Francisco Sannini Neto: Delegado de Polícia, Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito e Professor de Direito Penal e Processo Penal da Unisal. Eduardo Luiz Santos Cabette: Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e pós – graduação da Unisal.
Introdução
Entrou em vigor no dia 21 de dezembro de 2012 a Lei 12.760/12, que vem sendo chamada pela imprensa como a nova Lei Seca. Com a inovação legislativa, foi alterado, entre outras coisas, o famigerado artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, que tipifica o crime de embriaguez ao volante.
Antes da alteração, a embriaguez do motorista só poderia ser constatada por meio do exame do etilômetro (“bafômetro”) ou exame de sangue. Ocorre que tais provas dependiam exclusivamente da colaboração da vítima. Assim, tendo em vista que a Constituição da República e o Pacto de São José da Costa Rica garantem o direito do indivíduo de não produzir provas contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegere), era muito difícil a comprovação da embriaguez.
Ainda de acordo com a antiga redação do artigo 306, uma pessoa era considerada embriagada apenas quando constatada a presença de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, o que também era muito questionado pela doutrina, pois dificultava a punição de infratores.
Com a nova Lei Seca houve uma mudança significativa no conteúdo do artigo 306 do CTB. Em linhas gerais, agora o estado de embriaguez pode ser comprovado por diversos meios, tais como exames de alcoolemia, vídeos, testemunhas ou outras provas admitidas pelo nosso ordenamento jurídico.
Em nossa opinião, muito embora o novo tipo penal não esteja livre de críticas, a alteração foi muito positiva, dando efetividade ao Código de Trânsito e auxiliando na redução de acidentes. No ano de 2012 foram inúmeros os casos de acidentes envolvendo motoristas com suspeita de embriaguez, sendo que por uma questão de política criminal, alguns operadores do Direito passaram a forçar o entendimento no sentido de aplicar o denominado dolo eventual nessas situações. Esperamos que com a nova lei esse quadro se modifique.
Feita essa breve introdução, passamos a analisar a nova redação do artigo 306 do CTB.
Tipo Penal Objetivo
Para facilitar a compreensão do tema, vale a transcrição do novo tipo penal, sendo vejamos:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
§ 3o O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.”
Com a nova redação dada pela Lei 12.760/2012, o crime de embriaguez ao volante se caracteriza quando restar constatado que a capacidade psicomotora do motorista foi alterada em virtude do álcool ou de outra substância psicoativa, como, por exemplo, “maconha” ou “cocaína”.
Percebe-se, portanto, que a “alteração da capacidade psicomotora” passa a ser elementar do tipo. Em outras palavras, caso o motorista tenha ingerido bebidas alcoólicas, mas não esteja com a sua capacidade psicomotora alterada, o crime não estará configurado.
Conforme destacado alhures, a grande modificação trazida pela nova Lei está no fato de o tipo penal não mais vincular a constatação da embriaguez, exclusivamente, ao percentual de seis decigramas de álcool por litro de sangue, sendo este apenas um dos meios de prova.
Na verdade, no inciso I, do §1°, do artigo 306, há uma presunção por parte do legislador no sentido de que o motorista flagrado na condução de veículo automotor com a concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar, esteja com a sua capacidade psicomotora reduzida. Trata-se, nesse caso, de uma regra clara. Constatados os mencionados índices, há uma presunção legal de embriaguez e o infrator poderá ser preso em flagrante. Neste aspecto pode-se afirmar que se a ebriedade é constada por meio do exame de etilômetro ou exame toxicológico de sangue nos patamares legalmente estabelecidos, se está diante de um crime de perigo abstrato.
Sob o aspecto administrativo, se for constatada a concentração de álcool em níveis inferiores ao mencionado no inciso I, não haverá presunção de embriaguez geradora de punição na seara penal. Contudo, nos termos do artigo 276 do CTB, com a redação disposta pela nova Lei, qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o motorista às penalidades previstas no artigo 165.
Voltando para o campo penal, ainda que os números constantes no inciso I, do §1°, do artigo 306, não sejam constatados, nada impede que a materialidade delitiva da conduta seja comprovada por meio do exame clínico, que, aliás, é o mais indicado. Tal conclusão é subsidiada pelo fato de que o elemento objetivo do tipo é a verificação da alteração da capacidade psicomotora do motorista. Assim, se a perícia apontar nesse sentido, o crime estará caracterizado independentemente do resultado obtido pelo exame de etilômetro. Neste sentido é destacável que entre os incisos I e II do artigo 306, CTB o legislador não utilizou a conjunção aditiva “e”, mas sim a alternativa “ou”, demonstrando que a comprovação da alteração da capacidade psicomotora pode dar-se pela constatação dos graus de alcoolemia “ou” por meio de outros sinais.
No inciso II do mesmo dispositivo surge o primeiro deslize do legislador. Considerando que o tipo determina que as condutas do caput serão constatadas por “sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alteração na capacidade psicomotora”, muitos poderão entender que estamos diante de uma norma penal em branco, o que, em última análise, impediria a aplicação da nova Lei.
Com a devida vênia, o complemento a que faz menção o dispositivo constitui apenas um plus ou um adendo aos outros meios de constatação da embriaguez previstos no próprio tipo do artigo 306.
Isto, pois, no §2°, o legislador deixa claro que a verificação da redução da capacidade psicomotora do motorista poderá ser obtida mediante diversos meios de provas, tais como depoimento testemunhal, exame clínico e até por vídeos. Por tudo isso, não concordarmos que se trata de uma norma penal em branco. Além disso, para aqueles que não se satisfaçam com essa explicação, é fato que está em vigor atualmente a Resolução CONTRAN n. 206, de 20 de outubro de 2006, a qual nada mais faz do que repetir as normativas já delineadas no atual § 2º., do artigo 306, CTB de acordo com a nova redação dada pela Lei 12. 760/12. A verdade é que o recurso à Resolução do CONTRAN é despiciendo mesmo. Isso porque quando se fala em prova penal, se está tratando de matéria Processual Penal, cuja origem somente pode ser, por força constitucional, lei ordinária federal. O CONTRAN não tem atribuição para regular matéria de prova penal, não pode “legislar” sobre matéria processual penal. Portanto, é de se concluir que o inciso II do artigo 306, CTB é autoaplicável de acordo com as normas processuais penais referentes às provas, sendo, como já afirmado acima, eventual Resolução do CONTRAN, mero adorno que somente pode ter alguma maior utilidade no ramo administrativo. Seria mesmo surreal imaginar o CONTRAN regulamentando prova pericial, prova testemunhal, prova documental etc. na seara processual penal.
Em nosso entendimento, a regulamentação a ser feita pelo CONTRAN teria como destinatários apenas os agentes de trânsito, que se utilizariam deste ato normativo para decidir sobre a necessidade ou não de encaminhamento do condutor do veículo até a Delegacia de Polícia.
Nesse ponto, destacamos que, sem embargo do disposto no §2°, do artigo 306, de acordo com o Código de Processo Penal, sempre que a infração deixar vestígios, é indispensável a realização de perícia. Desse modo, mesmo diante de uma prova testemunhal ou de um teste de alcoolemia, é necessário o encaminhamento do suspeito ao Instituto Médico Legal para a realização do exame clínico ou de sangue. Essa obrigatoriedade da prova pericial nos chamados “crimes de fato permanente” (“delicta facti permanentis”), somente pode ser superada muito excepcionalmente nos termos do artigo 167, CPP, acaso a falta da perícia não se dê por desídia dos agentes estatais, mas por obra do próprio infrator.
Diante desse novo quadro, parece-nos que o exame clínico constituirá o principal meio de prova da embriaguez, haja vista que o médico legista é o agente mais indicado para avaliar o estado do investigado. Assim, testemunhas, vídeos e outros meios de prova seriam utilizados apenas de maneira subsidiária, quando não for possível a realização de perícia, de acordo com o já citado artigo 167, CPP ou mesmo como coadjuvantes dos exames periciais mais adequados.
Com o objetivo de ilustrar essa situação, imaginemos o caso em que o suspeito se recuse a colaborar com o exame clínico ou não possa fazê-lo em virtude dos ferimentos causados por um acidente. Em situações como esta, a prova pericial poderá ser substituída por depoimento de testemunhas ou por vídeos. Também nada impede que sendo realizadas as perícias, também se colham provas testemunhais, vídeos, fotos , objetos apreendidos etc. a fim de reforçar o arcabouço probatório.
Questão interessante e que provavelmente repercutirá na doutrina, se refere à diferenciação feita pelo legislador nos §§1° e 2º do artigo 306. No primeiro, a Lei diz que a “constatação” da alteração da capacidade psicomotora do agente poderá ser feita de algumas formas e no segundo o dispositivo usa o termo “verificação”.
Ao interpretar o tipo penal, não podemos fechar os olhos para a mencionada distinção, feita, ao que nos parece, de maneira propositada. Desse modo, entendemos que o termo “constatação” esta vinculado a critérios objetivos, sem deixar margens para a valoração do intérprete (v.g. exame de etilômetro). Por outro lado, o termo “verificação” é mais fluído e permite uma análise subjetiva por parte dos operadores do Direito (v.g. provas testemunhais, vídeos, exame clínico etc.). Aliás, essa distinção serve, inclusive, como subsídio para o entendimento de que no inciso I,do §1°, nós temos uma presunção legal da alteração da capacidade motora do condutor do veículo.
Voltando para a análise do caput do artigo 306, chamamos a atenção do leitor para uma outra modificação significativa em relação ao texto anterior. Com a nova redação, foi retirada a expressão conduzir veículo automotor “em via pública”. Isso significa que, a partir de agora, o motorista que for flagrado dirigindo veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada, poderá ser preso em flagrante mesmo que tal fato ocorra em uma área privada, como estacionamentos, condomínios, garagens etc. Entretanto, essa questão ainda pode gerar alguma discussão doutrinário – jurisprudencial na medida em que o artigo 1º., do Código de Trânsito Brasileiro estabelece que ele regula “o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação” (grifo nosso). Ora, se o CTB se aplica somente às vias “abertas à circulação”, isso significa que suas normas seriam aplicáveis tão somente às vias públicas. Sabe-se que, por exemplo, se pode conduzir um veículo automotor dentro de um sítio particular sem necessidade de licenciamento ou CNH. Acontece que na parte penal há o argumento de que quando o legislador quis estabelecer o alcance típico somente para as vias públicas o fez. Enfim a discussão será certamente intensa, mas parece que realmente houve uma abertura tipológica para as áreas privadas. Assumindo essa postura da abertura do tipo para as vias privadas, ainda se migrará para outra linha de discussão, agora mais profunda do que a simples interpretação gramatical do texto. Trata-se de considerar se há lesividade a justificar a tipificação criminal da condução sob efeito de álcool ou outras substâncias em área privada. Haveria nessa situação perigo concreto ou mesmo abstrato a algum bem jurídico a justificar a intervenção penal? Parece-nos que qualquer resposta apriorística e generalizante será equivocada. Somente a análise detida do caso concreto submetido à jurisdição poderá solucionar o problema. Pode haver caso em que haja algum perigo, inclusive concreto e também pode haver outro caso em que não se justifique a movimentação do aparato estatal criminal devido à ausência de tutela de bens jurídicos postos em risco. Exemplificando: no primeiro caso um indivíduo dirige embriagado um carro no quintal de sua casa muito espaçoso e na presença de várias pessoas, inclusive crianças que participam de um churrasco. No segundo, o sujeito está só num sítio afastado completamente de qualquer contato social e guia seu carro nos limites da propriedade sem que haja qualquer pessoa ou propriedade alheia correndo risco de dano. Assim sendo, a conclusão é a de que a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma em relação à condução ébria em locais privados será aferida na efetiva aplicação da lei e não abstrata e genericamente falando.
Em tempo, é mister não olvidar que o crime previsto no artigo 306 do CTB continua sendo de perigo abstrato, ao menos em seu § 1º., inciso I, o que, segundo alguns entendimentos, fere o princípio da ofensividade. Entendemos que o ideal seria que o legislador fizesse menção ao perigo de dano na tipificação da conduta, o que estaria de acordo com diversos conceitos modernos do crime, como a teoria de tipicidade conglobante, por exemplo. Já no caso do inciso II do mesmo § 1º., do artigo 306, CTB, o crime é de perigo concreto já que são exigidos “sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora”.
Outra questão interessante diz respeito à possibilidade de contraprova por parte do investigado. Seguindo uma tendência iniciada pela Lei 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal no ponto que trata das prisões e medidas cautelares diversas, e que já havia introduzido o contraditório mesmo durante a fase preliminar de investigação, a Lei 12.760/2012 também consignou uma previsão nesse sentido.
Previsões como estas demonstram uma nova postura do legislador diante do investigado, não mais o tratando como objeto de direito, mas, sim, como um sujeito de diretos. No mesmo diapasão, vem ganhando força o princípio do contraditório na fase pré-processual ou de Inquérito Policial, o que apenas reforça o conjunto probatório produzido nesta fase e consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, é dever da Autoridade Policial atender as solicitações do investigado no momento de requisitar o exame pericial. Mais do que isso, o sujeito passivo da investigação também poderá submeter-se a um exame feito por perito particular, sendo que o resultado do laudo será apreciado pelo Delegado de Polícia ou pelo Juiz no momento da formação dos seus convencimentos.
É ainda interessante destacar que o § 3º., do artigo 306, CTB afirma que “o Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”. Essa normativa apresenta-se inútil: primeiro porque a equivalência já é explicitada no artigo 306, § 1º., I, CTB pela própria lei, segundo porque também já há o Decreto 6488, de 19 de junho de 2008 que indica as mesmas equivalências ora expostas na lei.
Com relação à pena, destacamos que não houve qualquer alteração (pena de 1 a 3 anos), sendo perfeitamente possível a fixação de fiança pelo Delegado de Polícia, nos termos dos artigos 322 e seguintes do Código de Processo Penal.
Oxalá a nova legislação tenha um destino menos tumultuoso e truncado do que a anterior Lei 11.705/08, permitindo um tratamento mais adequado e rigoroso com relação a todos aqueles que teimam em misturar álcool, drogas e volante, colocando em risco a incolumidade pública.
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