Resumo: Desenvolve argumentação comparando as obras de Hesse, Lassalle e Schmitt, mostrando as dificuldades de haver, equilíbrio razoável das doutrinas modernas sobre a liberdade, principalmente quando analisadas sob a perspectiva constitucional. Mostra que desde o momento histórico, chamado iluminismo, já se exclamavam dúvidas a respeito das possibilidades fáticas do projeto moderno.
Palavras chaves: Constituição, Hesse, Lassalle e Schmitt.
I. Introdução
O problema da liberdade quando abordada a partir dos paradigmas modernos sempre apresentou o impasse quanto à sua possibilidade de realização. Desde Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, a liberdade foi pensada como um direito natural, uma possibilidade ou mesmo como uma ameaça.
O século XIX foi o tempo do positivismo, da busca de segurança. Foi o momento em que esteve mais evidente a implantação de toda a teoria desenvolvida entre os séculos XVII e XVIII. Mas foi ao mesmo tempo um período de desespero, por conta das profundas transformações provocadas pelo desenvolvimento da ciência, principalmente no nível da tecnologia.
Os efeitos dessas transformações foram notórios e o significado de “povo” foi se tornando, cada vez mais próximo do que temos a partir do século XX, “massa” ou “sociedade de massa”. O (sub)urbano, significando o sub civilizado, logo se aproxima do civilizado com o aumento dos grandes centros urbanos em área e população. A convivência está bem próxima. Então, estamos distantes daquele tempo em que Locke pensava a possibilidade da propriedade articulada com a liberdade via o trabalho, tomando como exemplo a propriedade da terra. Desde então a liberdade individual está sempre sendo desafiada por um clamor coletivo e nesse sentido sempre vista como uma ameaça.
Assim vem o problema de Weimar, sempre tomada como exemplo, quando precisamos nos referir à crise da liberdade moderna, principalmente quando tal crise alcança o âmbito constitucional no século XX. Talvez possamos ver Weimar como a grande tentativa de fazer valer as liberdades modernas no seu sentido moderno, tal como discutida em Hobbes, Locke e Kant num contexto de Europa bastante turbulento.
É dentro desse universo restrito de Weimar que se insere a obra de Schmitt, que também é reflexo daquele momento em que Lassalle defendia os direitos coletivos refletida na sua proposta de uma “sociologia constitucional”. É sempre o mesmo conflito em tempos renovados. E não é por caso que tais dilemas vão se refletir na obra de Hesse quando observada a preocupação entre a liberdade e o coletivo, em tal sociedade, refletindo sobre a importância da “força normativa” da Constituição.
Ainda assim, o que parece passado tem se tornado presente. Já não é necessária tanta atenção para perceber que no Brasil e na América Latina, as ideias socialistas de Lassalle estão saídas do papel e tornando-se uma prática institucional. Basta observar com atenção o que pregou Lassalle e o que vem sendo feito inclusive ao nível constitucional, a partir do que está prescrito nas recomendações da ONU, via o Plano Nacional de Direitos Humanos – 3 (PNDH -3).
II. Liberdade Moderna e Constituição
Agora que o jusnaturalismo que tem origem liberal, vem sendo interpretado pelo viés comunista e não mais pelo liberal-individualista, ganhou força o sujeito coletivo em detrimento do individual. Chega impressionar como no Brasil há uma insistência em colocar Marx o criador da “ditadura do Proletariado” como defensor da democracia e a sociologia jurídica como uma interpretação comunista do Direito, a famosa análise crítica.
Antes de adentrar pela obra de Lassalle é necessário fazer algumas reflexões sobre a obra de Marx: “Para Além da Questão Judaica”, por quem Lassalle foi muito influenciado e manteve diálogos.
Nessa obra Marx trata da questão da emancipação dos judeus na Alemanha do século XIX, usando inclusive argumentos de Bruno Bauer. Inicia o livro exatamente no ponto em que pergunta qual emancipação pretendem os judeus, se a cívica ou a política. Usando argumentos de Bauer já afirma, desde o início, que se ninguém é livre na Alemanha por que os judeus seriam?
Essa insinuação de que ninguém é livre na Alemanha, marca o desenvolvimento de sua argumentação, tendo em vista atacar o modelo de Estado oriundo das teorias contratualistas que chegam de forma emancipada e mais amadurecida no século XIX. O Estado contratualista sempre foi chamado a dialogar com o direito natural e a questão da relação entre Estado, Direito e Sociedade na modernidade. Nesse ambiente, desenvolve-se concepção, também moderna, de indivíduo que, por sua vez, torna-se abrigada no jusnaturalismo que, sempre regido pelo liberalismo de J. Locke preservará os indivíduos dos abusos do Estado e do poder em geral, na busca incessante de manutenção da ordem. A relação entre a necessidade da ordem e os limites do poder sempre foi um dilema moderno que chega aos nossos dias. Com isso, Marx não só critica os judeus, como também, os chama de egoístas por quererem uma emancipação exclusivamente para eles.
No decorrer da sua argumentação, Marx vai deixando cada vez mais claro quais são suas intenções, objetivos e valores. Aponta então, para a questão da origem da modernidade jucaico-cristã e, por isso, nessa obra já não fala com freqüência em Estado burguês, como de costume e sim, Estado cristão, como equivalente. Por isso, afirma:
O Estado cristão conhece apenas privilégios. Nele o judeu possui o privilégio de ser judeu. Como judeu, ele tem direitos que os cristãos não têm. Por que pretende ele direitos que não tem e de que os cristãos não gozam?
Quando o judeu quer ser emancipado do Estado cristão, deve exigir que o Estado cristão abdique do seu preconceito religioso. Abdica ele, o judeu, do seu preconceito religioso? Tem ele, portanto, o direito de exigir a outrem essa renúncia à religião? (2009, p. 40).
Ao colocar os argumentos judaicos contra os cristãos cria um conflito de interesses na essência da modernidade. De fato, a modernidade se desenvolve a partir de conflitos que lhes são inerentes tais como: indivíduos versus sociedade, Estado versus indivíduo, ordem versus liberdade, liberdade versus Estado etc. Entretanto, o conflito não está necessariamente na doutrina judaico-cristã e sim, em como desenvolver direitos individuais numa sociedade que se desenvolve ao ponto de se tornar uma “sociedade de massas” como a nossa e, mesmo aquela que já despontava no tempo de Marx.
Depois de argumentar sobre e como os conflitos entre o judaísmo e o cristianismo impediriam a resolução do pleito favorável aos judeus, Marx renova sua ênfase na questão do Estado, apontando sempre para o fato de que o Estado cristão, ou seja, esta versão do Estado moderno, não é o verdadeiro Estado. A princípio parece indicar que Marx está se referindo a um Estado laico e simplesmente isento de influências de instituições religiosas. Então diz:
A emancipação política do judeu, do cristão (em geral do homem religioso) é a emancipação do Estado relativamente ao judaísmo, ao cristianismo (em geral à religião). O Estado – na sua forma, no modo peculiar à sua essência, como Estado – emancipa-se da religião na medida em que se emancipa da religião de Estado, i. é., na medida em que o Estado, como Estado, não reconhece nenhuma religião, na medida em que o Estado se confessa, antes, como Estado (2009, p. 47, 48).
Aos poucos Marx vai expondo seus argumentos e mostrando que a questão judaica foi apenas um exemplo a respeito dos seus objetivos. Logo vai demonstrar qual a sua concepção de homem, liberdade e os rumos que o Estado enquanto instrumento da “ditadura do proletariado” deveria tomar. E diz:
O homem, na sua realidade mais próxima, na sociedade civil, é um ser profano. [...] o Estado pode e tem que prosseguir até a supressão da religião, até o aniquilamento da religião, mas só como ele prossegue até a supressão da propriedade privada, até o máximo, até o confisco, até o imposto progressivo, como ele até a supressão da vida, até a guilhotina (2009, p.51, 54).
Começa então a mostrar que após a abolição da religião e da religião de Estado, o “Estado ateu”, teria como função aniquilar todo tipo de liberdade individual e o meio para isso, seria uma “revolução permanente” incentivada por uma guerra de todos contra todos e pela violência. O Estado cristão, afirma Marx, é o “Estado imperfeito”. Podemos observar com isso, que Marx afirma que o Estado tem que ser ateu e não, simplesmente laico ou secularizado. Porém, ao utilizar o problema judaico Marx esconde que sua intenção não é somente afastar a religião do Estado e sim, abolir os valores judaicos e cristãos que deram origem à sociedade moderna, ao Direito moderno e ao Estado moderno.
Com a imposição da ditadura do proletariado, através de um Estado ateu o “drama político”, ou seja, os conflitos decorrentes da diversidade política acabarão. Tal objetivo exige, segundo Marx, uma revolução e uma violência permanentes no sentido mesmo do coletivo sufocar o individual.
Em seguida passa a opor o que ele chama de democracia comunista ou socialista e a democracia liberal, que tem suas bases valorativas e históricas assim, como todo o pensamento moderno no cristianismo. Então, Marx afirma que o homem verdadeiro é o homem coletivo, genérico e não aquele homem individualizado em busca de si mesmo e do encontro com Deus, tal como prega o cristianismo. Por isso, Marx entende que:
A democracia política é cristã na medida em que nela, o homem passa por ser soberano, por ser supremo, mas é o homem no seu fenômeno insocial, incultivado, o homem na sua existência contingente, o homem tal como anda e está, o homem tal como está corrompido, perdeu a si mesmo, se alienou, se encontra dado sob a dominação de relações e de elementos inumanos – numa palavra, o homem que ainda não é um ser genérico real (2009, p. 58, 59).
Então, já no final da obra, Marx chega ao centro da sua crítica que é a negação dos Direitos Humanos. Com clareza ele observa:
A incompatibilidade da religião com os Direitos Humanos reside tão pouco no conceito dos Direitos Humanos, que o direito de ser religioso do modo que lhe aprouver, de exercer o culto da sua religião, até está expressamente contado entre os direitos humanos.
Os direitos humanos são como tais, diferentes dos direitos do cidadão. Quem é homem diferente de cidadão? Ninguém senão o membro da sociedade civil. Por que é que o membro da sociedade civil é chamado de “homem”, por que é que os seus direitos são chamados direitos do homem? A partir de quê nós podemos explicar esse fato? A partir da relação do Estado político com a sociedade civil, a partir da essência da emancipação política.
Antes de tudo constataremos o fato de que os chamados direitos do homem e do cidadão, não são outra coisa senão os direitos do membro da sociedade civil burguesa, i. é., do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade (2009, p. 62, 63).
Em seguida ele analisa os princípios da liberdade, igualdade, propriedade privada e segurança, tal como na Constituição francesa de 1793, que é apontada pelo mesmo como o alcance mais radical dos ideais burgueses até então.
Na obra de Lassalle todas essas questões se transformam num problema constitucional. Sem dúvida que o problema constitucional é um problema político como se refere Lassalle, entretanto não é de partido político. É político por que a Constituição para reger uma democracia precisa estar assentada numa república. E, se o Direito é oriundo do Estado, sua maior fonte de legitimidade é através da democracia liberal. Porém, todo esse fenômeno que pode ser entendido como uma conseqüência do grau de maturação da república e da democracia liberal, Lassalle assim como Marx, nega tudo isso.
Para tanto inicia sua obra perguntado a respeito do que é uma Constituição e qual a sua essência. Desenvolve sua argumentação tomando a Constituição da Prússia de 1850, como referência. Nesse sentido, vai desconstruindo as argumentações tradicionais de origem, inclusive contratualistas, que apontam para a Constituição como o marco maior de um pacto entre o soberano e o povo ou entre o Estado e sociedade civil. Discordando desses argumentos segue em busca do que ele chama de “verdadeira essência” ou o “verdadeiro conceito de Constituição”, além da diferença entre Constituição e lei (2001, p. 07). Daí afirma:
Ambas, a lei e a Constituição têm evidentemente, uma essência genérica comum.
Uma Constituição, para reger, necessita de aprovação legislativa, isto é, tem que ser também lei. Toda via não é uma lei como as outras, uma simples lei: é mais do que isso. Entre os dois conceitos não existem somente afinidades; há também dessemelhanças. Essas fazem com que a Constituição seja mais do que simples lei e eu poderia demonstrá-las com centenas de exemplos (2001, p. 07).
Argumenta então Lassalle, que no trato da lei aceitamos as alterações devidas, inclusive aqueles cobradas pelo tempo sem tantas contestações, mas quando trata-se da Constituição ocorre protesto no sentido de torná-la inalterada. Continua a observar todos os dispositivos que existem nas Constituições no sentido de impedir que ela se transforme num mecanismo de impor uma nova ordem que possa atender a outros interesses políticos de partidos ou grupos de pressão. Fica ressaltada a importância da estabilidade duradoura de uma Constituição e com isso a sua sacralidade para a manutenção de uma ordem social estável. Por isso ela se torna uma lei “fundamental”.
Desde Aristóteles identifica-se a busca sobre o entendimento a respeito do que é uma Constituição, a sua função e a sua composição normativa. É possível então identificar duas dimensões que não estão afastadas, mas para entendimento, podem ser abordadas diferentemente. São elas: a Constituição enquanto parâmetro estruturador do ordenamento jurídico e parâmetro regulador das relações humanas. A primeira é da competência do estudioso das ciências jurídicas, a segunda é do interesse de todos, particularmente daquele universo mal definido que usualmente chamamos de “povo”. Tudo isso poderia alcançar ponto pacífico se fosse possível alcançar os objetivos de Lassalle: perceber a essência da Constituição.
Para Lassalle três são os pilares que justificam uma lei fundamental:
1° Que a lei fundamental seja uma lei básica, mais do que as outras comuns [...]; 2° Que constitua [...] o verdadeiro fundamento das outras leis, [...]; 3° Mas as coisas que têm um fundamento não o são por um capricho; existem porque necessariamente devem existir. [...] Os planetas, por exemplo, movem-se de modo determinado. Este movimento responde a causas, a fundamentos exatos ou não? Se não existissem tais fundamentos, sua trajetória seria causal e poderia variar a todo momento, quer dizer, seria variável (2001, p. 09, 10).
Entretanto, nesse tempo de Lassalle, na segunda metade do século XIX, a sociologia era uma das mais fortes expressões do pensamento positivista. Talvez até filha primogênita do Positivismo se adotássemos a visão de Augusto Comte. A sociologia positivou-se inclusive antes do Direito sofrer tal influência.
Lassalle adota uma visão nitidamente positivista da Constituição só que contestando o modelo vigente de positivismo constitucional e optando por um viés ideológico socialista-comunista. Naquele momento, era comum a busca da cientifização das ideologias políticas e do que, posteriormente passou a ser chamado, “ciências humanas”. Ou seja, o socialismo na interpretação de Lassalle, é visto como um meio preciso de chegar a uma verdade real e ao mesmo tempo torna-se fonte inspiradora para o estabelecimento de dogmas constitucionais.
Identificar as leis que regem o comportamento individual e coletivo sempre foi o objetivo primeiro da Constituição, quanto pensada como reflexo do “Espírito” de um povo. Segundo Montesquieu: “As forças individuais não se podem reunir sem que todas as vontades se reúnam. À reunião dessas vontades, é o que denominamos Estado civil. [...] formam elas no conjunto, o que chamamos de Espírito das Leis” (1973, p. 36).
A partir desse debate positivista e da sua aplicação Lassalle aplica alguns dos principais conceitos de Marx à sua obra. Detalha os conceitos de estrutura e superestrutura quando analisa o contexto sobre o qual tem se desenvolvido as Constituições até aquele momento. Foca tradicionalmente na burguesia, nos banqueiros, na aristocracia e mostra que, de fato, relações de poder tornam-se instituições jurídicas e que o Direito é o poder.
Segundo Marx a sociedade moderna capitalista poderia ser entendida a partir de dois conceitos que se identificam no plano da realidade a “estrutura” e a “superestrutura”. A estrutura é aonde ocorre a relação de classe baseada no histórico e irreconciliável conflito entre a burguesia e o proletariado. Já a superestrutura é a dimensão ideológica que é constituída pelo Estado, Direito e Religião. Sendo assim, Marx rompe com toda a tradição jusnaturalista e contratualista que vinha desde ao menos os séculos XVII e XVIII, inclusive com Rousseau, que tanto lhe influenciou com o Contrato Social. Isto porque se para os contratualistas primeiro nasce o Estado político para depois a sociedade civil, em Marx, primeiro aparece a sociedade civil, por sua vez burguesa, para depois o Estado também burguês que, juntamente com a religião e o Direito manteriam as relações de classe e de exploração nos moldes existentes.
Segundo Marx:
Vossas próprias ideias são um produto das relações burguesas de produção e de propriedade, assim como vosso direito é apenas a vontade da vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de existência da vossa classe. [...]
O poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra (2000, p. 63, 67)
Daí porque a pretensão de Lassalle em estabelecer uma Constituição popular-socialista. Lassalle traz a importância da imutabilidade da Constituição, mas aponta para um problema inerente ao Direito. Qual seja: a influência das relações de poder no Direito começando pela Constituição. Nesse sentido, é sempre claro que o poder dos grupos de pressão ou classe, legitimavam seus status no Direito e através dele, tal como foi em todas as sociedades, inclusive nas comunistas.
A obra de Lassalle, especificamente as ideias contidas nesse livro, A Essência da Constituição, são muito semelhantes aos dilemas e conflitos do nosso tempo, principalmente quando tratamos do “ter direitos”. Ao mesmo tempo, uma concentração da propriedade e uma concepção de direitos bastante vinculada aos detentores da riqueza e produção do capital. Por outro lado, temos classes ou estamentos sem acesso nem mesmo a terra para plantar, num contexto de ressurgimento das doutrinas socialistas que vão rivalizando com as ideias liberais em andamento.
Então Lassalle e Marx, negam as Constituições liberais chamando-as de “burguesas”, reduzindo toda a longa e alternada história da construção do Direito ocidental a uma mera imposição de uma classe, que de fato, só alcança o poder efetivo no próprio século XIX. A “sociologia da constituição” proposta por Lassalle ocorre em função dele propor, tal como fez Marx, a inversão hegeliana, ou seja, o conflito no mundo das ideias substituído pelo conflito no mundo material e econômico da luta de classes. Deste modo, a Constituição deveria refletir a realidade da maioria que era a classe proletária e, a partir de então, não haveria mais alterações no Direito e na Constituição. A imutabilidade que Lassalle propõe não é aquela que é tão presente nos estudos sobre Direito constitucional e que ainda hoje reclama debates e controvérsias. A imutabilidade da qual fala é a que diz respeito à revolução da classe trabalhadora, legitimada no Direito e na Constituição. Essa perspectiva do referido autor fica muito evidente quando afirma:
Quando num país irrompe e triunfa a revolução, o direito privado continua valendo, mas as leis do direito público desmoronam e se torna preciso fazer outras. [...]
Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura?
A resposta é clara e parte logicamente de quanto temos exposto: quando essa constituição escrita corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país.
Onde a constituição não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país (2001, p.33).
Para os socialistas o grande desafio era como legitimar um modo de produção que não estivesse centrado na propriedade privada e sim, na relação de produção do capital sem a propriedade privada. Na dimensão jurídica, e aqui no assunto em pauta, o problema parece ser como trocar uma moral por outra e, traduzir isso em meio aos debates sobre “justiça” na esfera do Direito.
Para Lassalle a Constituição deveria refletir o mundo real. Esse universo real era para ele a realidade do proletariado. Desde modo a Constituição liberal deveria ser substituída por uma Constituição socialista que estaria respalda numa suposta cientificidade de uma “sociologia da constituição”.
Se couber ao Direito representado aí na Constituição respaldar apenas o real como queria Lassalle, o Direito perde automaticamente o seu caráter deontológico para se tornar no máximo uma expressão empírica mais sofisticada da sociedade.
No nosso tempo, segunda metade do século XX, Konrad Hesse analisa a importância da Constituição num ordenamento jurídico fazendo um contraponto à obra de Lassalle.
De fato há diferenças de contextos que impedem uma análise que não leve em consideração certos detalhes. O tempo de Lassalle é o século da revolução industrial, que de fato como acusava Marx aglomera as pessoas em cidades que não tinham nada parecido com a urbanização do século XX. Além disso, e muito importante, a “questão social” quando aparece no século XIX, juntamente com a identificação das “classes perigosas” ocorre num ambiente no qual a filantropia ainda era exercida por instituições de caridade religiosas ou grêmios financiados por particulares. Algo bem diferente da formação de um Estado do Bem-estar social que inclusive ganha seu apogeu exatamente nas décadas em Hesse está atuando.
O Desenvolvimento do Estado no século XX, juntamente com sua estrutura e burocracia jurídica, deu ao mesmo uma capacidade de controle das populações nunca visto até então. Cada vez mais o aparato repressor, mesmo que especializado, cede lugar ao controle por uma burocracia jurídica sofisticada e um Direito fortemente regulador dos comportamentos e relações humanas.
A posição de Hesse é oposta à de Lassalle. Daí por que analisa e propõe A Força Normativa da Constituição. Ainda que a “questão constitucional” para Hesse seja bem semelhante à colocada por Lassalle, para o primeiro, entretanto, mesmo que a Constituição não possa refletir todo o contexto do mundo fático tem a importância de equilibrar poderes e interesses dentro deste mesmo universo.
As questões constitucionais não podem ser reduzidas a questões políticas como queria Lassalle por que a Constituição seria reduzida às ideologias políticas. Esta tese implica necessariamente deixar para traz toda a construção do Direito, principalmente na sua fase moderna.
Hesse esteve atento a todos esses problemas e admite que tais questões não são coisa do passado. Em outras palavras, as relações de poder possuem suas próprias normas que nem sempre estão de acordo com as normas jurídicas. Qual Constituição moderna resistiu à mudanças do tempo e não veio de uma forma ou de outra a se adequar á realidade da vida real? Por outro lado, é muito diferente entender que a Constituição só é valida se se adéqua ao seu contexto imediato, mantendo como o mesmo uma relação tão dialética que um resultaria em reflexo do outro numa permanente legitimação mútua.
Na sua obra: A Força Normativa da Constituição, Hesse faz uma abordagem direcionada à obra de Lassalle e analisa detalhadamente as questões levantadas pelo autor de: A Essência da Constituição.
É evidente que a ideia de imutabilidade constitucional de Lassalle só se realiza e legitima uma ditadura do proletariado. Seguindo essa compreensão, podemos observar que Hesse retoma a dicotomia de Lassalle: questões jurídicas e questões políticas.
Se para Lassalle as questões constitucionais não são questões jurídicas e sim, políticas é exatamente por pretender substituir o Direito Constitucional por uma sociologia da constituição. Sem dúvida como mostra Hesse as “forças políticas” são atuantes e sempre no sentido de alcançar objetivos, muitas vezes independentes das “formas jurídicas”.
Sendo assim, o “poder da força” e a força das normas jurídicas estão sempre conflitantes, como que num confronto entre a práxis do mundo fático e o dever-ser idealista que é próprio da Constituição. Porém, Lassalle entendia que o encontro entre realidade e norma se dá necessariamente pelo confronto. O resultado desse embate é a norma adquirir caráter meramente ontológico em detrimento da dimensão deontológica. Em outras palavras para Lassalle a Constituição deveria refletir apenas os interesses do proletariado.
Por outro lado, se não é possível pensar a Constituição dentro de uma perspectiva deontológica, implica dizer que negamos a capacidade do Direito de regular comportamentos e relações, num futuro com transformações. Como afirma Hesse:
A ideia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. [...]
Essa negação do Direito Constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa. Diferencia-se, assim, da Sociologia e da Ciência política enquanto ciências da realidade (2009, p. 125).
Por isso podemos afirmar que o Direito se funda na norma, exatamente porque pode mudar na medida em que mudam algumas realidades. Já a ciência se funda nas leis imutáveis da natureza. Hesse prossegue argumentado que, como já foi dito, uma sociologia da constituição estaria respaldando uma nova forma de poder e não necessariamente uma ordem política e social mais justa.
Ao adotar uma Constituição real como queria Lassalle, estaríamos de fato não apenas trocando uma modelo de ordem por outro, mas, também, legitimando um novo modelo de desequilíbrio do poder, uma vez que esta Constituição sociológica, na ausência do seu conteúdo normativo deontológico, não passaria de um retrato e legitimação de outro desequilíbrio de força e de poder. Por isso Hesse enfatiza:
A questão que se apresenta diz respeito á força normativa da Constituição. Existiria ao lado poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional? Não seria essa força uma ficção necessária para o constitucionalista, que tenta criar a suposição de que o Direito domina a vida do Estado, quando, na realidade, outras forças mostram-se determinantes? Essas questões surgem particularmente no âmbito da Constituição, uma vez que aqui coexiste, ao contrário do que ocorre em outras esferas da ordem jurídica, uma garantia externa para execução de seus preceitos. O conceito de Constituição jurídica e a própria definição da Ciência do Direito Constitucional enquanto ciência normativa depende da resposta a essas indagações (2009, p. 126).
Quando Marx e Lassalle romperam com o contratualismo e os direitos naturais, além da herança valorativa judaico-cristã, não lhes restaram alternativa como fonte do Direito, senão, a realidade fática e ainda mais, a única que eles conseguiam enxergar, a da luta de classes.
Sem dúvida que reconhecer a importância da força normativa da Constituição não exclui o reconhecimento dos limites da sua capacidade de regular condutas. Se levarmos em conta a estrutura e dinâmica de um determinado Estado ou até melhor da organização dessa estrutura nos moldes republicanos, ainda assim, seria impossível não reconhecer em tantas outras dimensões da vida social, as tantas formas de relação que seguem ao largo das orientações constitucionais.
Porém, nada disso anula a importância de um parâmetro externo de cunho deontológico e, além disso, lembrar que o modelo constitucional que chega aos nossos dias foi aquele pensado como parte integrante do aparecimento e desenvolvimento do moderno Estado-nação.
Em Hesse a importância da interpretação da Constituição na sua realidade político-social o aproxima do reconhecimento de uma dialética entre Constituição e realidade fática. Não se trata apenas de uma norma em vigor ou derrogada, como reconhece, mas, principalmente, da eficácia da Constituição. O que leva o referido autor a rejeitar claramente a separação entre norma e realidade, conduz também a mesma rejeição de optar por parâmetros extremos. Tal como entende:
Faz-se mister encontrar, portanto, um caminho entre o abandono da normatividade em favor do domínio das relações fáticas, de um lado, e a normatividade despida de qualquer elemento da realidade, de outro. [...] A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. [...] A Constituição não configura, portanto, apenas a expressão de um ser mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas (2009, p. 128)
Depois de desenvolver exaustiva argumentação a respeito da necessidade da Constituição existir mantendo relação estreita com seu meio e seu tempo, mas sem submeter-se a eles, aponta para o que chama de a “vontade de Constituição”, que define como:
Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos. Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem conseqüência porque a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo tarefas por ele colocadas (2009, p. 133).
Em seguida, Hesse trata de uma questão das mais importantes para o Direito constitucional nos dias atuais, que é o problema da interpretação da Constituição e os limites desta hermenêutica. Para o autor se as mudanças no mundo da vida real requerem uma nova interpretação dos princípios constitucionais e das proposições jurídicas os limites dessa interpretação residem na preservação do significado do “princípio” no que implica, que o Direito e a Constituição não estão obrigados a legitimar e a regulamentar qualquer mudança no mundo fático. Por outro lado, dentre as preocupações de Hesse sobre as conseqüências da distância ente a Constituição e mundo da experiência da vida, está o receio da ameaça aos princípios que orientam e dão sentido à Constituição, particularmente a liberdade.
Nesse sentido, a questão trazida por Schmitt é o problema da exceção ou do Estado Total. Tal questão para ser bem entendida deve começar pela localização do viés doutrinário ao qual pertence o autor. É comum em sistemas educacionais reducionistas, como o nosso, resumir o socialismo ao marxismo ou ainda, confundir o socialismo com comunismo etc.
Antes, cabe lembrar que o comunismo e o fascismo têm a mesma origem, ou seja, são variações ou versões do socialismo que já se desenvolvia na Europa desde ao menos o século XVIII. O nacional socialismo, por sua vez, segue como versão germânica do fascismo original italiano. Ainda cabe lembrar que, a Europa da primeira metade do século XX, vivenciou um intenso conflito entre estas duas doutrinas político-jurídicas e econômicas que resultou, na maioria das vezes, na vitória da versão socialista, fascista. Tal o maior exemplo deste conflito seja mesmo a conhecida “guerra civil” espanhola, na qual os comunistas tentaram solapar do poder os fascistas já instalados.
A democracia moderna sempre foi muito mais uma teoria, um discurso do que uma realidade institucional. A “ditadura”, fenômeno recorrente no século XX sempre foi abertamente pregada por Marx e seus eleitos, assim como por doutrinadores de viés oposto como C. Schmitt.
O discurso único acerca da democracia como uma regra, afasta-se do plano fático sempre que tenta esconder ou faz esquecer que um dos maiores teóricos da democracia moderna, Rousseau, não acreditava nas possibilidades da democracia existir e, Montesquieu, paradigma da república moderna ao perfilar de modo maduro a sempre e tão debatida divisão de poderes, era monarquista.
Assim, a democracia só vai poder se fazer presente no século XX e, por isso mesmo, inaugura sua realização como um fenômeno de massa. Tal forma de governo só teve alguma sobrevivência no século XX, porque já nasceu em tal contexto para ser uma sofisticada forma de controle de massa. Tal como Bastos Neto já havia observado e analisado:
A busca de direitos individuais, particularizados em princípios éticos, culturais e religiosos, levando o indivíduo ou grupos a se sobrepor ao todo, à ordem pública, traz sempre as conseqüências esperadas: atentados, rebeliões e violências de todo tipo. O impasse está no fato dessas estratégias, também são viabilizadas por parte de grupos que ficam de fora de tais benefícios. Deste modo, o Direito passa não apenas a potencializar conflitos, mas, além disso, torna-se legitimador da desigualdade, alimentando a ilusão de que um dia todos serão iguais. Uma reprodução atual da retórica hobbesiana.
Entre outras contradições o Estado contemporâneo tenta estabelecer uma ordem diante de uma realidade na qual, a liberdade, tão funcional ao capitalismo, pode ameaçar a ordem pública. O equilíbrio entre a repressão e a liberalização das ideologias nem sempre se fez nos níveis necessários. A explosão das massas ansiosas pela exploração e consumo impulsiona rivalidades étnicas e religiosas no mundo todo. [...]
Essa liberdade controlada pode fugir ao controle. Torna-se então uma ameaça por conta dos próprios limites do capitalismo em praticar uma democracia econômica (2006, p. 233).
Podemos perceber então que a democracia tem em seu bojo incoerências que lhes são inerentes, pois enquanto necessária governação através do auto-governo, da razão individual, não pode descuidar dos ajustes necessários ao controle coletivo.
Nesse ambiente, os limites entre a ditadura e a democracia muitas vezes tornaram-se tênues, principalmente, quando salientamos a coincidência de ser a “ditadura” também um fenômeno de massa. Sendo assim, tanto a democracia como a ditadura rivalizaram durante todo o século XX, como possibilidades plausíveis para ambas direções, mesmo com relativa vantagem para a ditadura, ainda mais quando observada a possibilidade de opção da sua versão fascista ou comunista. É nesse contexto que se encontra a obra de Carl Schmitt.
Além disso, como observa Bercovici, naquele cenário de conflitos acirrados, para muitos:
Constituição de Weimar teria errado ao adotar o parlamentarismo liberal-democrático, o que teria gerado uma democracia sem povo, um Estado sem substância. [...] Os alemães deveriam escolher o seu próprio caminho, um “Estado especificamente alemão”, uma nova representação da estabilidade que possibilitasse o surgimento de uma autoridade estatal verdadeira, ao contrário de Weimar. Esta nova representação da estabilidade era o Estado Total, [...] (2004, p. 149).
Teologia Política publicado em 1922 é uma das referências sobre o assunto num tempo que se acirra a luta entre comunistas e fascistas na Europa. Essa obra de C. Schmitt é um claro contraponto ao Estado de Direito e seus princípios liberais. As possibilidades de equilibrar liberdade com igualdade e, liberdade em uma sociedade de massa, são desafios modernos que se acentuam no século XX. Para tanto é comum buscar-se as origens do pensamento moderno entre autores como Hobbes, que se torna um dos mais requisitados.
De fato, Hobbes afirmou: “Portanto, a liberdade dos súditos está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu” (1997, p. 173). E, deixando de lado o contexto em que o ator estava no século XVII, sempre houve a versão de que o autor de o Leviatã seria o inspirador do fenômeno das ditaduras do século XX. Um dos expoentes dessa versão é Leo Strauss, que ao analisar detalhadamente a obra de Hobbes em Estado e Religião, conclui que:
Sua teoria final é a de que todo governo efetivo é eo ipso legítimo. As palavras “tirania” e “despotismo” perdem, portanto, toda importância para ele, que não hesita em declarar que qualquer ou quase toda a autoridade de Estado é baseada na usurpação, sem o menor prejuízo de sua legitimidade.
Se Hobbes originalmente reconheceu as condições legais de soberania e não simplesmente factuais, podemos admitir que ele também originalmente admitiu limites legais ao poder soberano. Posteriormente Hobbes rejeitou, como absurda, qualquer limitação ou divisão da soberania (2003, p. 100, 101).
O Hobbes do Leviatã, que está lá no século XVII, não parece ver possibilidade de ingressarmos num universo de aglomerações humanas, articulando uma liberdade individual ampla e a atuação de um Estado apenas regulador. Mas, cabe lembrar que mesmo no Leviatã, o que temos em essência é a busca das possibilidades de realização do Direito Natural. Trazendo tal preocupação para o século XX Schmitt afirma:
Hoy no distinguiría ya dos, sino tres formas de pensamiento científico-jurídico, a saber: además del normativista e del decisionista, el tipo institucional. La explicación de mi doctrina de las “garantías institucionales” en la ciencia jurídica alemana y la ocupación con la profunda y significativa teoría de Maurice Hauriou, me han preocupado este conocimiento. Mientras que el normativista puro piensa em la regla impersonal, y el decisionista realiza el direcho justo de la situación política correctamente conecida mediante uma docisión personal, el pensamiento jurídico institucional se despliega em ordenaciones y configuraciones suprepersonales. Y mientras que el normativista ilega em su corrupción del direcho a hacer de él em mero modo funcional de uma burocracia estatal, y el decisionisya siempre está em peligro de perder en el carácter puntual Del instante el ser estable contenido em todo gran movimento político, um pensamiento institucional aislado conduce al pluralismo de um proceso estamental feudal carente de soberanía. Así, las tres esferas y elementos de la unidade política – Estado, movimiento, pueblo – se pueden ordenar em lós tres tipos de pensamiento jurídico, tanto en sus formas fenomênicas sanas como en sus formas degeneradas (2009, p. 12).
Há uma frase de Schmitt que sintetiza toda a problemática da sua obra e particularmente em Teologia Política, qual seja: “Soberano es quien decide sobre el estado de exceção” (2009, p. 13).
Quem deve decidir quando a ordem jurídica não consegue trazer respostas a uma situação? Primeiro, temos que perguntar qual questão pode por em dúvida a ordem jurídica e, em segundo, quais grupos de pressão atendem tal situação de indeterminação.
Outra questão importante trazida pelo autor é o conceito de “soberania”. Sendo assim temos um dilema. Para que lado se volta a soberania em situação que foge à regra e desafia a ordem jurídica? A soberania está incorporada ao líder que personifica o Estado ou à Constituição? A soberania fundamenta e legitima o Estado de Exceção ou o Estado de Direito?
Schmitt deixa claro que quando fala de Estado de Exceção não se refere à possibilidade como a que existe em nossa Constituição, a previsão de um Estado de Sítio. Para o autor Estado de Exceção significa “[...] un concepto general de la doctrina Del Estado [...] (2009, p. 13). Ao mesmo tempo a sua concepção de soberania está inspirada em Jean Bodin e Hobbes que, trazidas para o século XX, traduz a necessidade de poder manter a segurança e a ordem pública e com isso, a possibilidade de reagir perante qualquer situação que ponha em perigo a existência do Estado. Schmitt considera que nem sempre é clara a possibilidade de se entender quando há um caso de necessidade e quem seria o sujeito dessa soberania.
No caso do Estado de Direito, o equilíbrio do poder entre os poderes, pode não haver clareza sobre em qual autoridade está a competência de tomar decisões que envolvam situação que ponha em ameaça a existência do Estado. Talvez, o que há de mais importante na obra de Schmitt seja a correlação estabelecida a todo momento entre Estado e Direito. Inclusive chama a atenção do autor uma questão muito negligenciada aos nossos dias, quando busca-se a separação entre Estado e Direito. Nesse ponto, torna-se evidente, outra vez o problema da soberania.
Cabe relembrar que a obra de Schmitt, como tantas outras do seu tempo, é uma resposta à crise da modernidade que percorre ao menos todo o século XX. O socialismo de cunho fascista aparece inclusive como uma terceira via frete às crises do liberalismo e do socialismo clássico ou comunismo. O fascismo não discutia a apropriação da propriedade privada nos termos marxistas, muito menos a extinção do Estado nos moldes anarquistas. Tanto sim que para Schmitt o liberalismo rejeitado é o liberalismo político, defendendo a liberdade econômica desde que voltada para fins nacionalistas. Muito diferente na sua concepção do capital, via na liberdade política, uma ameaça. Percebia a liberdade política como uma constante ameaça, ao colocar em risco, a soberania do Estado tão própria de uma doutrina que passou a associar “espaço vital” à “raça”.
Mesmo em sobressaltos, as dúvidas sobre as possibilidades das doutrinas em vigor desde o século XIX e que penetram pelo século XX - traz o fascismo, inclusive como herdeiro do socialismo clássico as devidas alterações e adaptações entre elas. Está presente também o forte nacionalismo que contrapõe a proposta marxista de um controle mundial da classe da trabalhadora, inclusive, salientando como está no Manifesto que o trabalhador não tinha pátria.
O fascismo aparece então defendendo a possibilidade de um governo mundial, uma expansão genérica, porém, entre Estados soberanos, nacionalistas, porque passaram a enfatizar a questão “raça”.
Nesse sentido, outra diferença marcante entre socialismo e fascismo está, inclusive, na interpretação que as duas doutrinas fazem do jusnaturalismo e como integram os antigos doutrinadores às suas respectivas respostas às realidades dos séculos XIX e XX.
Como já foi visto, por exemplo, Marx repudia os direitos individuais com o argumento de que somente os direitos coletivos têm legitimidade. Está na verdade empreendendo sua luta contra o cristianismo que, via o judaísmo, fundamenta a sociedade moderna e seus principais paradigmas axiológicos.
Outra interpretação do jusnaturalismo enquanto fundamento dos direitos humanos e individuais reflete bem a mesma problemática um século depois de Marx, na mesma Alemanha e Europa. Pois, bem lembra Marmelstein, que para Hitler: “Os direitos do homem estão acima dos direitos do Estado” (2011, p. 03). Mas, em que sentido? Para qual finalidade? Para Hitler:
Povos em cujas veias correm o mesmo sangue devem pertencer ao mesmo Estado. [...] Não formamos todos, um corpo único? [...]
Somente a grandeza dos sacrifícios conquistará novos lutadores para a causa, até que a persistência garanta o sucesso.
Para isso, porém, são necessários os filhos do povo, tirados da grande massa. Só eles são suficientemente decididos e tenazes para conduzir essa luta ao seu fim sangrento.
Eu via com bastante clareza o desenvolvimento da Alemanha, para não perceber que a maior luta não seria contra os povos inimigos e sim contra o capital internacional. [...]
Para mim, porém, e para todos os verdadeiros nacionais socialistas, só há uma doutrina: Povo e Pátria.
O objetivo da nossa luta deve ser o da garantia da existência e da multiplicação de nossa raça e do nosso povo, da subsistência de seus filhos e da pureza de nossa raça e do nosso povo, da subsistência de seus filhos e da pureza do sangue, da liberdade e independência da pátria, a fim de que o povo germânico possa amadurecer para realizar a missão que o criador do universo a ele destinou.
Todo pensamento e toda ideia, todo ensinamento e toda sabedoria, devem servir a esse fim. [...] Assim é que não há teoria que se possa impor como doutrina de destruição, pois tudo tem que servir à vida. [...]
Comecei a aprender e compreender, só agora, o sentido e a finalidade da obra do judeu Karl Marx. Só agora compreendi bem seu livro – O Capital - assim como a luta da social-democracia contra a economia nacional, luta essa que tem em mira preparar o terreno para o domínio da verdadeira alta finança internacional. [...]
O progresso e a cultura da humanidade não são produto da maioria, mas dependem da genialidade e da capacidade de ação dos indivíduos (2001, p. 15, 17, 74, 140, 141, 221).
Há muito mais semelhanças entre o significado de: “trabalhadores do mundo todo, uni-vos” de Marx e o “movimento pangermanista” de Hitler, do que diferenças. As duas doutrinas na verdade desfrutam da mesma ambição de uma dominação mundial. Enquanto Marx fala de “classe”, Hitler fala em “raça”. Uma grande diferença está na questão do “capital”. De fato, Marx prega a mundialização do capital, inclusive inicia a ideia, hoje recorrente desta mundialização, principalmente, através da criação de bancos centrais independentes espalhados pelos países tal como vemos hoje e ele expõe no Manifesto. Já Hitler Pregava uma separação entre o capital nacional e mundial no sentido de proteger a expansão germânica através da soberania do Estado personificado num líder, resguardando a raça, o povo e o Estado num contínuo movimento tal como doutrinou Schmitt.
Dentro deste amplo recorte Schmitt chama atenção para questões importantes ainda aos nossos dias. Um Direito que se preocupa mais com os problemas cotidianos que com o problema da soberania. Isso se reflete na disputa permanente entre norma e decisão, tal qual quando discutimos a função da Corte Suprema no constante embate entre proteção ou interpretação da Constituição.
O Estado de Exceção e o Estado de Direito trazem nesta relação uma contradição inerente. O Estado de Direito pode regulamentar e regular o Estado de Exceção. Mas, o Estado de Exceção é um comando para violar direitos com o objetivo de recompor a ordem, própria do Estado de Direito. O que Schmitt propõe é que o Estado de Exceção lhe seja permanente, proporcionando um movimento constante na formação da articulação entre povo/raça, Estado e nação/território. Para isso, como ele afirma “el Derecho es siempre derecho de uma situación (2009, p. 18).
Tal como observa Bastos Neto em: Crime, Castigo e Segregação (2012), recentemente, quando Agamben está expondo e analisando o problema da Exceção no nosso tempo ele mostra claramente que a “exceção” e mais ainda, o “Estado de Exceção” é uma questão moderna. Se a modernidade sempre esteve pautada em antinomias de onde vem a ideia de igualar os diferentes? Se há outras formas de explicar tal problema com certeza qualquer explicação deve ter como cerne o fenômeno do envolvimento entre Direito, Lei, Estado e Política.
Tal mistura resultou num sabor que, quando doce, agora se constata passageiro. Quando muito sofisticada, essa confusão foi por via das teorias políticas e jurídicas distorcidas aos interesses político-partidários.
Difundir o “ter direito” como forma de pacificação das massas no século XX, foi uma prática comum que inclusive ganhou muita força pós-Segunda Guerra, como forma de impedir a expansão comunista na Europa. A crítica se estendeu ao modelo Welfare State muitas vezes apontado como forma de alienação, dominação e até mesmo como modelo de Estado Totalitário. Já no nosso século XXI, como diz Agamben:
[...] na urgência do estado de exceção “em que vivemos” – era mostrar a ficção que governa o arcanum imperii por excelência do nosso tempo. O que a “arca” do poder contém em seu centro é o estado de exceção [...].
Isso não significa que a máquina, com seu centro vazio, não seja eficaz; ao contrário, [...]. O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário. [...]. O retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de “estado” e de “direito” (2004, p. 131).
O conceito de Razão de Estado une tudo isso. Abriga cada um daqueles elementos e lhes dá dinâmica, porque aos fatos da vida real acrescenta outras dimensões como interesse de classe e economia.
As mudanças institucionais, os seus impasses e progressos refletem antes de tudo o jogo quase sempre conflitante de interesses não apenas de classe, mas de muitos outros grupos de pressão como ong’s e movimentos sociais. Os próprios discursos que orientam ou propõem tais mudanças podem ser, muitas vezes, de maneira contraditória, um dos principais fatores mantenedores da velha ordem. Os discursos de transformação, muitas vezes, adiam as mudanças mais necessárias e estruturais. Agora, como alterar essas estruturas e instituições modernas?
O Estado de Exceção é a suspensão das garantias constitucionais mesmo que, momentaneamente, na relação entre o representante do Estado e o cidadão na dinâmica da vida cotidiana. Ao se discutir como uma anomia pode ser inscrita na ordem jurídica ou mesmo o Estado de Exceção, buscar compreender como a suspensão da ordem jurídica pode está compreendida na ordem legal, é exatamente pelo reconhecimento das dificuldades do Estado e do Direito abarcarem todas as possibilidades de relação social. A questão talvez deva ser posta num outro sentido, ou seja: por que existe a necessidade desse vazio de direitos individuais?
É própria das origens da democracia moderna a possibilidade de repressão para sua própria sobrevivência. Outrossim, o Estado pode ser absoluto, mas, a democracia não pode ser absoluta. Não há possibilidade para que a liberdade margeie os limites tênues da desordem sem que o caos se torne uma forte possibilidade.
Por isso, é no mesmo jusnaturalismo que formulou a teoria moderna dos direitos ao nascer, que encontraremos também as origens dos fundamentos para pena de morte. No Contrato, Rousseau, o mesmo que acreditava no “bom selvagem”, já havia estabelecido que:
O fim do tratado social é a conservação dos contratantes: quem quer o fim quer também os meios, que são inseparáveis de alguns riscos e até de algumas perdas...
... quanto mais todo malfeitor insulta o direito social, torna-se por seus crimes rebelde e traidor da pátria, de que cessa de ser membro por violar suas leis e à qual até faz guerra; a conservação do Estado não é compatível então com a sua, deve um dos dois morrer, e é mais como inimigo que se condena à morte que como cidadão (2004, p. 46).
A frustração popular em toda a América Latina com a ditadura agora se renova com a neodemocracia civil. Se estamos ainda na modernidade ou talvez na pós-modernidade, não há certeza para afirmar. O certo é que, as transformações do nosso tempo, deixam no ar valores modernos no momento em que os radicaliza. Por um lado a moral moderna desceu pelo ralo e, é a partir deste vazio que agora podemos falar em liberdade. Por outro, o homem moderno é cada vez mais institucionalizado por não ter em si mesmo regras de condutas baseadas na razão, apenas na vontade. São as instituições do Estado que regem a vida do homem que ainda considera-se moderno ou já pós-moderno. Agora, liberdade só pode ser entendida como moderna enquanto está nos tratados doutrinários, pois, no mundo da rua, a liberdade pensada pelo homem atual já não corresponde à moral ou doutrina alguma, senão às pregações odiosas de K. Marx quando, reiteradas vezes, afirma que só através da violência se conquista direitos.
Que o projeto moderno falhou ninguém pode duvidar. Quando retomamos os clássicos do século XVII e XVIII vemos de imediato a distância entre o que foi proposto e o que realizamos no século XX e XXI. O próprio conceito de civilização que é fundamentalmente moderno tinha como ponto de partida a equação entre civilização e moral, civilização e autocontrole. Agora a relação mediocrizante que é estabelecida atualmente entre civilização e tecnologia só faz sentido quando requisitada para justificar a “era do vazio”.
III. Conclusão
A “questão constitucional”, como assim podemos chamar, tem sido tomada por novos significados na medida em que temos no cenário do mundo da vida novas perspectivas do “ter direitos”.
Entretanto, está em cena atualmente uma compreensão das liberdades individuais como não se via até então. A interpretação dos direitos humanos pelo viés coletivista traz uma mudança extrema no modo de ver a função de uma Constituição no ordenamento jurídico e, com isso, a sua função precípua de mantenedora de uma ordem social.
Talvez os radicalismos que movem tais mudanças levem também às reações contrárias às mudanças. E, seguindo esta ideia, podemos perceber o quanto é antigo tal dilema quando traduzido em ideologias políticas.
Logo se percebe a impossibilidade de discutir formas de atuação do Estado, sem buscar o encontro com o Direito Constitucional. Não por acaso Teoria de Estado e Teoria Constitucional nascem de um mesmo contexto.
Porém, o que é estranho aos nossos dias é a nova concepção de que todos podem fazer quase tudo. Numa sociedade de massas é a primeira vez que tal ideal tem sido testado. E não por acaso problemas acontecem e se agravam. O Estado moderno sempre esteve pautado em três pilares. São eles: razão, norma e moral. Num contexto em que a emoção do coletivo fala mais alto que a razão, a norma está completamente relativizada e toda a moral se tornou preconceito o que esperar como estabilidade de uma sociedade?
Porém, cabe ressaltar que o relativismo jurídico do nosso tempo que caminha rumo e busca fundamento num neocomunismo marxista-foucaultiano, tem como objetivo o desmonte de toda a construção teórica moderna de fundamentação judaico-cristã. Daí porque o ataque ao topo do ordenamento jurídico, a Constituição.
Referências:
AGAMBEM, Georgio Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003
BASTOS NETO, Osvaldo Introdução à Segurança Pública Como Segurança Social: Uma Hermenêutica do Crime. Salvador: Dinâmica, 2006
__________________ Crime, Castigo e Segregação: da Geopolítica à Questão Urbana na Era da Sociedade Blade Runner. in www.observatorioseguranca.org - 2012
BERCOVICI, Gilberto Constituição e Estado de Exceção Permanente: Atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004
HESSE, Konrad A Força Normativa da Constituição. In Temas Fundamentais de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009
HITLER, Adolf Minha Luta. São Paulo: Centauro, 2001
LASSALLE, Ferdinand A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001
MARMELSTEIN, George Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2011
MARX, Karl Para a Questão Judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009
MARX & ENGELS Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2000
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973
ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social. São Paulo: Cultrix, 2005
SCHMITT, Carl Teología Política. Editorial Trotta, Madrid, 2009
STRAUSS, Leo “Estado e Religião”. In O Pensamento Político Clássico. SADEK, Maria Tereza; QUIRINO, Célia Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003
Osvaldo Bastos Neto é: Bacharel e Mestre em Ciências Sociais pela UFBa / Acadêmico de Direito pela Faculdade Batista Brasileira/ Professor da Universidade Católica de Salvador/ da Faculdade Batista Brasileira/da Faculdade D. Pedro II/ da Academia de Oficiais da Polícia Militar: Curso de Formação de Oficiais (CFO)/ Curso de Especialização em Segurança Pública (CESP)/ Curso de Especialização em Gestão Estratégica em Segurança Pública (CEGESP).
E-mail: [email protected]
Bacharel em Direito - FBB; Bacharel em Ciências Sociais - UFBa; Mestre em Sociologia - UFBa; Professor universitário e de faculdades; Atualmente leciona em cursos de graduação: Direito e Serviço Social; Leciona em cursos de pós-graduação: Agência Brasileira de Análise Criminal - ABACRIM, Curso de Especialização em Segurança Pública - (CESP-PMBa), Curso de Especialização em Gestão Estratégica de Segurança Pública - (CEGESP-PMBa); Autor de Livros especializados, artigos acadêmicos e crônicas. Coordenador do Observatório de Estudos Criminais - Salvador - Ba.; Coordenador do Seminário em Direito Penal, Literatura e Hermenêutica: Coordenador Adj. do Curso de Especialização em Ciências Criminais e Sistemas Prisionais - Dom Petrum.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Osvaldo de Oliveira Bastos. Dilemas Modernos Sobre a Liberdade e a Ordem Constitucional: breve comparação entre as doutrinas constitucionalistas de Konrad Hesse, Ferdinand Lassalle e Carl Schmitt Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33443/dilemas-modernos-sobre-a-liberdade-e-a-ordem-constitucional-breve-comparacao-entre-as-doutrinas-constitucionalistas-de-konrad-hesse-ferdinand-lassalle-e-carl-schmitt. Acesso em: 23 dez 2024.
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