Resumo: O presente trabalho aborda o tema da cooperação penal internacional com a finalidade de combater a prática do crime de lavagem de dinheiro, buscando demonstrar a relevância desta modalidade criminosa como fonte de recursos para o cometimento de uma grande variedade de delitos no âmbito internacional. Tem por finalidade destacar a importância da adoção de ações cooperativas na formulação de políticas públicas de combate à criminalidade transnacional.
1. Introdução
Os instrumentos convencionais utilizados pelo Direito Penal e Processual Penal para o combate à criminalidade não mais se mostram suficientes para inibir seu crescimento, especialmente tendo em conta o nível de organização e especialização que as empresas do crime tem alcançado. O crime moderno é transnacional, ignora fronteiras e financia-se com capital obtido de forma ilícita. Neste contexto, tem-se mostrado essencial a cooperação entre Estados nacionais na busca de formas de impedir o crescimento do crime organizado, suprimindo uma de suas principais fontes: a lavagem de dinheiro.
Este artigo pretende analisar alguns aspectos pertinentes à cooperação internacional em matéria penal, especialmente no tocante ao crime de lavagem de dinheiro.
Lavagem de dinheiro (ou de capitais) pode ser conceituada, em breves linhas, como o “conjunto de operações comerciais ou financeiras que busca a incorporação na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, dos recursos, bens e valores que se originam ou se vinculam a crimes antecedentes - narcotráfico, contrabando de armas, corrupção, terrorismo, seqüestro, dentre outros” (SENNA, 2003). Em síntese, é a “conversão, transferência ou dissimulação de valores ou bens de origem criminosa” (TORRES, 2007).
Esta prática ilícita, que apenas posteriormente passou a ser tipificada como crime autônomo, teve início provável nos Estados Unidos, em 1920, tendo a máfia italiana e Al Capone como seus precursores. A partir da década de 70, com a expansão dos negócios envolvendo narcotráfico, fonte de grande lucratividade, fortaleceram-se ainda mais as práticas de lavagem de dinheiro (TORRES, 2007).
No âmbito internacional, a configuração inicial deste crime ocorreu com a Convenção de Viena, em 1988, denominada “Convenção Sobre O Tráfico Ilícito De Entorpecentes De Substâncias Psicotrópicas”, aprovado pelo Decreto nº 154/91, nos seguintes termos:
“ARTIGO 3
Delitos e Sanções
1 - Cada uma das Partes adotará as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno, quando cometidos internacionalmente:
(...)
b)
i) a conversão ou a transferência de bens, com conhecimento de que tais bens são procedentes de algum ou alguns dos delitos estabelecidos no inciso a) deste parágrafo, ou da prática do delito ou delitos em questão, com o objetivo de ocultar ou encobrir a origem ilícita dos bens, ou de ajudar a qualquer pessoa que participe na prática do delito ou delitos em questão, para fugir das conseqüências jurídicas de seus atos;
ii) a ocultação ou o encobrimento, da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira dos bens, sabendo que procedem de algum ou alguns dos delitos mencionados no inciso a) deste parágrafo ou de participação no delito ou delitos em questão”.
Logo após, o GAFI – Grupo De Ação Financeira Sobre Lavagem De Dinheiro ou FATF, (do inglês financial action task force), organismo internacional criado em 1989 pelo grupo dos sete países mais industrializados (G7), para combater a lavagem de dinheiro, elaborou 40 recomendações, que regulam conjuntamente questões penais, financeiras e de cooperação internacional, sobre lavagem de dinheiro. Vale registrar que o Brasil é membro do GAFI desde junho de 2000 (BONFIM, 2005).
Cumprindo determinação da Convenção de Viena, o Brasil promulgou, em 3 de março de 1998, a Lei nº 9.613, dispondo sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, e criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF. Esta Lei criminalizou a lavagem de dinheiro como delito autônimo, independentemente da condenação pelos crimes antecedentes, ocupando o lugar de núcleo central do sistema de combate à lavagem de capitais.
A Lei brasileira, por sua vez, procurou ser abrangente ao tipificar o crime de lavagem de dinheiro, buscando transformar o conceito aberto trazido pela Convenção de Viena em tipos penais fechados, nos seguintes termos:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II - de terrorismo;
II – de terrorismo e seu financiamento;
III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;
IV - de extorsão mediante seqüestro;
V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;
VII - praticado por organização criminosa.
VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira
2. A Cooperação Internacional em Matéria Penal
De forma genérica e abrangente, a cooperação jurídica internacional pode ser feita de quatro formas: homologação de sentença estrangeira, extradição, carta rogatória e cooperação judiciária penal stricto sensu.
A homologação de sentença estrangeira consiste no procedimento pelo qual um país admite que uma sentença proferida em outro país seja executada em seu território, por seus órgãos competentes. No Brasil, o procedimento está previsto na Constituição Federal como competência do Superior Tribunal de Justiça, no art. 105, inciso I, alínea ‘i’.
Extradição, por sua vez, é o procedimento no qual um Estado solicita e o outro concede a entrega de uma pessoa para que seja ela processada e punida por algum crime cometido, dentro da jurisdição do país requisitante. No Brasil o instituto é regulado pela Constituição Federal, no art. 5º, incisos LI e LII, e ainda pela Lei nº6.815/80, conhecida como Estatuto do Estrangeiro.
O instituto da Carta Rogatória possibilita a um Estado solicitar o cumprimento de determinada medida processual em outro Estado, como a oitiva de testemunhas, sem a finalidade executória. Seu cumprimento está regulado na Constituição Federal, artigo 109, inciso X, como competência do Superior Tribunal de Justiça.
A cooperação judiciária penal stricto sensu, por sua vez, possui fundamento em um acordo ou tratado internacional, constituindo obrigação ao Estado requerido, o que não acontece, por exemplo, com a carta rogatória. Sua tramitação, ademais, é normalmente muito mais célere, pois a relação é travada diretamente entre as entidades interessadas, sem a necessidade de tramitação diplomática. Dessa forma, o próprio Ministério Público ou Poder Judiciário, no curso de investigação criminal ou ação penal, podem requerer ao Poder Judiciário estrangeiro, ou a outro órgão administrativo centralizador, a execução de determinada medida, investigatória ou constritiva, a depender da previsão no acordo (CABRAL, 2002).
Desde a elaboração da Convenção de Viena até os dias atuais, diversos tratados e acordos internacionais trataram do combate à lavagem de dinheiro. Entre eles, destacam-se a Convenção de Estrasburgo, de 1990; a Convenção de Palermo, de 2000; e a Convenção de Mérida, de 2003.
Tomando como exemplo a Convenção de Mérida, denominada “Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção”, incorporada ao Direito brasileiro pelo Decreto nº 5.687/2006, há nela previsão de cooperação judicial recíproca de forma ampla, nos seguintes termos:
“Artigo 46
Assistência judicial recíproca
1. Os Estados Partes prestar-se-ão a mais ampla assistência judicial recíproca relativa a investigações, processos e ações judiciais relacionados com os delitos compreendidos na presente Convenção”.
Esta Convenção permite a cooperação para a execução, entre outros, dos seguintes atos, merecendo especial atenção os dois últimos:
3. A assistência judicial recíproca que se preste em conformidade com o presente Artigo poderá ser solicitada para quaisquer dos fins seguintes:
a) Receber testemunhos ou tomar declaração de pessoas;
b) Apresentar documentos judiciais;
c) Efetuar inspeções, incautações e/ou embargos preventivos;
d) Examinar objetos e lugares;
e) Proporcionar informação, elementos de prova e avaliações de peritos;
f) Entregar originais ou cópias certificadas dos documentos e expedientes pertinentes, incluída a documentação pública, bancária e financeira, assim como a documentação social ou comercial de sociedades mercantis;
g) Identificar ou localizar o produto de delito, os bens, os instrumentos e outros elementos para fins probatórios;
h) Facilitar o comparecimento voluntário de pessoas ao Estado Parte requerente;
i) Prestar qualquer outro tipo de assistência autorizada pela legislação interna do Estado Parte requerido;
j) Identificar, embargar com caráter preventivo e localizar o produto de delito, em conformidade com as disposições do Capítulo V da presente Convenção;
l) Recuperar ativos em conformidade com as disposições do Capítulo V da presente Convenção.
3. Importância da cooperação internacional no combate à lavagem de dinheiro
Como afirma ASCARI (2003), a lavagem de ativos é atualmente a principal atividade do crime organizado, a essência da macrocriminalidade econômica e que, anualmente, movimenta cerca de 5% do PIB mundial de forma clandestina. Diversos setores criminosos estão diretamente envolvidos e com a lavagem de ativos, como o narcotráfico, o contrabando de armas, o terrorismo, as grandes fraudes, roubos, extorsões, evasão fiscal, crimes financeiros e especialmente a corrupção.
Nas últimas décadas, a lavagem de dinheiro e os crimes associados tornaram-se delitos com conseqüências extra-criminais, desestabilizando sistemas financeiros de países e comprometendo as atividades econômicas a nível mundial.
A lavagem de dinheiro talvez seja o mais importante caso de internacionalização do Direito Penal, fazendo surgir, ante a intensa produção legislativa internacional sobre a matéria, o que se convencionou chamar “sistemas globais de proibição” (JAPIASSÚ, 2008). Estes sistemas caracterizam-se por uma aproximação ou mesmo uma harmonização dos sistemas nacionais e supranacionais com o Direito Penal Internacional.
A formação de regimes globais de proibição é ocorrência rara, apenas verificada em relação a crimes com forte dimensão transnacional, como a pirataria, o homicídio de oficiais diplomáticos, o comércio transfronteiriço de escravos, a circulação de moeda falsa, o tráfico de drogas, etc (DE CARLI, 2008). Neste contexto se insere o delito de lavagem de dinheiro. DE CARLI (2008), tratando da lavagem de dinheiro, afirma que:
“A expansão de normas penais ocorre raramente, em termos internacionais – mas certamente não se viu nada parecido em nível de complexidade de regulações, dos mecanismos de avaliação e de controle”.
A percepção desta relevância, na esfera internacional, ocorreu em momento anterior à Convenção de Viena, em 1988, passando por ela e por diversos outros tratados, além de inúmeros acordos bilaterais de cooperação. A Organização dos Estados Americanos aprovou, em 1992, o “Regulamento Modelo sobre Delitos de Lavagem de Dinheiro Relacionados com o Tráfico Ilícito de Drogas e Crimes Conexos”. O G7 (grupo dos 7 países mais ricos do mundo) criou, em 1989, a Financial Action Task Force, ou Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro – GAFI/FATF, que compilou 40 recomendações para os sistemas jurídicos voltadas ao combate à lavagem de dinheiro. Isto apenas para citar os mais importantes.
A nível nacional, O Brasil criou, com a Lei 9.613/99, que tipificou o crime autônomo de lavagem de dinheiro, o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), como unidade de inteligência financeira do Brasil, no âmbito do Ministério da Fazenda. Por sua vez, o Conselho da Justiça Federal, vinculado ao Superior Tribunal de Justiça criou, em setembro de 2002, a Comissão de Estudos sobre Crime de Lavagem de Dinheiro, e o Ministério Público Federal criou um Grupo de Trabalho em Lavagem de Dinheiro e Crimes Financeiros – GTLD. Por fim, foi criado em 2004, por meio do Decreto nº 4.991, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), subordinado à Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, responsável pelos acordos internacionais de cooperação jurídica internacional, figurando como autoridade central no intercâmbio de informações e de pedidos de cooperação jurídica internacional[1].
A lavagem de dinheiro constitui duplo dano social, primeiro por permitir que criminosos obtenham proveito de dinheiro sujo proveniente de drogas, tráfico de armas, corrupção, terrorismo e outros, e segundo por permitir que estes mesmos crimes sejam financiados com o dinheiro lavado. A lavagem de dinheiro, portanto, é o principal elemento catalisador da criminalidade contemporânea (ASCARI, 2003). Por sua vez, os efeitos macroeconômicos da lavagem de dinheiro trazem consigo conseqüências econômicas devastadoras, enfraquecendo o controle da política econômica pelos governos, afetando adversamente o valor monetário e as taxas de juros, distorcendo os parâmetros usados na tomada de decisões comerciais e corroendo a integridade das instituições financeiras (SENNA, 2003).
Há na doutrina uma grande divergência quanto ao objeto da tutela judicial no crime de lavagem de dinheiro. Um primeiro segmento sustenta que essas condutas afetam o mesmo bem jurídico protegido pelo crime antecedente (BONFIM, 2005), porém, a doutrina majoritária defende que o bem jurídico protegido é diverso do crime antecedente, também havendo divergências sobre se seria a administração da justiça, ou a ordem sócio-econômica (ODON, 2003).
Nesta seara, dada a essencialidade da cooperação jurídica internacional no combate à lavagem de capitais, sobreleva a importância do estudo dos instrumentos de direito internacional, como os tratados e acordos bilaterais ou multilaterais, que conformam o Regime Global Antilavagem de Dinheiro, um verdadeiro regime global de proibição (DE CARLI, 2008).
Ainda é bastante tímida a produção literária nacional sobre a cooperação jurídica internacional em matéria penal, e ainda mais sobre sua relação com o crime de lavagem de dinheiro. Assim, o aprofundamento do estudo destes institutos e, especialmente, das relações entre eles, é de grande importância para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas de combate à criminalidade transnacional.
7. BIBLIOGRAFIA
ASCARI, Janice Agostinho Barreto. Algumas Notas Sobre a Lavagem de Ativos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 11, n. 45, p. 215-223, out/dez, 2003
BONFIM, Márcia Monassi Mougenot; BONFIM, Edílson Mougenot. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2ªed, 2005, p. 19
CABRAL, Maria Cláudia Canto. Anais do Seminário Internacional Sobre Cooperação Judiciária e Combate à Lavagem de Dinheiro. Painel Cooperação Judiciária Internacional.AJUFE. 2002.
DE CARLI, Carla Verissimo . Lavagem de Dinheiro - Ideologia da Criminalização e Análise do Discurso. 1. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. p. 134
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Coleção Para Entender: Para Entender o Direito Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 57.
ODON, Tiago Ivo. Lavagem de Dinheiro: os Efeitos Macroeconômicos e o Bem Jurídico Tutelado. Revista de Informação Legislativa. V. 40, n. 160, p. 333 a 349, out/dez, 2003.
SENNA, Adrienne Giannetti Nélson de. Lavagem de dinheiro. Consulex: revista jurídica, v. 7, n. 144, p. 8-10, jan. 2003
TORRES, Leonia de Oliveira. Lavagem de dinheiro e a realidade enganadora desse crime que representa grave ameaça para a sociedade e a economia. Revista da Esmape, Recife, v. 12, n. 25, p. 847-855, jan./jun. 2007
http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ12AE8428ITEMIDD1B6D4C408344DA181CC4098E703F4ACPTBRNN.htm
[1] http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ12AE8428ITEMIDD1B6D4C408344DA181CC4098E703F4ACPTBRNN.htm
Mestre em Direito das Relações Internacionais pelo Uniceub. Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Milton Carvalho. Lavagem de dinheiro e cooperação internacional: a necessidade de um estudo integrado para uma efetiva política pública de combate à criminalidade transnacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2012, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32812/lavagem-de-dinheiro-e-cooperacao-internacional-a-necessidade-de-um-estudo-integrado-para-uma-efetiva-politica-publica-de-combate-a-criminalidade-transnacional. Acesso em: 23 dez 2024.
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