Sumário: 1 Introdução 2 A medida provisória – instituto jurídico-constitucional 3 A medida provisória como instrumento de governabilidade 4 A medida provisória como instrumento de usurpação da função legiferante 5 Conclusão 6 Referências bibliográficas
Resumo: A medida provisória, instituto jurídico-constitucional previsto nos arts. 59, V, 62 e 84, XXVI, possui duas caras, a saber: (1) importante instrumento garantidor de governabilidade em nossa forma de governo presidencialista e assecuratório de uma atitude célere e eficiente no atendimento de necessidades inesperadas e urgentes da população ou (2) instrumento de usurpação da função legiferante quando usado de forma abusiva, ou seja, desrespeitando as prescrições constitucionais. Então, tentar-se-á demonstrar, a partir da leitura da doutrina sobre o tema e da observação da prática política essas duas faces da medida provisória.
Palavras-chaves: Medida provisória – Governabilidade – Usurpação.
The temporary measure: juridical-constitutional institute of two faces
Sumary: 1 Introduction 2 The temporary measure – institute juridical-constitutional 3 The temporary measure as instrument of capacity to govern 4 The temporary measure as instrument of usurpation of the function related to the process of creation of laws 5 Conclusion 6 References
Abstract: The temporary measure, juridical-constitutional institute foreseen in the arts. 59, V, 62 and 84, XXVI, have two faces, which are: (1) an important instrument that assures the capacity to govern in our form of presidentialist government and that assures a swift and efficient attitude in the service of unexpected and urgent needs of the population or (2) instrument of usurpation of the function related to the process of creation of laws when used in an abusive way, in other words, disrespecting the constitutional prescriptions. Then, we will try to demonstrate, starting from the reading of the doctrine on the theme and of the observation of the political practice those two faces of the temporary measure.
Key-words: Temporary measure – Capacity to govern – Usurpation.
1 Introdução
Abordar-se-á no presente trabalho a figura jurídico-constitucional da medida provisória prevista na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seus arts. 59, V, 62 e 84, XXVI.
A medida provisória é um ato normativo excepcional e emergencial de competência privativa do chefe do Poder Executivo que em casos reputados relevantes e urgentes poderá adotá-la, com força de lei sob condição resolutiva, devendo submeter de imediato à apreciação do Poder Legislativo para decidir sobre o seu destino: (1) aprovação, com ou sem alteração, convertendo-a em lei ordinária, (2) rejeição expressa, ou (3) rejeição tácita ou perda de eficácia retroativamente à sua edição por decurso de prazo.
É, indubitavelmente, um dos temas mais polêmicos do direito constitucional, haja vista ser um instrumento normativo primário conferido privativamente a um órgão cuja função precípua não é a de legislar, mas a de administrar e gerir a coisa, os interesses e as necessidades públicas. Logo, é o exercício de uma função atípica, e aqui reside precisamente a polêmica.
A relevância da medida provisória para nosso sistema presidencialista de governo é incontestável, daí sua manutenção no ordenamento jurídico-constitucional, mesmo depois das horríveis experiências proporcionadas pelos famigerados atos institucionais e decretos-leis do regime militar que durou pouco mais de vinte anos. Nesta perspectiva, o constituinte de 1988 através da alteração do nomen juris de decreto-lei para medida provisória buscou afastar ou pelo menos mitigar o ranço de arbitrariedade e autoritarismo que caracterizaram os atos normativos do período militar.
É um importante instrumento garantidor de governabilidade dentro da forma presidencialista de governo ao assegurar uma atitude célere e eficiente do Poder Público perante as necessidades inesperadas e urgentes da população, as quais, não raras vezes, não comportam as naturais delongas e morosidade do processo legislativo, sob pena de perecimento da população se não atendidas imediatamente.
Sem embargo, quando a medida provisória é utilizada de forma abusiva ou com desvio de finalidade, quer dizer, sem a observância dos ditames e parâmetros constitucionais, o sentido de sua existência na ordem jurídico-constitucional acaba sendo desnaturada e, por conseguinte, convolada em perigosíssimo instrumento de usurpação da função legiferante pelo Poder Executivo.
Tentar-se-á, então, demonstrar que a medida provisória tem duas caras: relevante instrumento de governabilidade ou perigoso instrumento de usurpação da função legiferante, de modo que a preponderância de uma cara em relação à outra depende de como é utilizada, manejada por quem detém a competência privativa de editá-la.
2 A medida provisória: instituto jurídico-constitucional
2.1 Fontes históricas
A medida provisória não é instituto novo e tampouco fruto da mente inventiva de nosso legislador constituinte de 1988. Ao contrário, encontra raízes mediatas no decretilegge da Constituição italiana de 1947, em seu art. 77, e raízes imediatas no decreto-lei da Constituição Federal pretérita de 1967 alterada pela Emenda Constitucional nº 1/1969, em seu art. 55 (CARVALHO, 2008; MORAES, 2009; BRANCO, 2009; TAVARES, 2008; LENZA, 2009; FERREIRA FILHO, 2002; CLÈVE, 2000; DANTAS, 1997).
A primeira aparição da figura do decreto-lei ocorreu na Constituição Federal de 1937, “muito embora” – lembra DANTAS (1997, p. 52) – “se possa fazer referência ao art. 179-35 da Carta de 1824, onde aparecia a expressão ‘medida provisória e indispensável’, mesmo que com sentido diferente daquele que hoje lhe é dado” (grifo no original).
Sobre o ponto, ALVES JR. (1997) e SAMPAIO (2007) afirmam estar equivocadas aquelas pessoas que acreditam encontrar-se na Carta imperial de 1824 o nascedouro do decreto-lei e da atual medida provisória, porquanto a expressão medida provisória consignada no art. 179, caput, XXXV, da Carta Magna de 1824 não representa uma medida legislativa de urgência outorgada pela Constituição ao chefe do Executivo, senão uma autorização para em casos extraordinários suspender temporariamente alguns direitos individuais fundamentais enquanto perdurar a situação fática excepcional. Assemelhando-se, então, mais aos atuais institutos de estado de sítio e estado de defesa da Constituição Federal de 1988 (arts. 136 a 141) do que ao decreto-lei ou à medida provisória:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte:
XXXV. Nos casos de rebellião, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado, que se dispensem por tempo determinado algumas das formalidades, que garantem a liberdede individual, poder-se-ha fazer por acto especial do Poder Legislativo. Não se achando porém a esse tempo reunida a Assembléa, e correndo a Patria perigo imminente, poderá o Governo exercer esta mesma providencia, como medida provisoria, e indispensavel, suspendendo-a immediatamente que cesse a necessidade urgente, que a motivou; devendo num, e outro caso remetter á Assembléa, logo que reunida fôr, uma relação motivada das prisões, e d'outras medidas de prevenção tomadas; e quaesquer Autoridades, que tiverem mandado proceder a ellas, serão responsaveis pelos abusos, que tiverem praticado a esse respeito (grifei).
BRANCO (2009, pp. 924-925) fornece excelente síntese histórica da medida provisória:
A medida provisória sucedeu o decreto-lei, que foi criação da Constituição de 1937. Previa-se no diploma constitucional que este instrumento seria usado, mediante autorização do parlamento ou durante períodos de recesso ou dissolução da Câmara dos Deputados. Como o parlamento não se reuniu, o uso do decreto-lei foi absoluto.
A Constituição de 1946, escarmentada, não previu o decreto-lei, que existiu durante o curto período do parlamentarismo.
A Constituição de 1967 tornou a dar vida ao decreto-lei, atribuindo-lhe matéria específica, e a ele impondo os pressupostos da urgência ou de interesse público relevante. A não-apreciação do texto dentro de certo período tornava-o definitivo. Mesmo que rejeitado, as relações formadas durante sua vigência permaneciam eficazes.
Os constituintes de 1988 sentiram a necessidade de permitir ao Presidente da República a edição de medidas com força de lei, para atender a necessidades urgentes e relevantes, garantindo, porém, a participação mais atuante do Legislativo. Conceberam a medida provisória.
A medida provisória foi talhada pelo constituinte segundo o modelo italiano dos decretos-leis, adotados em casos extraordinários de necessidade e urgência, devendo ser, imediatamente, comunicados ao parlamento, que é convocado se não estiver reunido. A edição desses provimentos provisórios, no país europeu, depende da iniciativa do Conselho de Ministros, órgão colegiado. O decreto-lei perde efeito se não convertido em lei no prazo de sessenta dias da sua publicação. Admite-se, nesse caso, que a Câmara possa regular, por lei, as relações jurídicas surgidas com base no decreto não convertido em lei.
Algumas dessas soluções italianas foram aproveitadas pelo constituinte originário ao cuidar das medidas provisórias.
Posto isso, faz-se mister cotejar o decretilegge da Itália (Constituição italiana de 1948, art. 77), o decreto-lei da Constituição de 1967 (alterada pela EC 1/1969, art. 55) e a medida provisória (Constituição de 1988, art. 62).
O decretilegge italiano (1) surge num contexto de pós-fascismo e, portanto, de redemocratização da Itália, (2) a forma de governo é o parlamentarismo, (3) a expedição desse ato normativo pelo governo é excepcional, pois, em regra, deverá haver delegação do parlamento, (4) os requisitos formais de cabimento são cumulativos: nos casos extraordinários de necessidade e urgência, (5) não há limites materiais expressos, isto é, não são elencadas as matérias que podem ou não ser objeto do decretilegge, (6) em razão do parlamentarismo, o governo, formado pelo Conselho de Ministros sob a liderança do Primeiro-Ministro, expede o provimento provisório sob sua responsabilidade, podendo ser destituído caso não seja convertido em lei, seja por rejeição ou por decurso de prazo, (7) deverá ser submetido no mesmo dia da expedição ao crivo do parlamento, que estando de recesso, reunir-se-á dentro de cinco dias, (8) o prazo de validade é de sessenta dias a contar da publicação, findos os quais, se não houver conversão em lei, perderá sua eficácia retroativamente (ex tunc) e (9) o parlamento tem a faculdade, em razão do termo pode, de regular, mediante lei ordinária, as relações jurídicas decorrentes de atos praticados durante a vigência do decretilegge.
Já o decreto-lei (1) insere-se num contexto de ditadura militar, cuja Constituição era autocrática, (2) a forma de governo era o presidencialismo, (3) não havia responsabilização do Presidente da República caso o decreto-lei não fosse convertido em lei, (4) o prazo de validade era de sessenta dias a contar da publicação, findos os quais, havendo rejeição, os atos praticados durante a vigência do decreto-lei não eram nulos, de modo a produzir efeitos a partir da rejeição (ex nunc), (5) havia conversão em lei por decurso de prazo, (6) os requisitos formais de cabimento eram alternativos: urgência ou interesse público relevante, (7) estava condicionado ao não aumento de despesas, (8) as matérias que podiam ser reguladas eram taxativas: segurança nacional, finanças públicas, inclusive normas tributárias e criação de cargos públicos e fixação de vencimentos e (9) devia ser submetido à apreciação do Congresso Nacional que dentro de sessenta dias, a contar do recebimento, decidiria pela conversão em lei ou não, não devendo introduzir qualquer tipo de alteração por meio de emenda.
Por fim, a medida provisória (após a EC nº 32/2001) (1) insere-se num contexto de pós-regime militar e, por extensão, de redemocratização, (2) a forma de governo continua sendo a presidencialista, (3) não há responsabilização do Presidente da República caso não seja convertida em lei, (4) é atribuição privativa do Presidente da República, (5) é um ato normativo excepcional, devendo ser submetido imediatamente à apreciação do Congresso Nacional, o qual poderá alterá-lo por meio de emendas, (6) o prazo de validade é de sessenta dias, podendo ser prorrogado uma única vez pelo mesmo período, sendo suspenso durante recesso parlamentar, findos os quais, se não houver conversão em lei, perderá sua eficácia desde o início (ex tunc), (7) as relações jurídicas surgidas durante a vigência devem ser reguladas pelo Congresso Nacional mediante decreto legislativo, caso a medida provisória seja rejeitada ou perca eficácia por decurso de prazo, se dentro de sessenta dias referido decreto legislativo não é expedido, a medida provisória adquirirá ultratividade apenas para a disciplina das relações jurídicas surgidas durante sua eficácia, (8) os requisitos formais de cabimento são cumulativos: urgência e relevância, (9) há vedação expressa de matérias que não devem ser objeto de regulação e (10) é defeso a reedição na mesma sessão legislativa de medida provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.
2.2 Natureza jurídica, conceito e finalidade
CARVALHO (2008, p. 1.046) leciona:
Algumas correntes procuram fixar a natureza jurídica das medidas provisórias, destacando-se as seguintes: a) as medidas provisórias como fatos consentidos pela Constituição, pelo que não passam elas de uma eventualidade disciplinada pela normatividade constitucional, o que faz com que a edição de medida provisória seja intrinsecamente ilícita até o momento de sua conversão em lei, sanatória dos vícios originários; b) as medidas provisórias como poder delegado ao Executivo, notando-se que, neste caso, se a Constituição confere ao Poder Legislativo, com exclusividade, a função de legislar, a edição de medidas provisórias, pelo Governo, não constitui uma potestade autônoma, mas sim delegada, de caráter secundário; c) as medidas provisórias como poder próprio outorgado ao Executivo, pelo que se trata de atribuição constitucional direta, e não configurativa de delegação; d) as medidas provisórias como expressão concreta do poder cautelar geral deferido ao Chefe do Poder Executivo, configurando uma antecipação legislativa de natureza cautelar; e) as medidas provisórias como ato administrativo geral editado pelo Presidente da República, em razão da situação constitucionalmente descrita, o que se explica por se tratar de ato do Poder Executivo, editado sem a participação do Congresso Nacional, detentor único do Poder Legislativo, seja porque as medidas provisórias são publicadas no Diário Oficial como atos do Poder Executivo e não como atos do Poder Legislativo, acrescendo-se a observação de que o órgão de que emanam é administrativo, tornando-se irrelevante o fato de estarem arroladas dentre as espécies normativas constantes do processo legislativo.
À luz do exposto, entende-se juntamente com CARVALHO (2008), que a corrente doutrinária que melhor elucida a natureza jurídica da medida provisória é aquela que pugna ser um ato normativo excepcional de atribuição privativa do chefe do Poder Executivo cuja legitimidade é outorgada diretamente pela Constituição Federal de 1988, consoante a interpretação sistemático-teleológica de seus arts. 59, V, 62 e 84, XXVI.
Com efeito, a medida provisória, por ter força de lei, é ato normativo primário ao inovar no ordenamento jurídico. Está sob condição resolutiva (PONTES DE MIRANDA apud BRANCO, 2009), porque não sendo convertida em lei, seja por rejeição expressa ou tácita (decurso de prazo) do Congresso Nacional, perde sua eficácia retroativamente (ex tunc) desde sua publicação. É de atribuição privativa do chefe do Poder Executivo, logo, em razão do princípio da simetria (mutatis mutandis), além do Presidente da República, poderá utilizá-la os governadores e prefeitos, desde que, obviamente, guardem similitude com o modelo da Constituição Federal de 1988.
Inclusive, o § 2º, do art. 25 da CF/1988, preceitua que “Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação” (grifei). Portanto, de modo indireto o constituinte de 1988 permitiu a adoção de medida provisória pelos Estados-membros e, em respeito aos princípios da isonomia e do federalismo, também os Municípios e o Distrito Federal. Nessa perspectiva, a adoção de medida provisória pelos governadores tem que está prevista na Constituição Estadual, e pelos prefeitos, além da Constituição Estadual, também na Lei Orgânica.
Por outro lado, à guisa de informação, a Constituição Federal de 1967 (alterada pela EC nº 1/1969), art. 200, parágrafo único, vedava o uso de decreto-lei pelos governadores e, implicitamente, pelos prefeitos.
A medida provisória tem a finalidade precípua de garantir uma atitude célere e eficiente do gestor público diante de situações fáticas reputadas relevantes e urgentes (por exemplo: desastre e calamidade pública), que não aguardam pela regulação do Poder Legislativo que naturalmente é moroso em razão das formalidades do processo legislativo.
Essa atribuição legiferante atípica e excepcional conferida ao chefe do Executivo apresenta-se como algo imprescindível, salienta SZKLAROWSKY (2003), em razão do grande dinamismo da sociedade em que se vive, que, não raro, exige do administrador ação diligente e célere no atendimento de suas necessidades e anseios básicos.
Em que pese a inserção do Brasil no contexto do capitalismo global (globalização), consistente, em suma, na integração e interdependência das economias nacionais, cuja filosofia política é o neoliberalismo, o qual defende um Estado mínimo, quer dizer, não-interventor, vivemos num Estado de bem-estar social (welfare state). Isto é inferido, dos muitos artigos espalhados pela Constituição Federal de 1988 destinados à realização de direitos sociais, sendo bastante significativo o art. 6º, de maneira que o Poder Público é constantemente compelido e instado a fazer prestações materiais aos cidadãos, a fim de lhes garantir um mínimo material existencial, pois, caso contrário, estará ferindo o princípio-fonte da dignidade da pessoa humana, previsto na CF/1988, art. 1º, III, o qual é o fundamento jurídico, político e filosófico dos direitos humanos fundamentais (SARLET, 2008).
2.3 A medida provisória e a lei stricto sensu
Interessante mostra-se a advertência aduzida pelo jurista MELLO (2008, p. 130):
Convém desde logo acentuar que as medidas provisórias são profundamente diferentes das leis – e não apenas pelo órgão que as emana. Nem mesmo se pode dizer que a Constituição foi tecnicamente precisa ao dizer que tem “força de lei”.
A compostura que a própria Lei Magna lhes conferiu desmente a assertiva ou exige que seja recebida cum grano salis (grifo no original).
Observa-se, assim, que (1) a medida provisória é ato normativo excepcional para a regulação de determinados assuntos sob determinados requisitos e condições, já a lei é a via normal de regulação da vida em sociedade; (2) a medida provisória é essencialmente efêmera, cujo prazo de validade está previamente estabelecido pela Constituição Federal de 1988, enquanto a lei, em regra, perdura indeterminadamente, e quando temporária ou excepcional, preceitua acerca de seu prazo de validade; (3) a medida provisória é precária, porquanto pode ser infirmada a qualquer tempo, dentro do prazo estabelecido pela Constituição da República de 1988 (120 dias), pelo Congresso Nacional, diferente da lei, que a qualquer tempo, sem a estipulação de prazo para tanto, o parlamento poderá revogá-la; (4) a medida provisória não ratificada pelo Congresso Nacional perde sua eficácia retroativamente (ex tunc), já a lei quando revogada produz efeitos ex nunc, isto é, a partir de sua revogação para frente; (5) por derradeiro, a medida provisória está submetida a alguns pressupostos, como o de urgência e relevância, diferente da lei, cuja regulação de determinada matéria não necessita ser premente e essa regulação tem o condão de atribuir relevância jurídica à matéria regulada.
Assim, MELLO (2008, p. 131) arremata:
Em virtude do exposto, seria erro gravíssimo analisá-las [as medidas provisórias] como se fossem leis “expedidas pelo Executivo” e, em conseqüência, atribuir-lhes regime jurídico ou possibilidades normatizadoras equivalentes às das leis (coloquei os colchetes).
2.4 O art. 62 da CF/1988 alterada pela Emenda Constitucional nº 32 de 11 de setembro de 2001
A redação do caput, onde os requisitos formais de relevância e urgência estão albergados, é muito fluido e aberto, dando, em razão disto, enorme margem discricionária ao chefe do Executivo para definir o que seja relevante e urgente para a sociedade. O constituinte da EC 32/2001 não se preocupou em estabelecer elementos delimitadores, balizas para o conteúdo semântico dos pressupostos de cabimento da medida provisória, à semelhança do art. 167, § 3º da CF/1988, que utilizando, exemplificativamente, os termos guerra, comoção interna ou calamidade pública, acabou por delimitar a área de ponderação do que seja imprevisível e urgente.
O § 2º permite a instituição ou majoração de impostos por meio de medida provisória, só produzindo efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele ano em que foi editada. Ora, se a produção dos efeitos não é imediata, não há que se falar, portanto, em urgência do ato provisório. O constituinte reformador preocupado com as garantias da estrita legalidade e anterioridade tributárias (CF/1988, art. 150, I e III, b), acabou desnaturando o requisito de urgência da medida provisória.
O § 10 que, embora imponha restrições à reedição de medida provisória, peca ao permitir a reedição na sessão legislativa seguinte da medida provisória que tenha sido rejeitada. Ora, isto parece afrontar a vontade do parlamento, que já se posicionara contrariamente ao ato normativo excepcional. Assim, isto violaria o princípio da separação dos poderes.
Há contradição entre as redações dos § § 3º e 11, pois, não obstante no § 3º o Congresso Nacional ter o dever (pois se utiliza o verbo dever) de editar decreto legislativo disciplinando os atos e relações jurídicas decorrentes de medida provisória que perdeu eficácia, no § 11 é previsto hipótese da não edição do decreto legislativo.
Destarte, o constituinte reformador não andou tão bem ao confeccionar a Emenda Constitucional 32/2001.
2.5 O art. 59 da CF/1988
A redação do art. 59, V, da CF/1988 é equivocada ao dispor que o processo legislativo compreende a elaboração de medidas provisórias. Ora, a medida provisória em si, em que pese seja um ato com força de lei, não é fruto de processo legislativo, que necessariamente se desenvolve no âmbito do Poder Legislativo, mas sim a eventual lei que possa decorrer-lhe.
A medida provisória, a rigor, é resultado da vontade unilateral e do juízo de conveniência, oportunidade e necessidade do chefe do Poder Executivo. Esse ato com força de lei, na verdade, para além de antecipar efeitos jurídicos na vida social, tem o condão de desencadear o processo legislativo. Daí, tecnicamente falando, o correto é dizer procedimento elaborativo da medida provisória, de acordo com a lição de SILVA (2007).
A propósito, essa impropriedade redacional rendeu ácida crítica desse respeitado jurista (2007, pp. 524-525):
As medidas provisórias não constavam da enumeração do art. 59, como objeto do processo legislativo, e não tinham mesmo de constar, porque sua formação não se dá por processo legislativo. São simplesmente editadas pelo Presidente da República. A redação final da Constituição não as trazia nessa enumeração. Um gênio qualquer, de mau gosto, ignorante, e abusado, introduzi-as aí, indevidamente, entre a aprovação do texto final (portanto depois do dia 22.9.88) e a promulgação-publicação da Constituição no dia 5.10.88 (grifo no original).
2.6 Os pressupostos formais e materiais de cabimento
Os pressupostos formais de cabimento da medida provisória são a relevância e a urgência da matéria veiculada por meio desse ato com força de lei. Devem estar presentes cumulativamente, como se depreende da presença da conjunção aditiva e na redação do caput, do art. 62 da CF/1988.
O requisito de relevância pode ser entendido como a situação fática que possui repercussão na coletividade, que interessa e influi na vida de um número indeterminado de cidadãos, adquirindo status de interesse público. E o requisito de urgência pode ser compreendido como a situação fática que exige rapidez, celeridade e eficiência em sua apreciação, atendimento, pois, ao revés, com o decurso do tempo, poderá causar prejuízos, perecimentos de difícil ou irreversível reparação.
Acerca disso, posiciona-se MELLO (2008, pp. 131-132):
(...) nem a lei nem a Constituição têm palavras inúteis – há de se entender que a menção do art. 62 à “relevância” implicou atribuir uma especial qualificação à natureza do interesse cuja ocorrência enseja a utilização de medida provisória. É certo, pois, que só ante casos graves, ante interesses invulgarmente importantes, justifica-se a adoção de medidas provisórias. Isto, entretanto, não é o suficiente para o cabimento delas. Cumpre, ademais, que a cura de tal interesse deva ser feita sem retardamento algum, à falta do quê a sociedade expor-se-ia a sérios riscos ou danos. Em suma: é preciso que exista a “urgência” a que alude o art. 62 (grifo no original)
Quanto aos pressupostos materiais de cabimento da medida provisória, também chamados de vedações ou limitações materiais, são elencados no § 1º, I, a, b, c, d, II, III, IV, do art. 62 da CF/1988. Outrossim, há a vedação do art. 246 da CF, segundo a qual é proibida a edição de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação da Emenda nº 32 de 11 de setembro de 2001. Cumpre não olvidar que essas são as vedações expressas, existindo as não-expressas ou implícitas, decorrentes do sistema jurídico-constitucional, a exemplo da vedação de toda e qualquer medida provisória que importe em retrocesso dos direitos humanos fundamentais e vedação de matérias de competência exclusiva ou privativa dos outros Poderes.
Assim, o que não é proibido, expressa ou implicitamente, é permitido ser objeto de regulação de medida provisória.
2.7 A tramitação legislativa
A tramitação no Congresso Nacional da medida provisória é regulada pelo art. 62 da CF/1988 e complementada pela Resolução 1 de 2002 do Congresso Nacional.
Expedida a medida provisória pelo chefe do Executivo, produzirá efeitos a partir da sua publicação no diário oficial da União, marco da contagem do prazo de validade de sessenta dias, prorrogável uma única vez pelo mesmo período. É submetida de imediato ao crivo do Congresso Nacional, que por meio de uma comissão mista de deputados e senadores, emitirá parecer acerca do atendimento ou não aos pressupostos formais e materiais de cabimento e da adequação financeiro-orçamentária, e, posteriormente, da conveniência, oportunidade e necessidade (mérito) da matéria veiculada. Vale anotar que mesmo quando um dos pressupostos ou condições não é atendido, sempre terá que haver análise do mérito do ato provisório.
Constatado os pressupostos formais e materiais e as condições, e sendo decidido por sua conveniência, oportunidade e necessidade, a comissão mista apresentará projeto de lei de conversão.
Remete-se, então, o parecer e o projeto de lei de conversão para a deliberação e votação – em sessões separadas – pelo plenário de cada uma das Casas Legislativas, iniciando pela Câmara dos Deputados, funcionando o Senado Federal sempre como casa revisora. A votação será por maioria simples, isto é, pelos votos da maioria dos presentes na sessão. Assim, a medida provisória poderá ser convertida em lei ordinária. Cumpre salientar que o texto do ato provisório poderá receber emendas, quer dizer, alterações, contanto que guardem pertinência temática com o objeto de regulação, evitando-se que assuntos totalmente desconexos, postos por parlamentares oportunistas, sejam insertos na legislação de urgência para serem aprovados e, consequentemente, convertidos em lei.
O plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional não está adstrito às conclusões do parecer da comissão mista, ou seja, mesmo que o referido parecer consigne a conversão da medida provisória em lei ordinária, não obriga os deputados e senadores a se posicionarem desta maneira, e vice-versa.
O prazo de validade é de sessenta dias, suspendendo-se durante os períodos de recesso parlamentar. Se não houver apreciação até o 45º (quadragésimo quinto) dia contado da publicação no diário oficial da União, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Parlamento pátrio, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. Se os quinze dias restantes não forem suficientes para a votação em ambas as Casas legislativas, prorrogar-se-á, automaticamente, uma única vez por mais sessenta dias a sua eficácia.
Aprovado integralmente o projeto de lei de conversão, o Presidente da mesa do Congresso Nacional – Presidente do Senado – promulgará e publicará a lei no diário oficial da União. Obviamente, não é remetido para a sanção ou veto do Presidente da República, porquanto o conteúdo do projeto de lei aprovado é o mesmo da medida provisória expedida. Então, torna-se prescindível pedir a chancela do Presidente da República para um ato de sua autoria.
Se o projeto de lei de conversão trouxer qualquer alteração na redação originária da medida provisória, terá que passar pelo crivo do Presidente da República, que em caso de sanção, promulgará e publicará a lei. Em caso de veto, terá que fundamentar em ilegalidade ou inconstitucionalidade – veto jurídico – ou na falta de conveniência e oportunidade em relação ao interesse público – veto político –, podendo ser derrubado pelo Congresso Nacional, pelo voto da maioria absoluta de seus membros (CF, art. 66).
Na hipótese de proposta de emenda no Senado Federal, que funciona como casa revisora, ao projeto de lei de conversão aprovado pela Câmara dos Deputados, o mesmo voltará à casa iniciadora, a qual poderá anuir ou não à emenda (CF, art. 65). Depois disto, remeter-se-á ao Presidente da República.
Outra hipótese refere-se à rejeição do projeto de lei em qualquer das Casas Legislativas, ocorrendo, desta forma, arquivamento.
Por fim, poderá ocorrer rejeição tácita do projeto de lei de conversão, na hipótese de decurso dos cento e vinte dias sem ter encerrado as deliberações e votações em ambas as Casas parlamentares. Isto ocorrendo, pela redação do § 3º, do art. 62 da CF, o Congresso Nacional deveria em sessenta dias, por meio de decreto legislativo, disciplinar as relações jurídicas decorrentes do ato provisório que perdeu eficácia.
No entanto, como já observado alhures, pela dicção do § 11, do art. 62 da CF, chega-se à conclusão de que a emissão desse decreto legislativo não é obrigatória, mas uma faculdade do Parlamento, haja vista, em atenção ao princípio da segurança jurídica, na eventualidade desse decreto legislativo não ser expedido, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a eficácia da medida provisória conservar-se-ão por ela regida. É, portanto, um caso de ultratividade de ato normativo que perdeu sua eficácia, restrito, todavia, às relações jurídicas engendradas à época da produção de seus efeitos.
Nesse momento, parece oportuno dizer o que é o decreto legislativo. Para tanto, traz-se o magistério de PONTES DE MIRANDA (apud CARVALHO, 2008, p. 1.050), segundo o qual os decretos legislativos são “as leis que a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para a sanção (promulgação ou veto)”. Conjugado a isto, pontifica SILVA (2007, p. 525): são “atos destinados a regularem matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49) que tenham efeitos externos a ele; independem de sanção e de veto.”
Nos casos de aprovação com emendas do projeto de lei de conversão ou de rejeição expressa ou tácita, portanto, qualquer alteração nos termos iniciais de regulação da medida provisória devem ser, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, disciplinados por decreto legislativo dentro de sessenta dias a contar da data da alteração. Caso esse decreto não seja expedido, ocorrerá ultratividade da totalidade ou da parte alterada da medida provisória apenas para aqueles atos e relações jurídicas surgidos quando de sua vigência.
Nesse passo é até incoerente o constituinte reformador ter utilizado a palavra devendo disciplinar por decreto legislativo, se alhures prevê a hipótese de que esse ato normativo pode não ser editado dentro de sessenta dias.
3 A medida provisória como instrumento de governabilidade
3.1 Giovanni Sartori e as formas de governo: presidencialismo, parlamentarismo e semipresidencialismo
Cada forma de governo ou sistema político apresenta uma lógica sistêmica própria, específica, ou seja, o presidencialismo, o parlamentarismo e o semipresidencialismo apresentam características peculiares, que, inevitavelmente, conjugado às circunstâncias histórico-sociais de cada país, sofrem adaptações e acréscimos de outros elementos. Estes, por si só, não são capazes ou não têm o condão de desnaturar a essência de cada forma de governo (SARTORI, 1996).
O predomínio do parlamentarismo na Europa e do presidencialismo na América é explicado por razões históricas:
Na Europa não há regimes presidencialistas puros, como os encontramos no continente americano, do Canadá para o Sul, e isto não por uma escolha deliberada, mas por razões históricas. Quando os Estados europeus começaram a praticar o governo constitucional, todos eles (exceto a França, que se tornou uma república em 1870) eram monarquias; e as monarquias já têm um chefe de Estado hereditário. Mas, enquanto na Europa não havia espaço (pelo menos até 1919) para os presidentes eleitos, no Novo Mundo quase todos os Estados chegaram à independência como repúblicas (o Brasil e, de certo modo, o México, foram as exceções temporárias) e, portanto, precisavam eleger os chefes de Estado, isto é, seus presidentes. (SARTORI, 1996, p. 100)
A forma de governo presidencialista, cujo protótipo são os Estados Unidos da América, é – segundo SARTORI (1996) – identificado e definido pelos seguintes elementos: 1) existência de eleição popular, direta ou análoga, para escolher o chefe de Estado, com um mandato prefixado, 2) o governo ou o executivo não é nomeado ou demitido por votação parlamentar. A formação e alteração da composição do governo é prerrogativa do presidente, que tem discricionariedade para isso, 3) o governo é dirigido pelo presidente, em cujas mãos ficam a incumbência do exercício da função executiva ou administrativa, 4) há clara separação das funções executiva e legislativa, e 5) os chefes de Estado e de governo confundem-se na pessoa do presidente.
O grande problema desse sistema político – ensina SARTORI (1996) – é quanto à enorme propensão ou tendência de gerar impasses e paralisações na condução das políticas de governo e, por conseguinte, nas políticas públicas que dependam de regulação legislativa, pois, em tese, não garante maioria no parlamento para o presidente. Em suma, geraria total ingovernabilidade, cuja maior vítima disto seria a população, que se veria em meio ao caos generalizado na falta de atendimento aos seus anseios e necessidades, em razão da constante falta de entendimento entre o executivo e o legislativo.
Já a forma de governo parlamentarista, cujo protótipo é a Inglaterra, tem como características definidoras, de acordo com SARTORI (1996): 1) o parlamento é soberano, 2) o governo ou executivo é nomeado e demitido por votação parlamentar, 3) não há separação clara entre as funções executiva e legislativa, e 4) há clara separação entre as chefias de Estado e governo, ficando a primeira a cargo do monarca e a segunda do primeiro-ministro.
Ao revés do presidencialismo, o parlamentarismo teria como premissa lógica o apoio da maioria no parlamento para a condução do governo por parte do gabinete de ministros, sob a liderança de um primeiro-ministro, gerando, tendencialmente e, por consequência, governabilidade, haja vista haver diálogo e consenso entre o executivo e o legislativo.
Por fim, a forma de governo semipresidencialista, cujo protótipo imediato seria a Quinta República francesa, apresenta as seguintes características definidoras: 1) o governo ou executivo é dirigido por uma autoridade executiva bicéfala (ou de duas cabeças), pois há a presença de um presidente e de um primeiro-ministro, 2) partilha da função executiva entre o presidente e o primeiro-ministro, este tendo que garantir a interlocução e maioria no parlamento, 3) a legitimidade do presidente advém diretamente do povo, que o escolhe por meio de escrutínio, enquanto a legitimidade do primeiro-ministro advém diretamente do parlamento e indiretamente do povo, o qual elege o parlamento (SARTORI, 1996).
A lógica sistêmica do semipresidencialismo é muito interessante. SARTORI (1996) defende a ideia de uma oscilação de preponderância entre o presidente e o primeiro-ministro da seguinte forma: se o presidente tiver o apoio da maioria no parlamento, ele preponderará na condução do País, por outro lado, se não tiver, neste caso, preponderará o primeiro-ministro:
Minha interpretação, portanto, é que o semipresidencialismo francês se desenvolveu em um autêntico sistema misto, baseado numa estrutura de dupla autoridade flexível – isto é, um poder executivo bicéfalo, cuja “cabeça principal” muda (oscila) à medida que mudam as combinações das maiorias. Com uma maioria unificada, o presidente predomina de forma decisiva sobre o primeiro-ministro (...). Inversa e alternativamente, com uma maioria dividida, quem predomina é o primeiro-ministro, apoiado pela sua própria maioria parlamentar (...). (SARTORI, 1996, p. 139, grifos no original)
E alhures, SARTORI (1996, p. 140) observa:
(...) deve-se reconhecer que nessa fórmula o problema das maiorias divididas encontra uma solução “pela mudança de cabeça”, reforçando a autoridade de quem tiver a maioria. Esta é uma peça brilhante, embora não planejada, de feitiçaria constitucional.
Garantindo, em tese, sempre governabilidade.
3.2 A forma de governo presidencialista do Brasil
Tudo se encaminhava para o Brasil na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, que promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, adotar a forma parlamentarista de governo, semelhante a Itália. Entretanto, ao apagar das luzes, a Constituinte optou pelo presidencialismo, talvez em razão de nossa longa tradição, desde a proclamação da República em 1989, por essa forma de governo.
Não é por acaso que a nossa medida provisória é muito semelhante ao decretilegge da Constituição da Itália de 1947, em seu art. 77, cuja forma de governo é o parlamentarismo. (SZKLAROWSKY, janeiro/2005 e junho/2005).
O cientista político italiano SARTORI (1996), leciona que a pior forma de governo seria a presidencialista, pois, em síntese, não garantiria a maioria no Parlamento, ao contrário do parlamentarismo e do semipresidencialismo.
Assim, o Presidente da República teria muitos óbices e empecilhos para concretizar suas políticas de governo que precisariam antes de regulação do parlamento, criando-se um estado de total ingovernabilidade, impasses e ausência de diálogo entre Executivo e Legislativo.
Interessante notar que na Itália, em razão do parlamentarismo, a eventual rejeição expressa ou tácita (por decurso de prazo) do decretilegge pelo Parlamento, acarreta, por conseguinte, a responsabilidade do Primeiro-Ministro por ter decidido editar o referido ato normativo, podendo vir até a perder o cargo, pois não teria mais o apoio da maioria de seus pares, ao contrário do Brasil, que, em virtude do presidencialismo, o Presidente da República não será responsabilizado com a perda do cargo pela eventual não conversão em lei da sua medida provisória.
Embora o Estado brasileiro adote a forma presidencialista de governo, na prática não se verifica esse estado de total ingovernabilidade e falta de diálogo entre Executivo e Legislativo propugnada por SARTORI (1996). Este cientista político estuda o sistema presidencialista de governo de forma abstrata, descolada da realidade. Não se atenta para as idiossincrasias e peculiaridades de cada país que, inevitavelmente, aderem-se às características específicas do presidencialismo, dando resultado a uma conformação senão original, mas própria daquele Estado adotante dessa forma de governo.
Nesse sentido, nossa forma de governo é intitulada – por ABRANCHES (apud SAMPAIO, 2007) – de presidencialismo de coalizão, caracterizado pela formação de uma base aliada de governo no Parlamento, sob a liderança do Presidente da República, constituída por vários partidos, muitas vezes, com ideologias antagônicas, mas que se juntam, oferecendo apoio e auxílio ao partido do Presidente da República em troca de funções de direção e gestão no executivo – ministérios, autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista –, e liberação de verbas públicas.
SAMPAIO (2007, p. 127) leciona:
Pode-se definir presidencialismo de coalizão como o sistema presidencial de governo em que a governabilidade se dá pela formação de uma coalizão parlamentar mais ampla que o partido do presidente, servindo de apoio às políticas governamentais, o que é refletido na distribuição das pastas ministeriais e no exercício do poder de agenda legislativa pela presidência da República. A mecânica do presidencialismo de coalizão mitiga a separação de poderes típica do sistema presidencial de governo, afastando, em conseqüência, a inoperância que lhe é vista como característica (grifos no original).
Salienta-se o poder de agenda legislativa mencionado acima como uma das importantes características do presidencialismo de coalizão, consistindo na capacidade do chefe do Executivo de determinar e definir quais e quando as matérias de seu interesse serão objeto de regulação pelo Legislativo. Nesta linha, SAMPAIO (2007, p. 129) aduz:
Por obviedade, sabe-se que tem o termo agenda relação com compromissos e momento em que são eles assumidos e cumpridos. Assim, para a Ciência Política, é ele definido como a capacidade de determinar não somente quais propostas serão consideradas pelo congresso nacional, mas também quando o serão, o que indica serem os poderes legislativos do presidente determinantes de seu funcionamento, já que se trata de meios que servem à influência do processo legislativo (grifos no original).
À luz disso, observa-se que a medida provisória se apresenta como mais um instrumento de governabilidade, ao lado da oferta de funções de direção no Executivo e verbas públicas, à disposição do chefe do Executivo, ao possibilitar e permitir levar ao Congresso Nacional as matérias de seu interesse quando lhe parecer mais conveniente e oportuno ao atendimento das necessidades e interesse público, forçando o parlamento a apreciar e votar, pois, segundo o art. 62, § 6º da CF/1988:
Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.
Conjugado a isto, preceitua o § 7º do mesmo artigo que “Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional.”
Conforme MORAES (2007), mesmo prorrogada a vigência da medida provisória por mais sessenta dias, totalizando cento e vinte dias, com o fim específico de se encerrar a votação em ambas as Casas do Congresso Nacional, isto não afasta o regime de urgência e sobrestamento das demais discussões legislativas na Casa em que estiver tramitando.
Portanto, o regime jurídico-constitucional da medida provisória dada pela Emenda Constitucional 32/2001, confere ao chefe do Executivo a participação na formação da agenda política do Parlamento, trancando a pauta legislativa caso as matérias de seu interesse veiculadas pelos atos provisórios não sejam apreciadas em até quarenta e cinco dias de sua publicação.
Registra-se que, conforme os § § 7º e 8º, do art. 57 da CF/1988, a sessão legislativa extraordinária somente deliberará sobre matéria para qual foi convocada, ressalvada a hipótese de haver medidas provisórias em vigor na data da convocação extraordinária, as quais deverão entrar na pauta de discussões e votações.
Demonstra-se, assim, a dimensão e a importância dispensada à legislação de urgência conferida ao Presidente da República, a fim de que em casos reputados relevantes e urgentes, que exijam atitude célere e eficiente, possa editar atos normativos, com força de lei, sem previamente passar pelo procedimento naturalmente moroso e formalista do Legislativo.
Com efeito, a medida provisória é um relevante instrumento de governabilidade ao investir o chefe do Executivo do poder de agenda legislativa, além de possibilitá-lo atender de maneira expedita e premente as necessidades públicas.
Seguindo essa trilha, o estado de governabilidade assegurado pela medida provisória, levou o ex-Ministro da Justiça e advogado – Márcio Thomaz Bastos – a afirmar: “Acho que não dá para governar sem medida provisória. O que dá é caminhar na direção do disciplinamento, de modo que você possa construir um arcabouço de instituições, passar a usar menos, diminuindo progressivamente.” (apud SZKLAROWSKY, 2003, p. 3).
A propósito, desde a EC 32 de 11.09.2001 até hoje (30/09/2012), de um total de 582 (quinhentas e oitenta e duas) medidas provisórias editadas, 446 (quatrocentas e quarenta e seis) foram convertidas em lei, quer dizer, de um universo de 100%, 76,63% dos atos provisórios foram convertidos em lei.
Assim, ao contrário do que assevera SARTORI (1996), o presidencialismo, pelo menos o brasileiro, não gera ingovernabilidade, haja vista haverem instrumentos, como a medida provisória, asseguradores ao Presidente da República da governabilidade necessária para agir conforme os ditames do art. 37, caput, da CF/1988. Em outras palavras, atuar dentro da 1) legalidade, pois a medida provisória é uma lei em sentido material, 2) publicidade, porque a ciência da sua existência, validade e eficácia à sociedade é dada mediante a publicação no Diário Oficial da União, 3) impessoalidade, porquanto não visa criar privilégios ou prejuízos torpes e execráveis para determinados indivíduos, 4) moralidade, haja vista buscar o atendimento das necessidades e interesse público, e 5) eficiência, pois é uma forma de superar a morosidade do processo legislativo diante de casos considerados importantes e prementes para o bem-estar da coletividade.
Por derradeiro, arremata-se com SZKLAROWSKY (2003, p. 19) quando observa, com pertinência, que “O Estado moderno não pode prescindir de certos instrumentos que lhe dê agilidade bastante, para a realização de atividades que não possam aguardar o desenlace moroso da via normal.”
4 A medida provisória como instrumento de usurpação da função legiferante
4.1 O princípio da separação dos poderes
Embora na idade antiga já se falasse alguma coisa sobre a separação dos poderes do Estado, o princípio da separação ou divisão dos poderes ou funções estatais começou efetivamente a ser desenhado no século XVII pelas mãos do inglês John Locke, o qual pregava a necessidade de se dividir as funções estatais de legislar e administrar entre dois órgãos distintos, quais sejam: o parlamento, incumbido de legislar, e o rei, incumbido de administrar e também de julgar (SAMPAIO, 2007).
O referido princípio atingiu o ápice no século XVIII, com a construção teórica do francês Charles de Montesquieu, que, baseado em Locke, defendeu essa divisão de funções não apenas entre dois órgãos distintos, mas entre três, a saber: o parlamento, o rei e o juiz, que teriam, respectivamente, as funções de legislar, administrar e julgar (SAMPAIO, 2007).
Buscava-se, então, com a separação dos poderes, seja em Locke e posteriormente em Montesquieu, limitar e conter o imenso poder concentrado e conferido aos reis no Estado moderno-absolutista. Reza a lenda que uma vez Luís XIV, rei da França, pronunciou a célebre frase, símbolo deste período: “L'État c'est moi” (“O Estado sou eu”).
Nessa perspectiva, a ingerência na vida privada dos súditos e as arbitrariedades perpetradas eram muito grandes. A rigor, o Estado era mais importante do que os súditos. Estes viviam em função daquele.
A divisão dos poderes criaria limites ao poder concentrado nas mãos do monarca, evitando os abusos. Não é outra a conclusão de ROCHA (apud ABRAMOVAY, 2007, p. 1): “a separação de Poderes existe justamente para evitar o abuso de poder por meio de ‘controle do exercício do poder’ por outro Poder.”
Surge, então, o Estado liberal pugnando um Estado não-intervencionista e minimalista, contido pela separação rígida de poderes e por uma carta de liberdades individuais fundamentais consignadas numa lei fundamental do Estado, chamada de Constituição.
4.2 O princípio da separação dos poderes e o Estado brasileiro
Desde sua criação com a Constituição Federal de 1988, não raras vezes a medida provisória foi utilizada abusivamente, para não dizer inconstitucionalmente, pois, não é incomum, que os pressupostos constitucionais de relevância e urgência não sejam respeitados. Isto é um típico caso de inconstitucionalidade formal (SILVA, 2007), pois, não obstante esteja expressamente consignado na Carta Constitucional de 1988, não é observado, transformando a redação do dispositivo constitucional em verdadeira letra morta, que tanto o Poder legislativo quanto o Poder Judiciário fazem vista grossa.
À luz disso, desde 1988 até agora (30/09/2012) foram expedidas 6.692 (seis mil, seiscentos e noventa e duas) medidas provisórias. O que deveria, em tese, ser um ato normativo excepcional e de urgência, na prática, banalizou-se. O que deveria ser exceção passa a ser regra. É justamente nesta banalização que reside a abusividade e, por conseguinte, a inconstitucionalidade da expedição de tantos atos provisórios, uma vez que a função de legislar não é típica do autor desses dos mesmos.
A utilização da medida provisória em si não é inconstitucional, pelo contrário, é um dever-poder outorgado pela Constituição da República diretamente ao chefe do Executivo. A inconstitucionalidade reside na utilização abusiva e em excesso, sem se atentar para os requisitos e condições preceituados constitucionalmente.
Não se olvide que a utilização da expressão dever-poder não é por acaso. Comumente os operadores do direito utilizam-na com as palavras invertidas, ou seja, poder-dever, entretanto, seguindo integralmente lição de MELLO (2008, pp. 97-98), reputa-se técnico-juridicamente melhor falar em dever-poder na medida em que o poder dispensado à administração pública pelo ordenamento jurídico relativo à medida provisória é instrumento do dever de atender as necessidades coletivas e o interesse público. Observa-se, assim, que o poder está em função do dever e não ao revés.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal, apreciando a constitucionalidade (ADI 4029) de medida provisória convertida em lei relativa à criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da biodiversidade (ICMBio), advertiu o Executivo sobre o óbvio, isto é, a obrigatoriedade da passagem das medidas provisórias por uma comissão mista de deputados e senadores, consoante previsto no art. 62, § 9º da CF, posto ter se constatado que há muito isto não estava ocorrendo devido a dispositivos inconstitucionais da Resolução 1/2002 (regula a tramitação das MPs) do Congresso Nacional, gerando inconstitucionalidade formal dos atos provisórios. Todavia, por razões de segurança jurídica e relevante interesse social, não se pronunciou a inconstitucionalidade, convalidando-se, assim, todas as medidas provisórias que não observaram a regra contida no § 9º, do art. 62, registrando, em contrapartida, que a partir da referida decisão a Corte Suprema não terá condescendência aos atos provisórios não analisados por comissão mista de deputados e senadores.
O excesso de medidas provisórias acarreta o trancamento permanente da pauta de discussões e votações do parlamento, na medida em que, segundo o art, 62, § 6º da CF, se até o 45º dia de publicação da medida provisória não houver se ultimado a votação, o Congresso Nacional entrará em regime de urgência e sobrestamento de suas matérias até que isto ocorra. Destarte, há claro engessamento do parlamento ao obrigá-lo a deixar de lado suas matérias em prol das matérias veiculadas pelo Executivo.
O Legislativo, quiçá por questões político-partidárias, passa uma venda em seus olhos. Não realiza o controle político que lhe é acometido pela Constituição da República de 1988 (art. 62, § 5º). O Judiciário, sobretudo o STF, nega-se, na maioria dos casos que bate à sua porta, a realizar o controle judicial, quer dizer, a análise de constitucionalidade sob o pretexto de que estaria adentrando o mérito administrativo, consistente na conveniência e oportunidade da matéria regulada, olvidando-se de que é o guardião da Constituição da República (CF/88, art. 102, caput), em que pese (justiça seja feita) isto paulatinamente esteja mudando no sentido da Excelsa Corte não se furtar de seus deveres constitucionais, já tendo apreciado e censurado MPs que revelaram ser abusivas ou desviantes de suas finalidades constitucionais.
O Ministério Público (CF/88, art. 127, caput) e a Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994, art. 44, I) olvidam-se de seu múnus público de defensores da ordem jurídica, do Estado democrático e social de direito e dos direitos humanos fundamentais, pois, não raro, essas medidas provisórias causam lesão ou ameaça a direito, a exemplo do ocorrido no famigerado governo Fernando Collor de Mello, que confiscou ativos financeiros da população, não devendo, por isto, ser afastado da apreciação do Poder Judiciário (CF/88, art. 5º, XXXV).
Não se nega a discricionariedade existente na apreciação dos requisitos constitucionais de relevância e urgência, mas ela não é e não deve ser ilimitada, ficando ao bel-prazer do administrador. Essa apreciação deve ficar circunscrita aos ditames e parâmetros constitucionais, porque, caso contrário, estar-se-á desnaturando o sentido constitucional do instituto da medida provisória, colocando-se à disposição do chefe do Executivo um poder autoritário e arbitrário.
Interessante a proposta de AMARAL (2004, p. 3) ao relacionar a relevância com o fumus boni iuris e a urgência com o periculum in mora. Para este autor, a
relevância no seu sentido legal refere-se à determinada situação em que haja um bem jurídico – público ou particular – de valor considerável e que necessite de disciplinamento regular ou de proteção quando se ache em iminente perigo.
Ou em outras palavras, também se tem entendido que relevância importa no reconhecimento de uma situação de real importância dentro da sociedade em qualquer de seus campos – político, social ou econômico – que precisa ser imediatamente normatizada sob pena de grave convulsão ou desequilíbrio da própria estrutura social (grifos no original).
E a urgência “diz respeito àquela situação de fato, ocorrente na sociedade que, pelas suas características, demanda uma resposta imediata, rápida, sem demora, a fim de que o bem jurídico particular ou público não venha a sofrer colapso imediato ou, mesmo, perecimento” (AMARAL, p. 4, grifos no original).
Essa noção conceitual do que seja a relevância e a urgência para a ordem jurídico-constitucional nada mais é do que a explicitação da vontade do constituinte originário, restringindo, assim, bastante a discricionariedade presidencial na apreciação dos pressupostos formais da medida provisória da Carta Magna de 1988.
Se não for comprovada a presença cumulativa do fumus boni iuris ou relevância e do periculum in mora ou urgência, a medida provisória padece do vício de inconstitucionalidade formal, devendo, portanto, ser fulminada pelo Legislativo (CF/1988, art. 62, §5º) e/ou Judiciário, quando este é provocado para realizar o controle difuso ou concentrado de constitucionalidade. Exemplo de situação fática que deixa saltar aos olhos a presença dos requisitos de relevância e urgência são os desastres e calamidades públicas, como as enchentes que assolam alguns Estados-membros.
O Congresso Nacional poderia por meio de emenda à Constituição conter a ampla discricionariedade do chefe do Executivo ao conferir densidade normativa aos termos relevância e urgência mediante a aposição de expressões-vetores na redação do caput do art. 62 da CF, à semelhança do § 3º, art. 167, também da CF. Este dispositivo através das expressões-vetores guerra, comoção interna e calamidade pública delimita e reduz o campo ponderativo dos termos imprevisíveis e urgentes, que, indubitavelmente, teriam campo de interpretação/aplicação tão amplo quanto o dos termos relevância e urgência do caput do art. 62 sem as indigitadas expressões-vetores. Sobre o assunto, o STF já se manifestou neste sentido para efeito de reconhecimento de inconstitucionalidade de medida provisória:
Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura de crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre com os requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões “guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública” constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “d”, da Constituição. “Guerra”, “comoção interna” e “calamidade pública” são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n. 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n. 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. (ADI/MC 4.048, Min. Rel. Gilmar Mendes, DJ 22.08.2008).
Outrossim, o art. 62, § 5º, da CF/88, deixa bem claro pela simples leitura, a distinção entre os pressupostos constitucionais de relevância e urgência e o mérito administrativo da matéria veiculada pela medida provisória, derrubando, desta maneira, a tese daqueles que afirmam que não cabe ao Judiciário, ao Ministério Público ou a Ordem dos Advogados do Brasil verificar a presença ou não cumulativa de relevância e urgência, pois estariam imiscuindo-se indevidamente na conveniência e oportunidade da matéria – mérito administrativo – veiculada, cuja área é restrita ao chefe do Poder Executivo.
O Presidente da República ao editar medidas de urgência despidas de suas formalidades constitucionais, tomando arbitrariamente para si a atribuição legiferante, viola princípio basilar da Constituição, qual seja, a separação dos poderes (CF/88, arts. 2º e 60, § 4º, III), que inclusive, cumpre assinalar, recebe proteção reforçada do constituinte de 1988 ao ser elencada como uma das cláusulas pétreas no art. 60, § 4º, III.
A propósito, o art. 16º da Declaração Francesa de 1789 é bastante enfático: “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (grifei). Em outras palavras, o cerne da Constituição consistiria na previsão de direitos e garantias fundamentais e na separação dos poderes estatais.
Com efeito, o Legislativo, Judiciário, Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil não devem se furtar da sua responsabilidade dentro do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), com vistas a resguardar a majestade da Lei Fundamental de 1988, evitando a usurpação da função legiferante pelo Poder Executivo.
Só assim o Legislativo deixará de ser um mero convalidador das vontades unilaterais do Presidente da República, que, às vezes, não representa o interesse da coletividade, mas apenas interesses escusos político-partidários, restaurando a sua natureza de palco privilegiado de discussões e debates acerca dos mais variados assuntos de ressonância nacional.
O uso abusivo e inconstitucional do ato provisório provoca o trancamento da pauta do legislativo, transformando-o em “um mero aprovador de sua vontade [do Presidente da República] ou um poder emasculado cuja competência a posteriori viraria mera fachada por ocultar a possibilidade ilimitada do Executivo impor, intermitentemente, as suas decisões”. (FERRAZ JR apud MORAES, 2009, p. 673, coloquei colchetes)
4 Conclusão
Procurou-se demonstrar neste trabalho que o instituto jurídico-constitucional da medida provisória pode ter duas caras: de um imprescindível instrumento de governabilidade ou de um instrumento perigoso de usurpação da função legiferante.
Como instrumento de governabilidade, a medida provisória é relevante para o funcionamento de nosso presidencialismo de coalizão, pois, não obstante a tese de ingovernabilidade e impasses que essa forma de governo geraria, permite ao chefe do Executivo levar ao Congresso Nacional as matérias de seu interesse e que são reputadas relevantes e urgentes para a sociedade, forçando-o a apreciar e votar num curto lapso de tempo. Assim, garante uma atitude expedita e eficiente do gestor público diante de situações fáticas consideradas importantes para a ordem e paz sociais e que não comportam impasses entre Executivo e Legislativo e tampouco a natural demora do processo legislativo para serem reguladas, sob pena de perecimento do interesse público.
Em contrapartida, a medida provisória como instrumento de usurpação da função legiferante se revela quando é expedida sem observar os requisitos e condições constitucionais.
O que separa uma cara da outra ou faz preponderar uma em relação à outra é o atendimento rigoroso ou não dos preceitos da Constituição da República de 1988 por parte do chefe do Executivo.
Enfim, a meu ver, a medida provisória é na sua ratio essenci um instituto jurídico a permitir o bom funcionamento de nosso sistema de governo presidencialista de coalizão e o atendimento de necessidades públicas prementes que, apesar de exigirem normatização, não admitem as delongas naturais do processo legislativo, sob pena de perecerem irreversivelmente ou de difícil reversão. No entanto, essa ratio essenci é desnaturada, desvirtuada quando manejada de maneira abusiva, quer dizer, em desacordo às finalidades constitucionais para as quais foi concebida.
5 Referências bibliográficas
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Bolsista do PROUNI (2006-2010). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará - CESUPA (2010). Advogado OAB/PA nº 16.568. Aprovado e classificado no Concurso 01/2012 para procurador municipal de Belém da Secretaria de Meio ambiente.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Wecsley dos Santos. A medida provisória: instituto jurídico-constitucional de duas caras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2012, 15:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/31695/a-medida-provisoria-instituto-juridico-constitucional-de-duas-caras. Acesso em: 23 dez 2024.
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