras.
A parte todas as críticas, numa ordem política, feitas aos Estados Unidos, é inquestionável o respeito que este país impõe ao mundo inteiro pela firmeza implacável com que realiza a sua respeitada Justiça.
Para não ficarmos tão desconsolados, há razão ainda para mitigarmos o nosso pessimismo quanto ao combate a impunidade em nosso país. Refiro-me a uma legião tanto de magistrados como de promotores que muito honra o nosso Judiciário pelo seu comprometimento com o ideal de justiça manifesto no próprio desempenho, ao enfrentar o crime organizado, correndo alto risco de vida, tendo que ser escoltado por policiais fortemente armados, 24 horas diárias, em prejuízo de sua privacidade, mas firme em não se dobrar ao poder econômico nem político, com o foco unicamente voltado para servir a sociedade livrando-a do número maior possível dos facínoras infiéis ao reino da cidadania. Estes são nossos heróis que levam o cidadão em conta, e que chegam a nos comover pelo despojamento dos interesses pessoais em prol do compromisso que têm com a sociedade. Oportuno lembrar a Juíza Patrícia Aciole há um ano assassinada por personificar esse ideal de justiça. São muitos os mártires, como essa juíza, que muito fizeram e hoje suas memórias servem de inspiração a essa legião de heróis que estão dando continuidade a esse ato de fé na Justiça em sua dimensão deontológica, e, se mais não fazem é porque o nosso ordenamento jurídico não ajuda.
Profº de Filosofia c/ Pós-Graduação em Filosofia da Ciência e da Linguagem. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, José da Silva. Impunidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2012, 08:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/30342/impunidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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