SUMÁRIO: 1. Embriaguez e criminalidade. 2. A importância dos princípios constitucionais no Estado Democrático de Direito. 3. Direito Penal: conceito, objetivos e princípios: 3.1. Princípio do nullum crimen sine conducta; 3.2. Princípio do nullum crimen sine culpa. 4. Embriaguez e imputabilidade penal. 5. A teoria da actio libera in causa: 5.1. Conceito e elementos; 5.2. Direito comparado; 5.3. Justificativas; 5.4. Artigo 28, inciso II, do Código Penal brasileiro: uma hipótese de responsabilidade penal objetiva?; 5.5. Críticas à teoria; 5.6. Alternativas apresentadas pela doutrina moderna. 6. Considerações finais. 7. Referências.
RESUMO: O direito penal se preocupou com a embriaguez principalmente pela sua influência comportamental negativa. Todavia, a intoxicação alcoólica pode ocorrer em grau tão elevado que retire da pessoa a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Este trabalho tem o objetivo de analisar as implicações da embriaguez na imputabilidade penal, com destaque para a teoria da actio libera in causa.
ABSTRACT: The penal law worried mainly about inebriety for its negative behavioural influence. Though, the alcoholic intoxication can happen in such high degree that it can remove from a person the capacity to understand the illicit character of a fact or guide himself according to that understanding. This work has the purpose of analyzing the implications of inebriety in the penal imputability, emphasizing the theory of actio libera in causa.
1. Embriaguez e criminalidade.
É estreito o laço existente entre o consumo de álcool e a prática de delitos. Não que aquele seja a causa única e principal da criminalidade. Mas os efeitos do etanol têm o condão de aumentar as estatísticas de práticas de atos que atentem contra os valores mais caros da vida em comum.
Ao que parece, o consumo de álcool é quase tão antigo quanto a própria humanidade. “Tártaros, egípcios, chineses, gregos, romanos, astecas, polinésios, todas as civilizações e povos antigos sabiam como fabricar bebidas alcoólicas” (BARSA, 1980, v. 4, p. 15). Hoje, o uso de bebidas alcoólicas é um costume arraigado ao cotidiano de quase todas as culturas modernas.
Por outro lado, os problemas advindos do abuso do álcool também acompanham-no desde o início de sua história.
Se gregos e romanos, v.g., apreciavam o vinho e a cerveja, também censuraram a embriaguez. Da mesma forma, a Bíblia nos traz a história da embriaguez de Noé (Gênesis, 9:20-27). Por esse ou por outros motivos, durante a Idade Média o alcoolismo era condenado pela Igreja (HISTÓRIA DO ÁLCOOL).
A embriaguez é definida como a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool.
Agudo, para a medicina, diz-se da doença de curso grave e rápido (RIOS, 2007, p. 359). Portanto, a embriaguez é uma intoxicação intensa, cujos efeitos são passageiros.
A embriaguez manifesta-se em três fases, as quais, entretanto, não contam com limites precisos entre si.
Na fase da excitação, caracterizada por um afrouxamento dos freios morais, a pessoa ainda tem consciência, mas apresenta diminuição da capacidade de autocrítica e julgamento, vivacidade motora, desinibição, euforia e loquacidade (ou tristeza, noutros casos), lentidão nos reflexos e baixa capacidade de concentração. Os principais sinais clínicos são dilatação das pupilas, umidificação da pele e aceleração da respiração e do pulso (FRANÇA, 1978, p. 3; JESUS, 2003, p. 509; SILVA, 2004, p. 56).
Na segunda fase, a da depressão ou da confusão, o ébrio pode sofrer falta de coordenação motora, confusão mental, irritabilidade, disartria (voz pastosa, dificuldade para articular as palavras), visão dupla, zumbido nos ouvidos, comprometimento na memória e até mesmo ilusões. Andar em linha reta ou permanecer em pé, equilibrado, de olhos fechados, são tarefas deveras difíceis. É normalmente na fase da confusão que o bêbado apresenta as maiores inconveniências de atitude, porque a debilidade em sua autocrítica é mais acentuada. A embriaguez já é completa: a autocensura, os freios morais e a liberdade de consciência e vontade são inexistentes (FRANÇA, 1978, p. 3; JESUS, 2003, p. 509; SILVA, 2004, p. 57).
Por fim, a fase do sono ou da letargia é marcada por um estado de anestesia que pode tomar maiores ou menores proporções. A pressão arterial e a temperatura corporal caem sensivelmente, a pele empalidece, as pupilas ficam contraídas, a respiração e a pulsação diminuem, os reflexos são totalmente abolidos. Podem ocorrer desmaios, sono profundo ou total inconsciência. Em alguns casos, pode culminar em coma ou mesmo morte (FRANÇA, 1978, p. 3; JESUS, 2003, p. 509).
Assim, a par de sua licitude, os transtornos causados hodiernamente pelo álcool são grandes, como bem destacou Haroldo Caetano da Silva:
[...] sendo o álcool uma droga historicamente consumida e o seu uso um hábito socialmente aceito, inclusive estimulado por criativos meios de publicidade por todos os mass media – diversamente do que ocorre com outras drogas, cujo comércio e consumo configura prática ilícita – é muito freqüente o vício do alcoolismo, a ponto de tornar-se “um dos problemas mais inquietantes que se apresentam atualmente em todos os países civilizados”, verdadeiro problema de saúde pública, com reflexos nefastos para aquele que ingere a bebida alcoólica, e também com conseqüências outras, não menos graves, de caráter social, econômico e jurídico (SILVA, 2004, p. 41, grifo do autor).
Na embriaguez, “soltam-se progressivamente os impulsos recalcados, livres graças ao entorpecimento das inibições morais” (FRANÇA, 1978, p. 3).
Destarte, embora não seja a única causa do problema da criminalidade, a embriaguez é uma relevante mola propulsora a impulsioná-la.
E sendo o crime um elemento patogênico ao corpo social, o Estado, valendo-se das normas penais, não podia deixar de se preocupar com o problema da embriaguez e com as mudanças comportamentais dela decorrentes.
Eis o motivo pelo qual o direito, enquanto regulador das condutas humanas, e principalmente o direito penal, como tutelar dos valores mais importantes do convívio social, tratou logo de cuidar do fenômeno da embriaguez. E a legislação brasileira o fez em três aspectos: a) estatuindo, no art. 28, inciso II, do Código Penal, que a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos, não exclui a imputabilidade; b) agravando a pena quando o crime for praticado em estado de embriaguez preordenada (art. 61, inciso II, alínea a, do Código Penal); e c) tipificando condutas (v.g., art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro e art. 62, da Lei das Contravenções Penais).
Desta feita, estuda-se aqui o tratamento penal da embriaguez, sendo dedicada maior atenção ao ponto que parece ser o de maior relevância (do ponto de vista dos princípios que norteiam o direito penal): a correlação entre esta, enquanto fenômeno apto a turvar a capacidade de compreensão e de determinação do indivíduo, e a imputabilidade penal.
2. A importância dos princípios constitucionais no Estado Democrático de Direito.
O convívio em sociedade é inerente à natureza humana. Desde que o homo sapiens surgiu na Terra ele procurou agregar-se a seus pares, de modo a melhor poder enfrentar a luta pela sobrevivência.
Entretanto, a vivência em comum traz também, inevitavelmente, o conflito, motivo pelo qual se tornou necessário o surgimento de um poder que organizasse os grupos sociais.
Assim, temos que o direito surgiu com o papel de garantir a atuação e a prevalência desse poder, o qual tem por missão satisfazer interesses maiores da coletividade.
Entretanto, a existência de um poder, que se traduz na distinção entre governantes e governados, traz em seu cerne o problema do abuso do poder:
[...] toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a conduta dos homens [...].
Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual, logicamente, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há sociedades com centralização e marginalização extremas, e outras em que o fenômeno se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e marginalização do poder (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 56, grifo do autor).
Por esse motivo, se a princípio o direito nasceu com o objetivo acima explanado, é certo que a partir de determinado momento foi necessária sua atuação no sentido contrário, ou seja, colocando limitações no poder e inibindo a arbitrariedade no seu exercício.
É dentro desse contexto que surge a oportunidade do estudo dos direitos fundamentais, conceituados por Luiz Alberto David Araújo como “[...] a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões” (ARAÚJO, 2005, p. 109).
O estudo da evolução histórica dos direitos fundamentais mostra que, a princípio, eles constituíam uma limitação ao poder estatal.
Com efeito, os primeiros direitos fundamentais, classificados pela doutrina como direitos de primeira geração, tiveram como principais fatores históricos determinantes os excessos do Absolutismo e as aspirações da burguesia à época da Revolução Francesa. Também eram conhecidos como direitos individuais, direitos civis, direitos políticos ou liberdades públicas. Eles “[...] definiam a fronteira entre o que era lícito e o que não era para o Estado, reconhecendo liberdades para os cidadãos” (BREGA FILHO, 2002, p. 21-22, grifo nosso, passim).
Entretanto, a partir da Revolução Industrial, que culminou no surgimento de uma classe proletária flagelada por muitos problemas sociais, verificou-se que não adiantava o Estado apenas resguardar os direitos individuais, se os cidadãos não dispunham de condições – notadamente materiais – para seu exercício. Esse terreno permitiu o surgimento dos chamados direitos fundamentais de segunda geração. Assim, “foram definidos e assegurados os direitos sociais, econômicos e culturais [...]”, consistentes em prestações estatais concretas, como assistência social, moradia, saúde, lazer, educação, trabalho, segurança, entre outras, visando “[...] garantir condições sociais razoáveis a todos os homens para o exercício dos direitos individuais” (BREGA FILHO, 2002, p. 22-23, grifo nosso, passim).
Por outro lado, as barbáries verificadas durante a Segunda Guerra Mundial culminaram na compreensão da existência de valores transcendentais, que interessam a todo o gênero humano e não apenas a cada indivíduo. São os direitos fundamentais de terceira geração, também chamados de direitos de solidariedade ou de fraternidade, que se caracterizam por sua titularidade coletiva: o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente equilibrado, à comunicação, ao patrimônio comum da humanidade entre outros.
Em resumo, “os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo [...]” (BONAVIDES, 2000, p. 517).
Segundo Hesse, citado por Paulo Bonavides, os direitos fundamentais almejam “criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana” (BONAVIDES, 2000, p. 514).
Tanto é assim que nossa Constituição previu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Fundamento significa base, alicerce. Assim, num Estado Democrático de Direito, o ser humano e sua dignidade constituem os valores supremos que devem informar toda a ordem normativa.
E, uma vez destacada a importância dos direitos fundamentais, cabe ressaltar o papel dos princípios jurídicos, com destaque para os princípios constitucionais.
A noção de princípio jurídico foi bem delineada por Celso Antonio Bandeira de Mello:
Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo (MELLO, 2006, p. 902-903, grifo nosso).
Eles formam, portanto, o arcabouço da ordem jurídica, cabendo a eles o papel de estruturação de todo o sistema.
Assim, ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais foram positivados nas Constituições, estas também trataram de erigir as normas que guardam os valores essenciais da ordem jurídica à categoria de princípios constitucionais.
No campo do direito penal, os princípios constitucionais ganham especial importância:
Os princípios encontram-se para a legislação penal e seus institutos como as fundações para a edificação: conformam e sustentam o que sobre eles é erigido, de modo que a retirada de qualquer dos alicerces ou a efetivação da obra fora dos padrões estabelecidos, implicará o comprometimento de toda a construção. (SANTORO FILHO, 2000, p. 68).
Essa importância se confirma pelo simples fato de o direito penal ser o ramo da ciência jurídica encarregado de tutelar diretamente os valores mais importantes do organismo social.
Com efeito, se o crime é a mais grave espécie de ilícito jurídico, a sanção penal é a mais severa punição utilizada pelo Estado para reprimir as transgressões às suas leis. Justamente por isso, um Estado Democrático de Direito não pode sacrificar arbitrariamente o ius libertatis de seus membros.
No Estado Democrático de Direito, os princípios penais fundamentais, além dessa função sistematizadora do direito criminal têm também, como finalidades essenciais, a garantia do ser humano contra a ingerência demasiada do Estado nas relações sociais, através do direito penal, e a limitação à exacerbação do poder punitivo. (SANTORO FILHO, 2000, p. 69).
Destarte, destacado que o direito tem por função regular as condutas humanas para preservar a integridade do corpo social, cumpre agora analisar mais pormenorizadamente o que seja o direito penal e quais os fins a que ele se propõe, bem como os princípios que o norteiam.
3. Direito penal: conceito, objetivos e princípios.
Num primeiro momento, o direito penal pode ser entendido como um conjunto de normas jurídicas estabelecidas pelo Estado, cuja finalidade é combater o crime e, dessa maneira, defender os bens jurídicos mais valiosos ao convívio social.
Analisando alguns dos bens jurídicos protegidos pelas normas penais, como, por exemplo, a vida, a saúde, a honra, a propriedade entre outros, veremos que muitos se tratam de direitos fundamentais. No escólio de José Frederico Marques, a Constituição Federal tutela os direitos fundamentais do homem. E essa proteção é reforçada pelas leis penais, “[...] aparecendo então o caráter sancionador do direito penal, como complemento enérgico e mais forte da tutela constitucional” (MARQUES, 1954, p. 38).
De outro tanto, José Frederico Marques definiu o direito penal como:
“[...] o conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade das medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado” (1954, p. 11, grifo nosso).
Vê-se, pois, que o direito penal não se limita a definir crimes e cominar penas.
A partir da prática, em tese, de um fato tido como delituoso, surge uma relação jurídica que contrapõe, de um lado, o ius libertatis do pretenso criminoso (que também é um direito fundamental) e o ius punitionis do Estado. Assim, também se faz necessário que o direito penal tutele o direito de liberdade em face do poder de punir do Estado, de forma a evitar os abusos.
Há, portanto, um “direito individual de liberdade em matéria penal”, que consiste, como dizia Rocco, na “faculdade, que tem o cidadão, de agir nos limites daquela esfera de atividade que os preceitos penais nada lha impõem nem proíbem, e de impedir dentro dela, a indébita intromissão dos órgãos do poder punitivo do Estado” (MARQUES, 1954, p. 122).
E é justamente neste ponto que entram em cena os princípios constitucionais, já que, “[...] no Estado de direito, o poder soberano não age na conformidade de seu arbítrio, mas subordinado a normas e princípios jurídicos” (MARQUES, 1954, p. 10-11).
Pode-se apontar, pois, dois objetivos para o direito penal: de um lado, reprimir a criminalidade e proteger os bens jurídicos mais importantes contra as agressões mais graves; de outro, diametralmente oposto, evitar o abuso estatal e proteger os direitos do indigitado autor de um crime.
Após as considerações ora delineadas, o momento mostra-se oportuno para o estudo de dois dos mais importantes princípios sobre os quais se assenta o direito penal.
3.1. Princípio do nullum crimen sine conducta.
O crime é sempre uma conduta humana, positiva ou negativa (ação ou omissão). Daí dizer-se que não há crime sem conduta: nullum crimen sine conducta.
Três teorias buscaram explicar a conduta: a teoria causal da ação, a teoria social da ação e a teoria finalista da ação.
Segundo a teoria causalista ou naturalista da ação, também conhecida por teoria tradicional, clássica ou causal-naturalista, “conduta é a causação de modificação no mundo exterior por um comportamento humano voluntário, no qual é irrelevante ou prescindível o fim a que se dirige” (SILVA, 2004, p. 20).
Para a teoria em comento, a conduta é estranha a qualquer valoração normativa ou social:
Nessa teoria a conduta é concebida como um simples comportamento, sem apreciação sobre a sua ilicitude ou reprovabilidade. É denominada naturalista ou naturalística porque incorpora as leis da natureza do Direito Penal. Nos termos dessa teoria, a conduta é um puro fator de causalidade. Daí também chamar-se causal. Para ela a conduta é o efeito da vontade e a causa do resultado. Tudo gira em torno do nexo de causalidade: vontade, conduta e resultado (JESUS, 2003, p. 230).
Para os causalistas, o fim da conduta deve ser apreciado na culpabilidade, como elemento desta (MIRABETE, 2004, p. 102).
A teoria causal levava à perplexidade. Em primeiro lugar, diante dela, não havia diferença entre um crime doloso e um culposo, visto que em ambos o resultado é idêntico. Em verdade, é o desvalor da ação, e não o desvalor do resultado, que faz com que um crime doloso seja apenado mais severamente que um culposo (JESUS, 2003, p. 233).
Ademais, ela também não explica a tipicidade a contento em certos delitos nos quais a vontade do agente e a finalidade da ação fazem parte da própria descrição do crime (MIRABETE, 2004, p. 102).
Diante de todas essas imperfeições, o causalismo não é mais aceito.
Conforme a teoria social, ação é “a conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana” (MIRABETE, 2004, p. 103).
Essa teoria compreendeu que um conceito tão importante como o da ação, produtor de relevantes efeitos na estrutura do delito, não podia atender exclusivamente a princípios fundamentados nas leis da natureza. Diante disso, reconheceu a necessidade de situar o problema numa relação valorativa com o mundo social. O conceito de ação, tratando-se de um comportamento praticado no meio social, deve ser valorado por padrões sociais. (JESUS, 2003, p. 232-233).
Sobre a necessidade de relevância social da ação para ela revestir-se de tipicidade penal, explica-se:
Se um pugilista fere seu adversário porque quer feri-lo, mas não atua em função de menosprezo à integridade física deste, o significado de sua ação é positivo. O cirurgião que faz uma incisão no paciente quer curá-lo, quer que ele se recupere. Nessas hipóteses, embora ocorram lesões no corpo do adversário e do paciente, não há ação típica de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, que constitui, em tese, o crime de lesões corporais. A ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo porque se realiza dentro do âmbito de normalidade social (MIRABETE, 2004, p. 103).
A teoria social não escapou de críticas, principalmente diante da incerteza que paira na determinação do que seja a relevância social da conduta:
As críticas feitas a essa teoria residem na dificuldade de conceituar-se o que seja relevância social da conduta, pois tal exigiria um juízo de valor, ético. Tratar-se-ia de um critério vago e impreciso que, inclusive, influiria nos limites da antijuridicidade, tornando também indeterminada a tipicidade (MIRABETE, 2004, p. 103).
Segundo Zaffaroni e Pierangeli, tentou-se sustentar que a relevância social se identifica com o interagir humano. Nesse sentido, interessariam ao direito penal apenas as ações que transcendessem o âmbito individual do agente, atingindo terceiros de maneira lesiva (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 366).
Entretanto, como os mencionados autores bem destacaram, essa é uma questão de tipicidade, e não de determinação do conceito de conduta:
[...] o requisito da relevância social, entendida como a necessidade de que a conduta transcenda da esfera meramente individual do autor para a do outro, é um requisito de tipicidade penal da conduta, mas não da conduta em si, que é conduta, embora não transcenda a ninguém. As ações puramente privadas, que não transcendem para ninguém (e que o direito não pode proibir) também são “ações”.
[...]
[...] As condutas não se tornam “condutas” por estarem proibidas e sim, melhor dizendo, estão proibidas – entre outras coisas – por serem condutas (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 367-368, passim).
Além disso, Damásio Evangelista de Jesus apresenta os seguintes óbices à adoção da teoria social:
Em primeiro lugar, ela não deixa de ser causal, merecendo os mesmos reparos que a doutrina fez à teoria mecanicista: não resolve satisfatoriamente o problema da tentativa e do crime omissivo. Por outro lado, se a ação é a causação de um resultado socialmente importante, como se define a conduta nos crimes de mero comportamento?
Essa teoria, como a causal propriamente dita, dá muita importância ao desvalor do resultado, quando o que importa é o desvalor da conduta. Se a ação é a causação de um resultado socialmente relevante, então não há diferença entre uma conduta de homicídio doloso e um comportamento de homicídio culposo, já que o resultado é idêntico nos dois casos (JESUS, 2003, p. 233).
Face os inconvenientes que revestem as concepções anteriormente apresentadas, hodiernamente a doutrina prefere a teoria finalista da ação.
“Para a teoria finalista da ação (ou da ação finalista), como todo comportamento do homem tem uma finalidade, a conduta é uma atividade final humana e não um comportamento simplesmente causal” (MIRABETE, 2004, p. 104).
Para o finalismo, conduta é “a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade” (JESUS, 2003, p. 227, grifo do autor).
A ação é uma atividade final humana. Partindo disso, Welzel afirma que a ação humana é o exercício da atividade finalista. É, portanto, um acontecimento finalista, e não somente causal. A finalidade, diz ele, ou atividade finalista da ação, baseia-se em que o homem, consciente dos efeitos causais do acontecimento, pode prever as conseqüências de sua conduta, propondo, dessa forma, objetivos de distinta índole. Conhecendo a teoria da causa e efeito, tem condições de dirigir sua atividade no sentido de produzir determinados efeitos. A causalidade, pelo contrário, não se encontra ordenada dessa maneira. Ela é cega, enquanto a finalidade é vidente (JESUS, 2003, p. 234).
“Em suma, a vontade constitui elemento indispensável à ação típica de qualquer crime, sendo seu próprio cerne” (MIRABETE, 2004, p. 103).
Se A mata B, não se pode dizer de imediato que praticou um fato típico (homicídio), embora essa descrição esteja no art. 121 do CP (“matar alguém”). Isto porque o simples fato de causar o resultado (morte) não basta para preencher o tipo penal objetivo. É indispensável que se indague do conteúdo da vontade do autor do fato, ou seja, o fim que estava contido na ação, já que a ação não pode ser compreendida sem que se considere a vontade do agente. Toda ação consciente é dirigida pela consciência do que se quer e pela decisão de querer realizá-la, ou seja, pela vontade (MIRABETE, 2004, p. 139-140).
A teoria finalista da ação, destarte, diferencia o fato natural da ação humana. Enquanto o primeiro é, de fato, causal, “[...] a ação humana é um acontecimento dirigido pela vontade consciente do fim. Daí a comparação ilustrativa de Welzel, para quem a finalidade é vidente, e a causalidade, cega” (SILVA, 2004, p. 23, grifo do autor).
Explicado o que é a conduta, passa-se à verificação de seus elementos e de suas formas.
A conduta é composta primeiramente por uma vontade. Depois, pela atuação externa dessa vontade. Com efeito, da mesma forma que não há conduta nas ações despidas de intervenção da vontade do agente, como nos casos de coação física irresistível, inconsciência ou atos reflexos; o direito penal também não se preocupa da atividade meramente psíquica ou de cogitação.
A conduta humana pode manifestar-se de duas formas. Geralmente, ela consubstancia-se numa ação, ou seja, num fazer, num agir positivo, num movimento corpóreo, enfim, num comportamento ativo, caracterizando os chamados crimes comissivos.
Entretanto, a omissão, a inatividade, a ausência de movimento, também pode ser penalmente relevante. Isso ocorre quando a agente tinha o dever jurídico de agir e não o faz, praticando um crime omissivo.
3.2. Princípio do nullum crimen sine culpa.
A exigência da existência de culpa como pressuposto e medida da pena é um dos principais valores do direito penal hodierno.
Francisco de Assis Toledo aponta que no cotidiano a palavra culpa é frequentemente utilizada “para a imputação a alguém de um fato condenável”, adquirindo na linguagem coloquial “um sentido de atribuição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento”, sendo que seu significado jurídico não é muito diferente (TOLEDO, 1994, p. 216, passim).
A exigência de que o injusto seja reprovável ao seu autor para que haja sanção repousa na capacidade de autodeterminação do ser humano.
De fato, nos primeiros tempos do direito penal, a sanção criminal foi criada como instrumento de intimidação dos indivíduos, com a promessa de um mal para aqueles que praticassem as condutas indesejadas.
Todavia, em períodos mais remotos a responsabilidade penal era objetiva, ou seja, só interessava o nexo de causalidade entre o fato exterior danoso e o agente. “Desconsiderava-se a existência de alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente” (SILVA, 2003, p. 33).
Em dado momento histórico, porém, compreendeu-se que a função intimidatória da pena deve estar correlacionada com a evitabilidade do fato: só se pode intimidar uma pessoa se ela puder prever e querer os acontecimentos, cabendo a ela a escolha voluntária entre praticar o crime ou evitá-lo (TOLEDO, 1994, p. 218-219). Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete, “a intimidação é apenas eventualmente eficiente quando se ameaça o homem com pena pelo que fez (e poderia não ter feito) ou pelo que não fez (mas poderia fazer), evitando a lesão a um bem jurídico” (MIRABETE, 2004, p. 195).
Em resumo, o princípio da culpabilidade “[...] implica que não há delito se o injusto não é reprovável ao autor” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 449). Ele reflete a execração da responsabilidade objetiva, ou seja, a “sujeição de alguém à imposição de pena sem que tenha agido com dolo ou culpa ou sem que tenha ficado demonstrada sua culpabilidade [...]” (JESUS, 2003, p. 457).
A demonstração da culpabilidade é, pois, “condição indeclinável para a imposição da pena (MIRABETE, 2004, p. 198).
Realmente, o repúdio à responsabilidade penal objetiva mostra a preocupação que o Estado Democrático de Direito tem com os direitos fundamentais de seus cidadãos (notadamente no que diz respeito ao direito de liberdade). De nada adiantaria afirmar que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei se as pessoas pudessem ser alvo da sanção penal pela simples existência de nexo de causalidade entre sua conduta e um evento danoso.
Nesse sentido, o reconhecimento de que a punição deve pressupor a reprovabilidade do fato ao seu autor constitui um dos principais pilares sobre o qual se assenta a ciência penal.
A culpabilidade tem diversas particularidades, cuja análise agora se pretende.
Em linhas simples, ela consiste na “reprovabilidade ou censurabilidade de conduta” (MIRABETE, 2004, p. 97). Entretanto, uma conceituação mais precisa depende de uma escolha face às três principais teorias elaboradas para explicá-la.
Para a teoria psicológica a culpabilidade não passa da ligação psicológica entre o fato e seu autor. O dolo e a culpa são espécies da culpabilidade. No crime doloso há, por parte do agente, voluntariedade e previsão do evento e seu resultado. No crime culposo há previsibilidade, mas não voluntariedade. Disso, decorrem duas conclusões: a culpabilidade está situada no psiquismo do autor do delito, e se divide em dolo e culpa stricto sensu (TOLEDO, 1994, p. 219-222; JESUS, 2003, p. 460).
Mas a concepção psicológica da culpabilidade mostrou-se insuficiente para resolver todos os problemas que envolvem a questão.
Na culpa consciente, por exemplo, não há qualquer ligação psicológica entre o agente e o fato. Quem dirige veículo automotor em alta velocidade por uma rua completamente deserta sabe que age imprudentemente, mas não crê no surgimento inopinado de algum transeunte, que venha a ser atropelado (TOLEDO, 1994, p. 222-223).
Ademais, enquanto o dolo tem natureza psicológica, a culpa é necessariamente normativa, baseada numa avaliação axiológica da conduta. Dolo e culpa, como fenômenos tão distintos, não podem ser considerados espécies do mesmo gênero (JESUS, 2003, p. 460).
Com base nisso surgiram duas novas teorias que introduziram no conceito da culpabilidade um elemento normativo: a reprovabilidade do fato praticado.
Para a teoria psicológico-normativa, ou complexa, o dolo e a culpa stricto sensu não são espécies da culpabilidade, mas elementos dela. A culpabilidade, pois, é um juízo de reprovação que se emite a respeito do fato; e compõe-se de: dolo ou culpa stricto sensu, imputabilidade (capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento) e exigibilidade de conduta conforme o direito. Está situada, portanto, na cabeça do julgador que emite o referido juízo valorativo da conduta (TOLEDO, 1994, p. 222-224; JESUS, 2003, p. 460-461).
A teoria psicológio-normativa, contudo, também se revelou inadequada.
Welzel apontou que o dolo e a culpa stricto sensu fazem parte da conduta humana, e não do juízo de culpabilidade. Portanto, estão localizados no tipo penal, já que este nada mais é que a descrição da ação proibida. Tanto é assim que a maioria dos crimes previstos em lei são dolosos, apenas admitindo-se a punição a título de culpa quando houver outra tipificação expressa também em Lei (Código Penal, art. 18, parágrafo único). Quando a lei penal prevê somente a modalidade dolosa do crime, a ausência do dolo não afasta a culpabilidade, mas torna o fato atípico (TOLEDO, 1994, p. 228 e 230, passim).
Destarte, a teoria normativa pura parece ser a mais apta a explicar o que seja e onde se localiza a culpabilidade.
Para a teoria normativa o dolo e a culpa pertencem à conduta, e não à culpabilidade. Segundo Mirabete, “o que se elimina com a exclusão do dolo é a própria existência do fato típico [se não prevista modalidade culposa] e não a mera culpabilidade pelo fato que o sujeito praticou” (MIRABETE, 2004, p. 196).
Damásio Evangelista de Jesus, por sua vez, explica:
[...] somente após a análise do conteúdo da vontade é que posso afirmar que houve determinado tipo penal. Em face disso, a vontade final, isto é, o dolo, faz parte do tipo.
[...]
Em conseqüência, o dolo é retirado da culpabilidade, não constituindo espécie (teoria psicológica) ou elemento da culpabilidade (teoria psicológico-normativa), mas elemento subjetivo do tipo, integrando a conduta, primeiro elemento do fato típico (JESUS, 2003, p. 235-236).
Para a teoria normativa pura, portanto, a culpabilidade continua sendo um juízo de reprovação localizado na cabeça do julgador, mas seus elementos são a imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Assim, ela passa a ser composta apenas por juízos de valor, expurgada de todos os fatores psicológicos e limitando-se à pura reprovabilidade (JESUS, 2003, p. 461-462; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 520).
No presente momento, se faz oportuna a advertência de Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, de que hoje, adotada a teoria normativa o princípio da culpabilidade se decompõe em dois níveis:
O princípio de culpabilidade, em sua formulação mais simples, diz que “não há delito sem culpabilidade”. No tempo em que se sustentava a teoria complexa da culpabilidade, isto é, em que a culpabilidade era entendida como reprovabilidade, mas nela incluídos também o dolo e a culpa, esta fórmula breve expressava a necessidade de que no delito houvesse, ao menos, culpa, e, além disto, que o injusto fosse reprovável ao autor.
Dentro da concepção por nós sustentada, em que a culpa não faz parte da culpabilidade, mas configura uma estrutura típica, aquilo que antes se chamava “princípio de culpabilidade” representa duas exigências que devem ser analisadas separadamente, em dois níveis distintos: a) na tipicidade, implica a necessidade de que a conduta – para ser típica – deva ao menos ser culposa; b) na culpabilidade, implica que não há delito se o injusto não é reprovável ao autor (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 449).
Destarte, é mais correto afirmar que, na verdade, “[...] não há pena se a conduta não for reprovável ao autor” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 522, grifo nosso).
O Código Penal prevê as seguintes hipóteses de exclusão da culpabilidade: erro de proibição (art. 21, caput, e art. 20, § 1º), coação moral irresistível (art. 22, 1ª parte), obediência hierárquica (art. 22, 2ª parte) e inimputabilidade (que pode decorrer de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior, nos termos dos artigos 26 a 28 do Código Penal).
Essas causas estão relacionadas com os elementos da culpabilidade. O erro de proibição exclui a potencial consciência da ilicitude. A coação moral irresistível e a obediência hierárquica afastam a exigibilidade de conduta diversa. A doença mental, o desenvolvimento mental incompleto (incluindo-se aqui, por presunção legal, conforme o art. 27 do Código Penal, os menores de dezoito anos) o desenvolvimento mental retardado e a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, afastam a capacidade de querer e de entender do agente e, portanto, a imputabilidade (Código Penal, art. 26, caput; e art. 28, § 1º).
As hipóteses de exclusão da culpabilidade pela inimputabilidade são as mais importantes para o presente trabalho.
A primeira hipótese de inimputabilidade prevista no Código Penal é aquela decorrente de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, caput).
A expressão doença mental é a mais ampla possível. Inclui psicoses como demência senil, esquizofrenia, loucura etc.
O desenvolvimento mental incompleto é aquele que ainda não se concluiu. É o caso dos menores de dezoito anos e dos silvícolas inadaptados.
Para os primeiros, excepcionalmente, nossa legislação adotou o critério biológico. Por mais que um adolescente tenha plena consciência de seus atos e saiba discernir o certo do errado, a Constituição Federal (art. 228) e o Código Penal (art. 27) presumem, de maneira absoluta, sua inimputabilidade. Essa presunção favorece mesmo um menor emancipado.
Por último temos a escassez de desenvolvimento mental, que se verifica nos oligofrênicos e em alguns casos de surdo-mudez que chegam a diminuir ou afastar a capacidade intelectiva e de autodeterminação.
Por outro lado, “é princípio de Psiquiatria que entre a saúde e a anormalidade psíquica não se pode traçar uma linha precisa de demarcação” (JESUS, 2003, p. 502).
Dessa maneira, “entre a imputabilidade e a inimputabilidade existe um estado intermédio com reflexos na culpabilidade e, por conseqüência, na responsabilidade do agente” (JESUS, 2003, p. 502).
Outrossim, o Código Penal, em seu art. 26, parágrafo único, prevê que nas hipóteses menos graves de perturbação da saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que não retirem do sujeito toda a capacidade intelectiva ou volitiva, a culpabilidade é apenas diminuída, e não afastada de todo (JESUS, 2003, p. 502-503).
É o que ocorre, de maneira geral, nos casos mais benignos de doenças e debilidades mentais, bem como em determinados estados psíquicos decorrentes de estados fisiológicos especiais (gravidez, puerpério etc.) (JESUS, 2003, p. 502).
A imputabilidade subsiste e o agente é condenado, mas ou a pena será reduzida de um a dois terços, podendo ainda o autor do fato ser submetido a medida de segurança (artigos 26, parágrafo único, e 98, do Código Penal). A redução de pena é obrigatória. “A expressão ‘pode’ diz respeito ao quantum da redução, não à própria causa de diminuição” (JESUS, 2003, p. 504).
É no campo da imputabilidade que se situa o principal ponto de contato entre o problema da embriaguez e o direito penal.
Conforme disposto no art. 28 do Código Penal, a emoção, a paixão e a embriaguez voluntária ou culposa não excluem a imputabilidade, ao passo que a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, o faz.
Por outro lado, “a dificuldade maior em qualquer tentativa de punição do crime do ébrio (que atua em estado de inimputabilidade) é conciliá-la com o princípio nullum crimen sine culpa (que pressupõe imputabilidade)” (SILVA, 2004, p. 38).
A actio libera in causa, como se verá, desloca o fundamento da culpabilidade do agente para um momento anterior à auto-provocação do estado de inimputabilidade (e, portanto, anterior mesmo à ação).
4. Embriaguez e imputabilidade penal.
Segundo o art. 28, inciso II, do Código Penal, a embriaguez, voluntária ou culposa, causada pelo álcool ou substância de efeitos análogos, não exclui a imputabilidade.
Destarte, pela legislação atual, a imputabilidade subsiste quando a pessoa ingere bebida alcoólica voluntariamente, tenha ou não o fito de inebriar-se, e não importando se a embriaguez subsequente seja completa ou incompleta.
Por outro lado, os parágrafos primeiro e segundo do precitado dispositivo estabelecem que a embriaguez acidental pode isentar o agente de pena ou diminuí-la, conforme, respectivamente, seja completa ou incompleta.
A primeira hipótese, qual seja, de embriaguez completa decorrente de caso fortuito ou força maior, afasta a culpabilidade.
“Trata-se de caso de exclusão da imputabilidade e, portanto, da culpabilidade, fundado na impossibilidade de consciência e vontade do sujeito que pratica o crime em estado de embriaguez completa acidental” (MIRABETE, 2004, p. 223).
No caso do art. 28, § 2º, a redução de pena é obrigatória. Consubstancia-se em direito subjetivo do condenado, e não discricionariedade do julgador. O verbo “poder” refere-se ao quantum da diminuição (um a dois terços).
Posto isso, salienta-se que diferente, porém, é o tratamento penal da embriaguez patológica e do alcoolismo crônico:
Quanto ao art. 28, deve ser efetuada uma interpretação necessariamente restrita, excluindo-se do âmbito do dispositivo a embriaguez patológica ou crônica. Fala-se em embriaguez patológica como aquela à que estão predispostos os filhos de alcoólatras que, sob efeito de pequenas doses de álcool, podem ficar sujeitos a acessos furiosos. Na embriaguez crônica, há normalmente um estado mental mórbido (demência alcoólica, psicose alcoólica, acessos de delirium tremens etc.), e o agente poderá ser inimputável ou ter a culpabilidade reduzida (art. 26) (MIRABETE, 2004, p. 223).
Note-se que no caso da embriaguez patológica, pequenas doses podem fazer com que a pessoa perca totalmente o controle de si. Já no alcoolismo crônico, os danos ao sistema nervoso são permanentes. Ele consiste numa “[...] deformação persistente do psiquismo, assimilável a verdadeira psicose, e como psicose, ou doença mental, deve ser juridicamente tratado” (BRUNO, 1967, p. 158).
A respeito do alcoolismo crônico, disserta Fragoso:
O alcoolismo crônico constitui caso de doença mental, que exclui ou atenua a imputabilidade. O álcool gera dependência física, com graves conseqüências sobre o processo volitivo, e conseqüentemente, sobre a capacidade de autogoverno. Esta solução não permite dúvidas. Nestes casos, no entanto, será extremamente mais difícil a já árdua tarefa de saber se o agente tinha capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se segundo tal entendimento (FRAGOSO, 2003, p. 251).
Assim, as duas figuras são equiparadas à doença mental, aplicando-se o disposto no art. 26 do Código Penal.
5. A teoria da actio libera in causa.
5.1. Conceito e elementos.
O momento de aferição da culpabilidade do sujeito ativo da conduta delituosa é o tempo da ação.
Pode ocorrer, entretanto, que o agente voluntariamente se coloque em situação de inimputabilidade. “É célebre a hipótese do sujeito que se embriaga voluntariamente para cometer o crime, encontrando-se em estado de inimputabilidade no momento de sua execução (ação ou omissão)” (JESUS, 2003, p. 472).
Surge a questão das actiones liberae in causa, sive ad libertatem relatae (ações livres em sua causa, i. e., relacionadas com a liberdade), ou simplesmente actio libera in causa. São casos de conduta livremente desejada, mas cometida no instante em que o sujeito se encontra em estado de inimputabilidade, i. e., no momento da prática do fato o agente não possui capacidade de querer e entender. Houve liberdade originária, mas não liberdade atual (instante do cometimento do fato) (JESUS, 2003, p. 472, grifo do autor).
Narcélio de Queiroz, citado por Haroldo Caetano da Silva e Nelson Hungria, conceitua as “ações livre na causa” da seguinte maneira:
São os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever (SILVA, 2004, p.79; HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 169).
A actio libera in causa, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli,
[...] pretende que aquele que comete um ato típico e antijurídico (um injusto) em estado de embriaguez completa (inimputabilidade, ou seja, incapacidade de culpabilidade [...]), deve ser responsabilizado pelo injusto cometido, sempre que o estado de embriaguez tenha sido atingido voluntariamente pelo autor, e não por erro ou acidente.
Segundo esta doutrina, aquele que bebe álcool de forma a causar em si mesmo uma profunda perturbação da atividade consciente, semelhante à alienação mental, e neste estado mata ou fere alguém deve ser punido como autor de um homicídio ou lesões, porque o estado de inimputabilidade não o beneficia, em virtude de tê-lo querido (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p.452).
Da teoria da actio libera in causa, decorre que o dolo e a culpa são deslocados para a vontade anterior ao estado etílico completo.
São elementos da actio libera in causa, destarte: a) uma conduta livre do agente, que determina sua própria incapacidade de culpabilidade; b) uma conduta criminosa não livre, praticada em estado de inimputabilidade; e c) o nexo causal, a ligação entre a conduta livre, cometida pelo sujeito enquanto imputável, e o evento delituoso praticado quando sua consciência já havia decaído.
5.2. Direito comparado.
As disposições do nosso Código Penal concernentes à embriaguez foram inspiradas pela legislação italiana. Tanto no Brasil quanto na Itália: a) o ébrio é punido como imputável; b) a embriaguez completa derivada de caso fortuito ou de força maior exclui a imputabilidade; e c) agrava-se a pena no caso de embriaguez preordenada.
O direito espanhol, por seu turno, adota sistemática interessante, afastando a responsabilidade criminal nos casos de embriaguez voluntária, desde que o estado de inconsciência não tenha sido buscado com o propósito do cometimento do crime, ou que o agente não tenha previsto a possibilidade de cometê-lo, ou ainda se estava em síndrome de abstinência (BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 392; FROTA, 2007).
No Código Penal espanhol, portanto, a teoria da actio libera in causa tem aplicação exatamente nas hipóteses para as quais foi criada, ou seja, quando a intoxicação alcoólica foi buscada com o fito de cometer o crime, ou quando o agente, mesmo não querendo, previa ou podia prever sua prática.
Por outro lado, a Alemanha, a Áustria e a Suíça trilharam outro caminho para legitimar a punição do ébrio, pois, nesses países, a embriaguez completa exclui a imputabilidade. Todavia, ela própria é tida como crime, desde que tenha sido provocada de maneira voluntária ou culposa. “Na hipótese, a razão de ser da punibilidade reside no fato de o agente embriagar-se culpavelmente, considerando a ação típica praticada simples condição objetiva de punibilidade” (SILVA, 2004, p. 98). A legislação penal dos precitados países não comina pena em abstrato para a embriaguez, cuja reprimenda guarda correspondência com a sanção prevista para a infração praticada.
Idêntico é o sistema português, com a exceção de que a legislação lusitana já gradua a pena, que não pode ultrapassar aquela prevista para o crime praticado, limitando-se ao teto de 5 (cinco) anos de privação de liberdade e 600 dias-multa.
5.3. Justificativas.
No princípio se buscou justificar a punição dos atos cometidos em estado de embriaguez com base na responsabilidade penal objetiva. Entretanto, o direito penal hodierno já não permite isso, pois a execração da responsabilidade sem culpa é inerente a qualquer Estado Democrático de Direito que se pretenda digno desse nome.
Também não se pode, pura e simplesmente, aplicar uma pena a um sujeito inimputável (ainda que seja deveras difícil auferir se a embriaguez do indivíduo foi em grau tão elevado a ponto de considerar-se completa, ou seja, apta a retirar sua capacidade de consciência).
Destarte, a doutrina buscou outras justificativas para a punição das actiones liberae in causa.
Nelson Hungria pondera que a ameaça penal teria o condão de, por si só, inibir e prevenir a embriaguez e seus efeitos maléficos, tendo o legislador acertado ao equiparar a vontade do ébrio à vontade condicionante da responsabilidade (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 311). Entretanto, se a ameaça penal, enquanto tal, realmente tivesse essa efetividade, nossos cárceres estariam vazios.
Alguns autores ainda buscaram justificar a punibilidade das ações livre na causa “[...] pela vontade residual no agente embriagado, um resíduo de consciência e vontade que não lhe retiraria a imputabilidade” (MIRABETE, 2004, p. 222, grifo do autor).
Nesse sentido, Nelson Hungria pondera:
Conforme observa Manzini, desde que o estado de perturbação da consciência não suprime a falta de movimento corpóreo, sempre fica, segundo a lição científica, um resquício de subconsciência, bastante para que a ação, ao invés de puro fortuito psicológico, se ligue à vontade originária (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 170, grifo do autor).
Adiante, na sequencia do desenvolvimento de sua obra, o mestre repete:
Cumpre notar, além disso, que, segundo a lição da experiência, a vontade do ébrio não é tão profundamente conturbada que exclua por completo o poder da inibição, como acontece nas perturbações psíquicas de fundo patológico. É o que justamente acentua Mezger: “A experiência ensina que na embriaguez é possível e pode ser exigido um grau mais alto de autocontrole do que, por exemplo, nas alterações de consciência de índole orgânica. As perturbações por intoxicação de álcool (acrescente-se: et similia) sempre ficam, em maior ou menor medida, na superfície”. (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 310, grifo do autor).
Talvez tenha sido nisso que o legislador de 1940 pensou, a teor da Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal de então:
A propósito, não é de se esquecer a opinião de Battaglini (Diritto penale, p. 125), que, se contém algum exagero, não deixa de ser útil advertência: “...o ébrio, com inteligência suprimida e vontade inexistente, é uma criação da fantasia: ninguém jamais o viu no banco dos réus” (PIERANGELI, 2004, p. 416, grifo do autor).
Todavia, tem razão Mirabete ao ponderar que “essa opinião, se aceita, tornaria dispensável a invocação do princípio da actio libera in causa” (MIRABETE, 2004, p 222).
Assim, as três principais bases de sustentação da teoria da actio libera in causa são as seguintes:
a) o dolo ou culpa que tem o agente na fase inicial (imputável) prolonga-se por todo o processo causal por ele provocado, alcançando o fato praticado em estado de perturbação da consciência;
b) a ação pela qual o agente se põe voluntariamente em condição de incapacidade já constitui ato de execução do fato típico visado, sendo suficiente para justificar a punibilidade;
c) o agente, no momento em que ainda é imputável, faz de si mesmo mero objeto material para a prática do crime, tornando-se instrumento inimputável de um agente mediato imputável (SILVA, 2004, p.90).
No que diz respeito à primeira posição, tem-se que existiria nexo causal entre a ação ou omissão imediatamente produtora do resultado antijurídico e o ato de o agente se colocar em estado de inconsciência, que foi acompanhado, desde o início, de dolo ou culpa:
[...] mesmo quando não haja preordenação, não fica excluída, nos crimes comissivos, a responsabilidade a título de dolo, desde que, ao colocar-se voluntariamente em estado de conturbação psíquica, o indivíduo soube que estava criando o risco, que aceitou, de ocasionar resultados antijurídicos. Posto que haja relação causal entre o voluntário estado de inconsciência e a conduta produtiva do evento lesivo, não há por que desconhecer a culpabilidade: sob a forma de dolo, se o evento corresponde à vontade conturbada, que se alia à atitude psíquica inicial de aceitação do risco; sob a forma de culpa stricto sensu, se o evento resulta de transitória perda do poder de atenção inerente ou conseqüente ao estado de perturbação mental voluntariamente provocado (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 170-171, grifo do autor).
De outro tanto, entendem os seguidores da segunda linha de justificativa que o ato de embriagar-se configura início de execução do crime pretendido. Conforme Narcélio de Queiroz, citado por Haroldo Caetano da Silva, “na actio libera in causa a ação inicial caracterizante já é parte da execução do delito, está incluída na operação delituosa e é a sua base” (SILVA, 2004, p. 92).
Por fim, e principalmente, se busca justificar a actio libera in causa com base na noção de autoria mediata.
Explica Gerland que, se o agente se coloca em estado de não imputabilidade e nessa situação pratica o delito, que previu ou devia ter previsto, está ele se servindo de si mesmo para alcançar o resultado ilícito, no caso de o resultado ser pretendido (é instrumento do crime, como diz Mayer). Penalmente, é decisivo o primeiro momento, em que o agente se coloca em estado de inimputabilidade, uma vez que aí ainda existe imputabilidade (SILVA, 2004, p.84).
Os contrapontos às justificações da teoria da actio libera in causa serão apresentados após a análise de como ela veio expressa na nossa legislação.
5.4. Artigo 28, inciso II, do Código Penal brasileiro: uma hipótese de responsabilidade penal objetiva?
O simples fato de agente embriagar-se voluntariamente, colocando a si próprio em estado de inconsciência e, nesse estado, cometer um crime, não autorizaria a punição à luz da teoria da actio libera in causa. Exigir-se-ia que, enquanto ainda existisse imputabilidade, houvesse dolo ou culpa ligados ao fato.
Nesse sentido é a lição de Aníbal Bruno:
[...] será sempre necessário que o elemento subjetivo do agente, que o prende ao resultado, esteja presente na fase de imputabilidade. Não basta, portanto, que o agente se tenha posto, voluntária ou imprudentemente, em estado de inimputabilidade, por embriaguez ou outro qualquer meio, para que o fato típico que ele venha a praticar se constitua em actio libera in causa. É preciso que esse resultado tenha sido querido ou previsto pelo agente, como imputável, ou que ele pudesse prevê-lo como conseqüência de seu comportamento. Esse último é o limite mínimo da actio libera in causa, fora do qual é puro fortuito (BRUNO, 1967, p. 52).
Assim, “os crimes praticados em estado de embriaguez voluntária ou culposa, em que não há, na fase de imputabilidade, dolo nem culpa em relação ao fato punível, não dever ser incluídos na teoria da actio libera in causa” (BRUNO, 1967, 55).
Segundo proposta de Haroldo Caetano da Silva, a leitura atual da teoria da actio libera in causa, portanto, seria a seguinte:
Se a pessoa embriaga-se voluntariamente, com o fim de cometer o crime, responderia a título de dolo, com a pena agravada. Se o sujeito embriaga-se voluntariamente, sem o fim de cometer o crime, mas prevendo que poderia praticá-lo, responde a título de culpa. Se o agente embriaga-se voluntaria ou culposamente, sem prever, mas devendo-o, ou prevendo, mas esperando que o crime não aconteça, a responsabilidade também se dá a título de culpa. Se a embriaguez decorre de caso fortuito ou força maior, a imputabilidade é excluída. Mas se, apesar de a embriaguez for voluntária, o autor, enquanto imputável, sequer imaginava que poderia cometer um delito, o fato não pode ser punido a título de actio libera in causa (SILVA, 2004, p. 104).
Entretanto, da literalidade do art. 28, inciso II, do Código Penal, não é o que ocorre.
Em sua origem, a teoria da actio libera in causa deveria fundamentar a punibilidade nos casos de embriaguez preordenada, em que o indivíduo “[...] se embriaga voluntariamente para, em estado de inconsciência, praticar uma ação ou omissão criminosa” (BRUNO, 1967, p. 51).
Entretanto, o que o art. 28, inciso II, do Código Penal, fez, foi estender a aplicação da teoria a todos os casos de embriaguez voluntária, mesmo que o autor, enquanto consciente, sequer tivesse cogitado da possibilidade de cometer um crime, inexistindo, portanto, antes do estado de não imputabilidade, qualquer elemento subjetivo (dolo ou culpa) que o ligasse à conduta não livre.
Destarte, nossa legislação estaria a consagrar uma hipótese de responsabilidade penal objetiva:
Para que haja responsabilidade penal no caso da actio libera in causa, é necessário que no instante da imputabilidade o sujeito tenha querido o resultado, ou assumido o risco de produzi-lo, ou o tenha previsto sem aceitar o risco de causá-lo ou que, no mínimo, tenha sido previsível. Na hipótese de imprevisibilidade, que estamos cuidados, não há falar-se em responsabilidade penal ou em aplicação da actio libera in causa. Assim, afirmando que não há exclusão da imputabilidade, o Código admite responsabilidade penal objetiva (JESUS, 2003, p. 513, grifo nosso).
As situações em que o agente não quis, nem previu, enquanto imputável, a ocorrência do crime praticado em estado de não culpabilidade, na verdade, não apenas caracterizam a sempre repugnante responsabilidade penal objetiva, como sequer podem ser consideradas como hipóteses de actiones liberae in causa.
Nas palavras de Aníbal Bruno:
Esses casos, o nosso Código os resolve dispondo que a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a responsabilidade penal, solução que a Exposição de Motivos do Código italiano toma por hipótese de actio libera in causa. A Exposição de Motivos do nosso Código segue a mesma interpretação, adotando para esse instituto um conceito amplíssimo. [...].
Mas não só a hipótese não pode ser admitida na categoria da actio libera in causa, como também as conseqüências que dela decorrem são diversas das que derivam da admissão desse instituto.
A punição de crime praticado em estado de embriaguez plena, quando o agente na fase de imputabilidade precedente não quis nem previu o resultado, nem este era previsível em vista de circunstâncias particulares em que se encontrasse o agente, foge ao princípio da culpabilidade, mesmo na espécie da actio libera in causa (BRUNO, 1967, p. 151-153, grifo do autor).
Ao tratar o ébrio voluntário ou culposo como se imputável fosse, o Código Penal recorreu a uma ficção que viola o princípio da culpabilidade, e “[...] pune o ato do ébrio pelo seu efeito objetivo, desprezando a circunstância da ausência do elemento subjetivo, que, no sistema do Código, seria necessário para a incriminação do fato” (BRUNO, 1967, p. 156).
Em igual sentido são as conclusões de Aberto Silva Franco:
[...] o agente não tinha em mente, ao tomar a bebida alcoólica, a prática de um fato criminoso, o qual vem, contudo, a cometer no período em que estava submetido à intoxicação alcoólica. O legislador, fazendo uso de uma verdadeira ficção jurídica (deu por imputável que, na realidade, não o era), considerou-o, nas duas hipóteses, como portador tanto de capacidade de entender o caráter ilícito do fato, como da capacidade de determinar-se conforme esse entendimento. Transferiu, por isso, o juízo da imputabilidade do tempo da ação ou da omissão para um momento precedente, ou seja, para o da ingestão da bebida alcoólica ou da substância equivalente. É evidente que a deslocação no tempo desse juízo não bastou para camuflar a consagração legislativa de uma hipótese de imposição de pena, por pura responsabilidade objetiva o que colide francamente com o princípio do nullum crimen sine culpa [...] (FRANCO, 2001, p. 468).
O autor conclui que “[...] a embriaguez voluntária ou culposa, enquanto hipótese de responsabilidade pelo mero resultado, contraria a letra e o próprio espírito da Constituição Federal” (FRANCO, 2001, p. 469).
E conforme Pierangeli:
Desde logo, queremos ressaltar ter o legislador de 1984 modernizado a Parte Geral do Código Penal de 1940. Esta estruturava-se sobre o Código Rocco, retrato de um regime totalitário então vigorante naquele país, que merecia adoção aqui, no Brasil, em face do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas a partir de 1937, este apresentando as características fascistas que marcaram o regime italiano.
Mas, é forçoso reconhecer que a Comissão Revisora, mesmo tendo à mão os Códigos alemão e austríaco, ambos de 1975, e o português, este de 1982, preferiu perseguir o mau caminho da legislação anterior, reproduzindo quase ipsis verbis o texto da legislação ab-rogada, perseverando, dessarte, pela senda do versari in re illicita, ou seja, pelo domínio da responsabilidade penal objetiva, inconcebível em todo o Estado de direito ou de forma democrática de governo [...] (PIERANGELI, 1992, p. 301).
Dessarte, “[...] forçoso é o reconhecimento de ter o legislador de 1984 consagrado, pela via legislativa, – o que torna a adoção mais grava – uma imposição de pena forjada em pura responsabilidade objetiva (PIERANGELI, 1992, p. 301).
César Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde, por sua vez, criticam não exatamente o texto legal, mas a via interpretativa adotada pelos tribunais:
E quando há imprevisibilidade não se pode falar de actio libera in causa, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao direito, anterior ao estado de embriaguez, insto é, quando o agente encontrava-se em perfeito estado de discernimento. No entanto, os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada desses aspectos, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente. Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez, não tem sido objeto de análise. É muito fácil: O Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado (BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 391).
Nelson Hungria, em seus “Comentários ao Código Penal”, todavia, após citar a posição de Basileu Garcia, (que, por sinal, era exatamente a mesma dos autores precitados), dele discordava, sustentando que o conceito de Narcélio de Queiroz é amplo o suficiente para abranger as hipóteses de embriaguez voluntária ou culposa, mesmo sem intenção ou previsão da produção de um resultado criminoso. A responsabilidade do agente não seria objetiva, mas seria ditada por ampliação do próprio critério voluntaristico: o voluntário abuso do álcool é o primeiro anel de uma cadeia causal que liga a embriaguez ao crime (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 311-312).
Data venia, ao contrário do que pretende o mestre Nelson Hungria, o conceito formulado por Narcélio de Queiroz é taxativo no que diz respeito aos casos em que a teoria da actio libera in causa se aplica, quais sejam, quando o agente busca a embriaguez propositadamente, com o objetivo de produzir o resultado lesivo, ou, mesmo quando não querendo o resultado, podia ou devia prevê-lo.
O próprio Heleno Cláudio Fragoso, na parte dos “Comentários ao Código Penal” que lhe competia, também reconhecia na espécie uma hipótese de responsabilidade objetiva:
As disposições do CP vigente sobre embriaguez são oriundas do CP italiano (arts. 91/93) e conduzem a intolerável responsabilidade objetiva. Somente quando completa e fortuita, exclui a embriaguez a imputabilidade. Fora daí, e excluída, no mesmo caso, a hipótese de semi-imputabilidade, o agente responde, a título de dolo ou de culpa stricto sensu. Não é possível justificar essa solução através da teoria da actio libera in causa, pois esta requer dolo ou culpa em relação ao resultado, no momento em que o agente tinha plena capacidade de entendimento ou de autogoverno.
[...]
Ao contrário do que se afirma na Exposição de Motivos (nº 21), não se aplica a teoria da actio libera in causa a todos os casos em que o agente se pôs em estado de inconsciência. Se o fato punível de quem em tal estado veio o agente a praticar não era sequer previsível, para ele, no momento de plena imputabilidade, não há culpa e é forçoso admitir que estamos diante de mera responsabilidade pelo resultado (HUNGRIA; FRAGOSO, 1983, p. 495, gripo do autor).
E em sua obra própria, o precitado autor discorre:
Não se aplica a teoria da actio libera in causa a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência (ao contrário do que se afirma na Exposição de Motivos do CP de 1940, nº 21). Se o fato delituoso praticado em estado de embriaguez, que conduz à incapacidade de entendimento e de autogoverno, não era sequer previsível, para o agente, no momento em que estava sóbrio, não há culpa, e só se pode admitir que estamos diante de hipótese anômala de responsabilidade objetiva. Essa deplorável solução foi adotada pela lei vigente em nome de mais eficaz repressão à criminalidade (FRAGOSO, 2003, p. 251, gripo do autor).
Por outro lado, Haroldo Caetano da Silva noticia que, em ocasião posterior, o próprio Hungria reconheceu os exageros de seu posicionamento e concordou que seria necessário, ao menos, a previsibilidade, por parte do agente, da prática delituosa, sendo cabível, nessa hipótese, a punição a título de culpa (SILVA, 2004, p. 102).
Já em defesa do art. 28, inciso II, do Código Penal, Francisco de Assis Toledo preleciona:
O Código vigente adota esse princípio no art. 28, que reproduz a mesma orientação do art. 24 do texto de 1940, e o faz a nosso ver corretamente, pois a embriaguez, pelo álcool ou por drogas, segundo revela a experiência cotidiana, dota o indivíduo de especial periculosidade, pelo afrouxamento de suas faculdades de inibição ou, em sentido oposto, pela paralisação das funções psíquicas essenciais ao normal desempenho de certas atividades (exemplo: dirigir veículos, conduzir armas etc.). Assim, sendo isso um fato do conhecimento geral, experenciado por todos, não se deve realmente valorar em benefício do agente a embriaguez voluntária ou culposa, visto como quem se embriaga propositadamente, ou por imprudência, assume riscos calculados e não pode deixar de prever eventuais conseqüências desastrosas daquilo que faz nesse estado. Por outro lado, quem se transforma em instrumento de si mesmo, para a comissão de um crime planejado (embriaguez preordenada), age evidentemente com dolo e culpavelmente, tal como aquele que contrata e induz o cúmplice à prática do crime (TOLEDO, 1994, p. 323).
Em tempo, deve ser destacado que para Toledo o dispositivo em questão deve ser interpretado de maneira conjugada com o princípio do nullum crimen sine culpa. Tanto é assim que o autor aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa apenas em caso de preordenamento ou dolo eventual (o agente embriaga-se voluntariamente, sem a intenção de praticar o crime, mas prevendo a possibilidade de cometê-lo e assumindo tal risco). Se o indivíduo se embriaga de maneira voluntária ou imprudente, mas sem prever, ou prevendo, mas esperando que não ocorra o crime, a questão resolve-se pela culpa stricto sensu (TOLEDO, 1994, p. 323-325, passim).
Não obstante, ressalvada a possibilidade de o operador do direito recorrer a exercícios interpretativos, é de se concordar com os autores que preconizam estar nossa legislação, ipsis verbis, consagrando uma hipótese de responsabilidade penal objetiva.
5.5. Críticas à teoria.
É sempre importante ter em mente a relação do direito constitucional com o direito penal, nunca perdendo de vista os fins a que este último se propõe nem a importância dos princípios que o norteiam.
Como ensinava Púglia, não pode haver dúvida sôbre o nexo íntimo entre a ciência penal e as leis fundamentais do Estado, quando se pensa que o delito tende a dissolver a ordem social, e faz nascer um conflito entre os direitos do indivíduo e os da sociedade, conflito que deve ser resolvido também com o respeito às leis do Estatuto Fundamental, para tutelar o indivíduo contra os arbítrios da Autoridade social (MARQUES, 1954, p. 36).
Não é por outro motivo que Haroldo Caetano da Silva destaca:
A punibilidade da ação delituosa deve, sempre e necessariamente, ter embasamento na teoria geral do Direito Penal, sob quaisquer circunstâncias, não se admitindo recorrer a malabarismos jurídicos desarrazoados. Não pode a punibilidade encontrar sustentação unicamente em razões práticas de segurança. Deve ela ter, sim, plena fundamentação jurídica (SILVA, 2004, p. 89).
Por outro lado, o mesmo autor ressalta também que, diante da complexidade das relações sociais, por vezes o legislador deixa de seguir os rígidos princípios da técnica legislativa (SILVA, 2004, p. 89).
Assim parece que ocorreu com a teoria da actio libera in causa.
A princípio, embora a doutrina não enfrente a questão nesses termos, parece existir uma violação do princípio do nullum crimen sine conducta.
Nos casos de inconsciência, não existe vontade. Adotada a teoria finalista da ação, para a qual a conduta é o ato humano tendente a uma finalidade, decorre, necessariamente, que a vontade é seu elemento indeclinável.
Assim, “se a vontade constitui elemento da conduta, é evidente que esta não ocorre quando o ato é involuntário” (JESUS, 2003, P. 228). “Quando há inconsciência não há vontade e, portanto, não há conduta” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 376).
Nos atos praticados em estado de intoxicação alcoólica completa sequer existiria, portanto, o primeiro requisito do fato típico.
Tanto é assim que, apesar de constituir um posicionamento minoritário, em alguns casos a jurisprudência já reconheceu que a embriaguez pode afastar o dolo (que, ressalte-se, pertence à conduta) em algumas figuras penais, inexistindo, portanto, tipicidade:
Delito não configurado -Acusado que se achava embriagado quando se opôs à prisão – Incompatibilidade de tal circunstância com a infração em apreço – Absolvição decretada – Inteligência dos arts. 329 e 24, II (atual art. 28, II), do CP - “A ação física própria do delito de resistência deve estar sempre acompanhada de determinado coeficiente subjetivo, sem o qual perde todo seu significado ilícito. Os atos de resistência sem conexão com o estado de consciência do agente de que se opõe ao funcionário público ou a pessoa a que este preste auxílio nada representa sob o enfoque da tipicidade” (TACRIM-SP – AC – Rel. Silva Franco – RT 566/321).
“Evidenciando-se, através da prova, que o réu estava completamente embriagado, quando proferiu expressões injuriosas ao ofendido, o dolo específico do desacato não se caracteriza, sendo acertada a sentença que desclassificou a infração para a contravenção de embriaguez” (TARS – AC – Rel. Venâncio Aires – RT 446/482).
“A conduta do agente que, embriagado, nervoso e irado, profere ameaça contra vítima, não caracteriza o delito previsto pelo art. 147 do CP, uma vez que, para tanto, exige-se ânimo calmo e refletido do indivíduo ao praticar o ilícito, e, que a agressão seja séria, apta a intimidar a vítima” (TACRIM-SP – AC – Rel. Sérgio Carvalhoza – RJD 15/36).
Já a posição de que o ato de embriagar-se já seja execução do crime a ser cometido em estado de inimputabilidade é veementemente criticada, como se pode ver na oportuna colocação de Aníbal Bruno:
Nos crimes por ação, na linha normal da causalidade, não será exato dizer que o fato de pôr-se o agente em estado de inimputabilidade seja um ato executivo do resultado punível. Não o será mais do que o sujeito que se mune de uma arma para ir ao encontro do seu adversário. É mero ato preparatório. E tanto é assim que, se o iter criminis se interrompe nessa fase, não há nada a punir, nem sequer a título de tentativa (BRUNO, 1967, p. 53).
Tal posicionamento também não escapou das críticas de Zaffaroni e Pierangeli, pois o ato de beber carece de tipicidade objetiva:
Que conduta típica de homicídio configura o ato de beber? Trata-se apenas de um ato preparatório atípico, porque a tentativa requer um começo de execução que deve exteriorizar-se, e quando alguém está em um bar, bebendo na companhia da outras quinze pessoas, por maior que seja a sua vontade de embriagar-se para matar seu rival no amor, sua conduta em nada difere da dos quinze bebedores restantes, não se podendo, ainda neste caso, falar de começo de execução. Se neste momento fosse detido pela polícia, não haveria juiz na Terra capaz de condená-lo por tentativa de homicídio, porque há uma total ausência de tipicidade objetiva (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 454, grifo do autor).
E conforme Hélvio Simões Vidal:
Essa é uma das questões mais intrincadas do problema penal da embriaguez. Entrementes, quanto ao segundo critério mencionado (ampliação temporal do conceito de “ato executivo”) é evidente a superficialidade. Ora, aceitando tal critério, deveria ser punido o sujeito que procura embriagar-se para cometer o crime planejado, porém não logra o intento (por uma circunstância qualquer, v. g. pela intervenção de um terceiro ou do ladrão que lhe furta a garrafa, ou porque esta caiu no chão, derramando o líquido). Pense-se ainda na hipótese de o sujeito, planejado o crime, e procurando a embriaguez para cometê-lo, ver-se acometido de profundo sono ou letargia quando ainda rumava para o locus comissi delicti: seria punido porque, acatando-se o critério da doutrina supra, ao embriagar-se, já estaria desenvolvendo o processo executivo do delito!
O ato de embriagar-se preordenadamente é tão preparatório quanto aquele do ladrão que procura uma escada, v.g., para cometer o furto [...] (VIDAL).
Na verdade, o colocar-se em estado de inconsciência só poderia constituir ato de execução de um crime omissivo:
Nos crimes praticados por omissão, em que o sujeito, por exemplo, se narcotiza ou se embriaga até a letargia, para faltar àquilo que tinha o dever jurídico de cumprir, a responsabilidade do sujeito, como imputável, está perfeitamente definida, em relação ao resultado punível (BRUNO, 1967, p. 53).
Tais conclusões também parecem aptas a rebater o argumento de que o dolo ou culpa antecedente se prolonga por todo o processo causal, abrangendo, portanto, o ato típico ocorrido em estado de inconsciência, colocando por terra a tentativa de fundamentar a punição das actiones liberae in causa com base no dolo ou culpa existentes antes do estado etílico:
[...] é inservível o argumento de que é necessário verificar se o embriagado atuou com dolo, ou com culpa, isto é, se quis a prática do fato delituoso, ou se o provocou por ter faltado ao dever objetivo de cuidado, que a situação concreta lhe impunha. Num estado de ebriez plena, não é possível distinguir dolo, de culpa. Como observa Guseppe Betiol, “dolo e culpa, em limites diversos, pressupõem a normalidade da relação psicológica, normalidade que deve ser excluída se o agente atua com condições de capacidade penal” (Diritto Penale, 1985, P. 446) (FRANCO, 2001, p. 468).
Por fim, embora boa parte da doutrina aceite pacificamente a adoção da teoria da actio libera in causa às hipóteses de embriaguez preordenada, com base na noção de autoria mediata (cf., dentre outros: BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 393; BRUNO, 1967, p. 51-53; FRAGOSO, 2003, p. 251; FRANCO, 2001, p. 468; JESUS, 2003, p. 513; MIRABETE, 2004, p. 222; PIERANGELI, 2005, p. 5; TOLEDO; 1994, p. 323, VIDAL, 2007), conforme Zaffaroni e Pierangeli nem mesmo isso seria admissível, porque o sujeito sóbrio não sabe o que fará quando completamente ébrio, sendo que, se uma vez completamente bêbado, cumprir seu intento de quando consciente, isso será mero produto do acaso. Destarte, a punição a título de preordenamento só seria possível quando a própria ação de inebriar-se já é um ato de execução, como nos crimes omissivos, e em alguns casos extraordinários de tipicidade ativa (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 455).
Sendo a embriaguez incompleta, não há necessidade de se falar em actio libera in causa. Se a embriaguez for completa, impossível o reconhecimento do preordenamento (SILVA, 2004, p. 110).
Diante de tantos impasses, a doutrina cuida não apenas de apresentar alternativas para substituir a teoria da actio libera in causa, como também preconiza novas formas interpretativas que a conciliem com o princípio da culpabilidade.
5.6. Alternativas apresentadas pela doutrina moderna.
Modernamente, boa parte doutrina apresenta a solução encontrada pelo direito português como a mais coerente para enfrentar a delicada questão do tratamento da relação entre a embriaguez e a imputabilidade.
Para Alberto Silva Franco, faltou ao legislador brasileiro a mesma dose de sensibilidade e de coragem do legislador português (FRANCO, 2001, p. 469).
José Henrique Pierangeli é da mesma opinião:
Evidente que não se postula aqui a impunidade daquele que voluntária ou culposamente, se embriaga completamente e nesse estado de inimputabilidade, vem a cometer delitos.
Em face de nossa exposição, numa reforma penal vindoura, optamos pela fórmula adotada pelo Código Penal português de 1982 [...].
[...]
A solução adotada pela legislação lusitana põe em evidência dois questionamentos: de uma lado, impede o versari in re illicita, e, de outro, opta pela punição que a política criminal está a reclamar.
[...]
Uma reforma que se pretenda instalar, a partir de nossa instituição, não deve perder a oportunidade para afastar da nossa legislação essa forma de responsabilidade penal objetiva, optando pela fórmula adotada pela pátria-mãe, a cujo legislador não faltou coragem, discernimento e competência para a fixação desse critério moderno e absolutamente científico e justo (PIERANGELI, 1992, p. 302).
Em artigo posterior, o autor ratificou seu posicionamento, nos exatos termos acima citados (Cf. PIERANGELI, 2005, p. 5-9).
Haroldo Caetano da Silva, após apontar o dualismo representado pelos princípios de direito penal de um lado, e pela histórica luta contra o alcoolismo e a criminalidade, de outro, sustenta que a aceitação da teoria da actio libera in causa significa sucumbir ante a solução mais fácil, jogando por terra o a garantia do nullum crimen sine culpa. Por fim, coloca que a solução adotada pelo direito português seria a mais aceitável em termos jurídicos (SILVA, 2004, p. 312-313, passim).
Damásio Evangelista de Jesus, em artigo citado por Haroldo Caetano da Silva, também sugeriu a adoção da regra alemã, que precedeu o disposto na legislação de Portugal. Assim, “não se pune o fato cometido durante o estado de embriaguez: pune-se o fato da embriaguez culpável” (JESUS apud SILVA, 2004, p. 115).
Tal posicionamento, contudo, não é unânime e também não escapou a críticas:
Deve-se reconhecer que na embriaguez completa é possível não restar ao sujeito resíduo algum de consciência e vontade e, assim, a lei realmente consagra uma hipótese de responsabilidade objetiva, sem culpa. Há um dilema: de um lado, o imperativo da culpabilidade, base do sistema, como pressuposto da imputabilidade; de outro, a exigência de proteção empírica e salvaguarda dos interesses sociais em jogo, e o legislador pátrio tem-se decidido por esta. Como já se afirmou, “é o justo preço a pagar, se se não quiser aceitar a impunidade em nome de ideais de justiça; aceita a fórmula preconizada pelo eminente Damásio E. de Jesus, inspirada no direito alemão, criando-se o delito de embriaguez, com sanções próprias, no quadro atual de gritante deficiência dos órgãos de apoio da Justiça Criminal, estaria aberta a porta para escandalosas desclassificações, tanto no júri como no processo comum, tamanha a facilidade de se forjar uma prova de embriaguez”. Além disso, a lei não tem dado margem a injustiças, “porque os casos de embriaguez que se apresentam nos tribunais rarissimamente, para não dizer nunca, são de embriaguez completa, que produza total supressão do discernimento (MIRABETE, 2004, p. 222).
Helvio Simões Vidal também discorda daqueles que defendem ser a solução alemã e portuguesa a mais adequada:
A criação de um delito específico de embriaguez, onde o fato cometido nesse estado funcionaria como “condição objetiva da punibilidade”, nos moldes da legislação alemã, também não atende aos interesses da justiça penal. Forjada ou “arranjada” a prova da embriaguez, injustas desclassificações ocorreriam, punindo-se de forma mitigada crimes de grande censurabilidade. Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, no Brasil, essa opção seria nada menos do que desastrosa. Ademais, não é isento de críticas sérias o dispositivo do direito penal alemão que se pretende copiar para o direito brasileiro.
[...]
Aparentando punir a embriaguez, a fórmula em questão termina por punir, na verdade, um fato praticado em estado de inimputabilidade (Rauschtat), prescindindo, na concepção do artigo, da existência de dolo ou culpa, quando da comissão desse fato. Como conseqüência, não há como desconhecer, o mecanismo opera um salto para trás, sancionando penalmente uma conduta absolutamente indiferente, sob o aspecto penal (o ato de embriagar-se – Vollrausch) (VIDAL, 2007).
Em defesa da teoria da actio libera in causa, o autor em questão sustenta que as exigências de ordem prática, ditadas pela política criminal, devem prevalecer sobre a lógica jurídica, sendo que o fundamento da punibilidade deverá ser averiguado caso a caso:
De responsabilidade objetiva não se trata; o Código não diz, em absoluto, que o delito é sempre imputado a título de dolo. Muito menos que esse é presumido juris et de juris. Diz, apenas, que a imputabilidade não fica excluída. Não diz o Código a que título (dolo, culpa ou preterdolo!) o sujeito será chamado a responder. Essa indagação virá a posteriori, segundo os elementos factuais encontrados no momento da prática do crime (VIDAL).
Já César Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde reportam-se à solução espanhola como mais humana e mais justa, excluindo-se a responsabilidade penal nos casos de embriaguez voluntária ou culposa se não existir preordenamento ou ânimo subjetivo relativo ao crime precedentemente ao ato de beber (BITENCOURT; CONDE, 2004, p. 391-392).
Por outro caminho, Zaffaroni e Pierangeli sustentam ser até mesmo desnecessária a teoria da actio libera in causa, pois, segundo eles, a pessoa que se coloca em situação de inculpabilidade viola um dever de cuidado, preenchendo os requisitos da tipicidade culposa, pelo que é perfeitamente reprovável (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 454).
Após apresentar o posicionamento acima destacado, os doutrinadores propõem a interpretação do art. 28, inciso II, em harmonia com a noção do crime culposo e com as disposições dos arts. 18 e 19, do Código Penal:
Quer o agente beba no intuito de embriagar-se, quer o faça apenas por beber, atingindo o estado da embriaguez pela sua imprudência no conduzir-se, a ação de beber, nos dois casos, é imprudente, tanto pela finalidade como pela maneira como procede, e que o leva a um estado em que não mais tem condições de controlar, conscientemente, os seus atos posteriores. Em tais condições, o agente, se der causa a um resultado típico, ingressa na fórmula do art. 18, II (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 459).
Já para Francisco de Assis Toledo, Damásio Evangelista de Jesus e Heleno Cláudio Fragoso, a actio libera in causa deve ser aplicada apenas nas hipóteses de preordenamento, punindo-se o agente a título de dolo, e nos casos em que não há vontade de cometimento do crime, mas existe a previsibilidade de sua ocorrência e o agente assume o risco de praticá-lo, fundamentando-se a punição no dolo eventual. Nos casos em que o agente não prevê, mas prevendo, espera que não ocorra o delito, a questão resolve-se pela culpa stricto sensu, não havendo necessidade de se recorrer à teoria da actio libera in causa (FRAGOSO, 2003, p. 251, JESUS, 2003, p. 513; TOLEDO, 1994, p. 324;).
Essa via interpretativa coaduna-se com o direito positivo espanhol. Mas, conforme visto, Zaffaroni já advogou existirem incoerências na punição da embriaguez procurada com o objetivo da prática do crime (falta ao agente o domínio do fato), cujas críticas são extensíveis a tese de que “o dolo ou culpa que tem o agente na fase inicial (imputável) prolonga-se por todo o processo causal por ele provocado, alcançando o fato praticado em estado de perturbação da consciência” (SILVA, 2004, p.90).
De tantas alternativas apresentadas pela doutrina, talvez há que se concordar com Hélvio Simões Vidal: “nenhuma das teses propostas, como alternativas ao tratamento penal da embriaguez, sustenta-se em sólidos pilares (VIDAL, 2007).
De fato, a relação entre a embriaguez e a imputabilidade penal é um dos mais intrincados problemas do direito penal da culpa. Os diversos posicionamentos contam com o apoio de juristas de renome, da mesma maneira que esbarram em inconvenientes e fundadas críticas.
6. Considerações finais.
É inegável a necessidade de o direito preocupar-se com a estreita relação entre o alcoolismo e a criminalidade.
Entretanto, há que se examinar a coerência entre a actio libera in causa e os princípios jurídicos norteadores do direito penal.
A teoria, com certeza, apresenta seus méritos. Uma vez que a imputabilidade subsiste quando a embriaguez for voluntária ou culposa, a complicada averiguação do grau de intoxicação (completo ou incompleto) torna-se um problema de somenos importância.
Mais relevante do que isso, porém, é o afastamento do risco da impunidade com base em eventual forjada prova de embriaguez.
Por outro lado, analisado sobre o aspecto formal, o crime é um fato típico e antijurídico, sendo que a culpabilidade, enquanto juízo de reprovação, constitui pressuposto de aplicação da pena. Mas o momento de aferição da culpabilidade do sujeito ativo da conduta delituosa é o tempo da ação. A actio libera in causa, portanto, ao deslocar o fundamento da culpabilidade do agente para um momento anterior à auto-provocação de estado de inimputabilidade (e portanto, anterior à ação), mostra-se como uma construção artificial.
Ante essa situação de conflito, que coloca de um lado os princípios jurídicos (com destaque para o princípio da culpabilidade) e de outro a própria função primeira do direito, qual seja, a manutenção da paz social, que todo dia é posta em xeque pelos índices cada vez mais preocupantes de criminalidade, parece ser plenamente válida a busca por novas formas de fundamentar a punibilidade daqueles que cometem um delito em estado de inconsciência provocado por embriaguez (considerando-se que muitos delitos encontram sua motivação direta ou indireta no consumo abusivo do álcool).
A questão é deveras complexa. As soluções apontadas pela doutrina são várias, sem que se consiga chegar a um consenso.
Inúmeras vozes se levantam, nos mais diversos sentidos.
Uns sugerem que nosso direito penal copie a solução alemã e portuguesa. Segundo outros, a legislação pátria deve continuar como está. E dentre esses, ora há posicionamentos no sentido de que o ato de beber constitui violação a um dever de cuidado, devendo o agente que se embriaga e pratica um crime responder a título de culpa stricto sensu; ora dizem que se deve averiguar o elemento subjetivo existente antes da embriaguez. Dentre os últimos, tanto há os que defendem aplicar-se a teoria em todos os casos de embriaguez voluntária ou culposa, ipsis verbis do art. 28, inciso II, do Códio Penal, quanto os que advogam não poder ser aplicado o dispositivo legal às hipóteses em que inexiste preordenamento ou previsibilidade do fato.
A solução do direito alemão e português pode dar ensejo a desclassificações injustas.
Dentre as soluções de lege lata, a primeira e a última via de interpretação são, pelo menos aparentemente, as que melhor conciliam os reclamos da política criminal com o princípio da culpabilidade. Entretanto, podem culminar em impunidade ou desclassificações teratológicas.
Solução perfeita jamais existirá. Cada qual apresenta seus fundamentos, vantagens e inconvenientes.
Alguns dos maiores estudiosos do direito penal já enfrentaram o problema da conciliação entre o sancionamento do delito praticado pelo ébrio e o princípio da culpabilidade, sem chegar a uma solução consensual.
Não obstante a dificuldade de se tomar um posicionamento dentro dessa vasta discussão, travada por grandes juristas de ontem e de hoje, procura-se aqui, sem a pretensão de esgotar o tema ou resolver a questão, defender a vertente preconizada por Eugenio Raúl Zaffaroni.
Parece deveras razoável crer que o ato de embriagar-se de maneira voluntária ou imprudente constitui uma violação a um dever de cuidado, configurando, destarte, os requisitos da tipicidade culposa.
Assim, a realização de uma interpretação sistemática entre o art. 28, inciso II, do Código Penal, e a noção de crime culposo, conforme preconizado nos arts. 18, inciso II, e 19, caput, do mesmo diploma, dispensará a necessidade de se recorrer aos artifícios da teoria da actio libera in causa.
A objeção da possibilidade do cometimento de desclassificações injustas é válida e se mostra como principal entrave ao posicionamento ora defendido.
Mas se as normas jurídicas decorrem do convívio social, e são feitas para atender às necessidades de regramento e disciplina desse mesmo convívio, não é menos certo que a ameaça penal, enquanto apenas ameaça, jamais na história do homem apresentou a efetividade pretendida por Nélson Hungria.
A intervenção penal só é válida enquanto necessária e útil aos fins a que ela se propõe. Assim, quando não for possível encontrar um ponto de equilíbrio entre as exigências de política criminal e a técnica jurídica, o operador do direito, enquanto tal, deve dar preferência a esta.
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SILVA, Haroldo Caetano da. Embriaguez e a teoria da actio libera in causa. Curitiba: Juruá, 2004.
Bacharel em Direito pelo Centro de Ciências Sociais aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP / Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho - FUNDINOP. Servidor do Ministério Público do Estado do Paraná (Oficial de Promotoria / Assessor de Promotor de Justiça). Aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil 2009.3. Especialista em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Internacional UNINTER.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Paulo Antonio dos. Embriaguez e imputabilidade penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 out 2012, 08:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32131/embriaguez-e-imputabilidade-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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