1 INTRODUÇÃO
Estabelecer um conceito de Constituição sempre foi um objetivo para os estudiosos do assunto. Desde os tempos remotos até os dias de hoje são diversos os conceitos propostos, os quais perpassam por variados sentidos.
Dentre os sentidos propostos ressaltam-se os denominados “sentidos tradicionais” de Constituição, os quais refletem o momento histórico de criação dos mesmos. Aliás, foi por meio destes que a doutrina buscou entender o que é uma constituição.
Nesse sentido, destacam-se as concepções propostas por Ferdinand Lassale e sua constituição sociológica, bem como Carl Schimitt com sua constituição política e finalmente, Hans Kelsen com a denominada constituição jurídica.
Ressalte-se, ainda, que o sentido de constituição não se esgota nessas concepções, porém estas servirão de base para o estudo ora proposto.
2 SENTIDOS TRADICIONAIS DE CONSTITUIÇÃO
O primeiro momento demarcado na história do constitucionalismo nos remete ao período que vai do Medievo até a Revolução franco-americana. Nesse ínterim, conforme registra Jellinek, a constituição representava “o entrançamento de pactos, costumes e modos de acomodação a conflitos e dominações, esparsamente formalizados, envolvendo, na comunidade, os que detêm autoridade e os que a obedecem.” Como se denota, não havia normas constitucionais previamente determinadas, mas sim um reflexo das relações desenvolvidas no cotidiano. (Jellinek, 1973)
Durante esse primeiro momento, estabeleceu-se o chamado “sentido sociológico” de Constituição, o qual teve em Ferdinand Lassalle (Lassale, 1999) seu principal defensor. Para ele, a Constituição apoiava-se nos fatores reais do poder, os quais compreendem a força ativa de todas as leis da sociedade. Assim, uma Constituição nada mais é do que o somatório da vida política, econômica e social de um determinado povo, sendo que, caso não retrate referidos “fatores reais”, a mesma não passaria de mera folha de papel.
Dessa forma, dizia Lassalle, a Constituição é fato, é o que a sociedade está vivenciando. Uma Constituição só será duradoura se retratar a Constituição real, a qual demonstra a verdadeira base sob a qual estão expostos os fatores de poder preponderantes na sociedade.
A partir das revoluções liberais eclodidas no século XVIII, um segundo sentido de Constituição foi reconhecido. Tais revoluções, centradas na racionalidade humana, passaram a entender o direito como o instrumento hábil a reger a vida política. Assim, o Estado está limitado pelo direito, o qual deve representar os anseios e fins visados por aquela sociedade. É nesse sentido político que reside o principal fundamento da Constituição.
Assim sendo, a principal idéia contida nas revoluções liberais que marcaram referido período, conforme exarado por Cezar Saldanha Souza Junior está “na crença na capacidade do direito para regular e limitar o Estado e a política, por meio de uma lei, a Constituição, que, de alguma forma, provenha autonomamente da representação nacional”. (Souza Junior, 2002, p. 103-104)
O principal defensor desse momento foi Carl Schimitt, sendo este o responsável pela instituição do chamado “sentido político” de Constituição. Ele afirmava, na sua célebre obra “La Defensa de la Constitución”, que a Constituição é fruto de uma decisão política fundamental, a qual compreende decisões capazes de agrupar o modo e a forma da unidade política, de forma que só pode ser assim considerado aquilo que dispuser de matéria essencialmente constitucional. (Schimitt,1998).
Em que pese a Constituição, nesse segundo momento, já ser vista como instrumento jurídico, não se poderia caracterizá-la sob o prisma eminentemente jurídico. Isto porque a Constituição carecia de força normativa própria, ou seja, de juridicidade e, portanto, de imperatividade e coercibilidade. Logo, o seu cumprimento dependia tão-somente da boa vontade daqueles que assim quisessem proceder. Ademais, cabia à Constituição reger as relações políticas consideradas em si próprias e não as múltiplas situações provenientes da prática cotidiana.
É nesse contexto que Schimitt propõe, ainda, a distinção entre Constituição e lei constitucional. A primeira seria, segundo ele, o conjunto de normas que dizem respeito a uma decisão política fundamental, ou seja, seria tudo aquilo que dispusesse de assunto eminentemente constitucional como, por exemplo, os direitos individuais, organização do Estado e princípios basilares da ordem constitucional vigente. A segunda, por sua vez, seriam as normas constantes no texto constitucional, mas que não aduzem a uma decisão de cunho político. (Schimitt,1998)
Já no século XX, sob o comando do austríaco Hans Kelsen, surge um novo sentido de Constituição. Kelsen propôs, em sua obra intitulada “Teoria Pura do Direito”, o chamado “sentido jurídico-normativo”. Assim, ele defendeu que as normas jurídicas estivessem organizadas de forma piramidal, com forte estrutura hierárquica, estando a Constituição localizada em seu topo, haja vista que “inexiste uma justaposição de funções mais ou menos desconexas, como quer a teoria clássica, impulsionada por certas tendências políticas. O que há é uma hierarquia dos diferentes graus do processo criador do Direito”. (Kelsen, 2011, p. 429)
Segundo Kelsen, as funções do Estado correspondem a um processo evolutivo e graduado de criação de normas jurídicas. Assim, ainda segundo a obra mencionada:
A Constituição sem deixar de ser a lei reguladora da vida política, deveria aspirar agora à elevada condição de: a) repositório das normas jurídicas supremas; b) fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico; c) cabeça de capítulo de todos os ramos do direito; e d) paradigma para a conformação de todas as normas infraconstitucionais, sob pena de invalidade. (Kelsen, 2011).
Nesse sentido, a contribuição de Kelsen, acerca da noção de Constituição, tema este, aliás, que vem sendo motivo de incessantes discussões ao longo dos tempos, foi de fundamental importância. Para ele Constituição:
é um princípio em que se exprime juridicamente o equilíbrio das forças políticas no momento considerado, é a norma que rege a elaboração das leis, das normas gerais para cuja execução se exerce a atividade dos organismos estatais, dos tribunais e das autoridades administrativas.
(...)
As Constituições modernas contêm não apenas regras sobre os órgãos e o procedimento da legislação, mas também um catálogo de direitos fundamentais dos indivíduos ou de liberdades individuais. (Kelsen, 2007)
Dessa forma, considerando a Constituição como a norma fundamento da ordem estatal, nela encontramos o esteio das normas jurídicas, o princípio que institui a organização estatal, as estruturas incorporadas no Estado e na sociedade e o modo de execução e implementação das demais normas infraconstitucionais. Ressalte-se, ainda, a necessidade que as Constituições modernas possuem de instituírem um rol de direitos e liberdades fundamentais, sem o qual não pode existir essa norma maior, visto que é no seio constitucional que se encontra a declaração dos direitos basilares que servem de parâmetro não só para o processo de criação legislativa, quanto de execução dessas mesmas normas jurídicas.
Definida a estrutura escalonada e piramidal de Kelsen, a qual tem a Constituição em seu topo, verificou-se a necessidade de instituir um mecanismo que possibilitasse a manutenção dessa ordem constitucional, de forma a assegurar sua supremacia, situação esta que culminou na criação daquele que seria a grande contribuição Kelseniana para o marco constitucional – o Tribunal Constitucional. Para ele, a forma de manutenção da supremacia da Constituição residia no poder de anulação dos atos que lhe fossem contrários, sem que, contudo, esta atribuição fosse concedida ao órgão criador da mesma, pois:
o órgão legislativo se considera na realidade um livre criador do direito, e não um órgão de aplicação do direito, vinculado pela Constituição, quando teoricamente ele o é sim, embora numa medida relativamente restrita. Portanto não é com o próprio Parlamento que podemos contar para efetuar sua subordinação à Constituição. É um órgão diferente dele, independente dele e, por conseguinte, também de qualquer outra autoridade estatal, que deve ser encarregado da anulação de seus atos inconstitucionais – isto é, uma jurisdição ou tribunal constitucional. (Kelsen, 2007)
Ademais, tendo por parâmetro a estrutura escalonada Kelseniana, era necessário assegurar estabilidade às normas constitucionais. Foi nesse sentido que Kelsen propôs que:
o fato de que essa regra (a Constituição) não pode ser modificada com a mesma simplicidade que outras regras gerais de direito – as leis -, isto é, que existe ao lado da forma legal ordinária uma forma especial mais difícil, a forma constitucional (maioria reforçada, votações múltiplas, assembléia constituinte especial), tudo isso expressa o deslocamento decisivo do poder. (Kelsen, 2007).
3 CONCLUSÃO
Expostos os principais conceitos de Constituição, importante ressaltar que não existe, como se pôde perceber, um sentido uníssono para a mesma. Assim, a doutrina aceita todos os sentidos acima propostos, sociológico, político e jurídico, uma vez que todos compreendem a definição de Constituição. Por isso, doutrinadores, a exemplo de Lammêgo Bulos (2010), afirmam que o conceito de “constituição” é um conceito em crise, porque até hoje os estudiosos não chegaram a um consenso a seu respeito, da mesma forma que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a faceta de que existem múltiplas acepções para o termo, conforme verificado na ADI 595-2, in verbis:
No que concerne ao primeiro desses elementos (elemento conceitual), cabe ter presente que a construção do significado de Constituição permite, na elaboração desse conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado. Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, certa vez, e para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar - distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo jurídico - que a Constituição da República, muito mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual. (STF, ADI 595-2/ES, Rel. Min. Celso de Mello, decisão de 28-2-2002).
Independente do sentido atribuído ao termo “Constituição”, cumpre demonstrar que é nela que se encontram delimitadas as bases estruturais do Estado, bem como os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos integrantes desta sociedade.
No mais, não se pode olvidar a impossibilidade das Constituições apresentarem sentidos fixos e invariáveis, haja vista que são organismos vivos, os quais devem acompanhar as mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas que se operam na sociedade.
Nesse sentido afirma Enterría:
las Constituciones no son reglas abstractas e descarnadas, sino derecho vivo, incardiando en la sangre , en las creencias y em lós interesses del pueblo, instrumentos por ellos vivientes e evolutivos. (ENTERRÍA, 2006, p. 203).
Assim é que, no mesmo ato de promulgação da Constituição, deve haver a previsão das possíveis modificações que a mesma poderá sofrer com o passar do tempo, permitindo-se a recepção de fatos novos.
Ainda no que tange ao assunto, Hesse afirma:
Se o direito, e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábua rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudança na interpretação da Constituição. (HESSE, 1991, p. 22).
Dessa forma, cumpre esclarecer que os diferentes sentidos aqui verificados para o termo “constituição” refletem os denominados sentidos tradicionais do termo, configurando-se, portanto, como apenas alguns dentre os tantos reconhecidos.
Por todo o exposto, independente do sentido de Constituição invocado, pode-se afirmar que ela revela a forma particular de ser do Estado, assim como as normas que servem de parâmetro para todas as normas que conformam um determinado ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 5. Ed. Re. E atual. de acordo com a Emenda Constitucional n.64/2010.São Paulo: Saraiva, 2010.
ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. La Constitucion como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 2006.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991.
JELLINEK, Georg. Teoria general del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1973.
KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Trad. Walter Stönner. São Paulo: Versão para eBook, 1999.
SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constitución. Madrid: Tecnos, 1998.
SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL COMO PODER: Uma nova teoria da divisão dos poderes. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2002.
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Pará - CESUPA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DOMINGUES, Maíra de Barros. Afinal, o que é uma Constituição? Uma análise dos diferentes sentidos atribuídos ao termo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33472/afinal-o-que-e-uma-constituicao-uma-analise-dos-diferentes-sentidos-atribuidos-ao-termo. Acesso em: 23 dez 2024.
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