1. INTRODUÇÃO
A doutrina pátria tem sempre se orientado no sentido de que lei inconstitucional é ato nulo. Compete ao juiz declarar essa nulidade e deixar de aplicar a referida lei à situação concreta, no sentido de impedi-la de produzir quaisquer efeitos. Existe a necessidade de maior flexibilização das decisões no âmbito da jurisdição constitucional, tendência concretizada em diversos países, onde se atribui aos tribunais constitucionais uma margem de discricionariedade para manipularem a eficácia da decisão de inconstitucionalidade e possibilitarem, assim, que normas inconstitucionais produzam alguns efeitos. A Lei n. 9.868/99, que permite a restrição das decisões de inconstitucionalidade, quanto aos seus efeitos e eficácia, engendra muitos questionamentos sobre o alcance e a validade dessa mudança, pois viola o princípio constitucional que veda a delegação de atribuições de um Poder a outro. Trata-se de uma possibilidade de modulação dos efeitos na pronúncia da inconstitucionalidade. No caso da norma ainda constitucional ocorre o que se pode chamar de inconstitucionalidade progressiva. A corte constitucional pode argumentar que uma lei se encontra em processo de inconstitucionalização, e assim lhe atribuir efeitos ex nunc ou ex tunc com prazo determinado.
2. DESENVOLVIMENTO
Existe uma tendência contemporânea, formalizada principalmente em textos constitucionais, a atribuição aos tribunais constitucionais – diante de circunstâncias fáticas excepcionais e tendo em vista a repercussão social do thema decidendum – do poder de fixar os efeitos da decisão de inconstitucionalidade ex nunc ou pro futuro, permitindo, portanto, que a lei inconstitucional produza alguns efeitos a partir daquele momento. No Brasil, principalmente por influência da doutrina norte-americana, sempre se entendeu que a lei inconstitucional é ato nulo, cabendo ao órgão jurisdicional declarar, inter partes, essa inconstitucionalidade e negar a sua aplicação ao caso concreto, com o que a lei seria incapaz de produzir qualquer efeito (eficácia declaratória da sentença e efeitos ex tunc da decisão). A mesma orientação invariavelmente foi seguida também no âmbito do controle abstrato de normas, instituído pela Emenda Constitucional n. 16, de 26/11/1965. Em novembro de 1999, entrou em vigor a Lei n. 9.868, permitindo que, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Visto conferir poder normativo ao Supremo Tribunal Federal, a lei em exame ofende, primeiramente, o princípio constitucional segundo o qual é vedada a delegação de atribuições de um Poder a outro. Ademais, trata-se de mudança instituída mediante norma infraconstitucional, e assim se subverte a unidade do ordenamento jurídico, ou seja, tem-se que uma simples lei ordinária serve de fundamento de validade a normas situadas no mesmo plano hierárquico e mesmo em plano superior – no caso de emendas constitucionais aprovadas com violação das cláusulas pétreas, por exemplo.
Há caso emblemático em que o STF já utilizou essa ora comentada técnica da Lei “ainda constitucional” em caso relacionado ao sistema de cotas nas universidades públicas. O ministro Ricardo Lewandowski negou a antecipação de tutela pedida por um candidato reprovado no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele se diz prejudicado pelo programa de reserva de vagas para estudantes egressos de escola pública.
Segundo o Recurso Extraordinário (RE 597285), Giovane Pasqualito Fialho foi reprovado na prova para o curso de Administração, mas teria passado se não fosse a reserva de cotas. Ele informou que das cento e sessenta vagas, trinta por cento foram reservadas a candidatos privilegiados em razão de sua etnia e condição social e dez vagas a candidatos indígenas. A defesa de Fialho chama o sistema de cotas de pacto da mediocridade e declara que a distinção no tratamento dos candidatos com base em critério étnico é crime de racismo.
Na análise do ministro Lewandowski, a tutela não pode ser antecipada para permitir a matrícula de Fialho até que a questão seja resolvida na Justiça. A antecipação da tutela na jurisdição constitucional possui periculum in mora inverso, uma vez que não apenas atingiria um amplo universo de estudantes como também geraria graves efeitos sobre as políticas de ação afirmativa promovidas por outras universidades, disse na decisão, cujo mérito ainda será analisado pelo Plenário da Corte. O periculum in mora é o perigo na demora situação que justifica a concessão de decisões em caráter liminar, como é o caso da antecipação de tutela.
Nessa avaliação do Plenário sobre a constitucionalidade da reserva de vagas para minorias e cotas deverão ser incluídas, entre outros processos semelhantes, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3197 que questiona lei fluminense sobre cotas universitárias e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 que questiona cotas na Universidade de Brasília.
O tema de fundo do Recurso Extraordinário, cuja repercussão geral foi admitida na Corte por seis ministros, já foi analisado por representantes da sociedade civil e do governo federal numa audiência pública sobre ações afirmativas em universidades.
Dessa forma, Lewandowski afirmou na decisão que enquanto essa Corte não se pronunciar pela inconstitucionalidade desse sistema de admissão, presume-se a sua constitucionalidade.[1] É técnica semelhante à declaração a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo sem a pronúncia de nulidade do mesmo (Unvereinbarkeitserklärung), utilizada na Alemanha pela Corte Constitucional.
O primeiro e paradigmático julgamento no qual o STF lançou mão da técnica da lei ainda constitucional corresponde ao HC 70.514, julgado em 23.03.94. Nesse, aquela Corte admitiu que a norma que concedia prazo recursal em dobro para a Defensoria Pública (§ 5º do art. 5º da Lei nº. 1.060/50, acrescentado pela Lei nº. 7.871/89) não deveria ser declarada inconstitucional “até que sua organização, nos Estados, alcance o nível da organização do respectivo Ministério Público”.
Nota-se que a lei em apreço, ainda que inconstitucional, não seria assim declarada enquanto as circunstâncias de fato não se mostrassem aptas a ensejar, efetivamente, o estado de inconstitucionalidade. Nesse sentido, vejamos parte do voto proferido pelo Ministro Moreira Alves no caso (citado na Inicial da ADI acima referida):
“A única justificativa que encontro para esse tratamento desigual em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente aparelhadas como se acha o Ministério Público.
Por isso, para casos como este, parece-me deva adotar-se a construção da Corte Constitucional alemã no sentido de considerar que uma lei, em virtude das circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional, não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem inconstitucionais.
Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar”.
Na seqüência, veio o julgamento do RE nº 147.776, no qual restou decidido que a legitimação do Ministério Público para a propositura da ação civil ex delicto (art. 68 do CPP), ainda seria constitucional nos locais em que não existisse Defensoria Pública, ou essa não estivesse suficientemente estruturada, conforme ementa que segue:
MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMAÇÃO PARA PROMOÇÃO, NO JUÍZO CÍVEL, DO RESSARCIMENTO DO DANO RESULTANTE DE CRIME, SOBRE O TITULAR DO DIREITO À REPARAÇÃO: C. PR. PEN., ARTIGO 68, AINDA CONSTITUCIONAL (CF. RE 135.328): PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS LEIS.
1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc, faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da constituição – ainda quando teoricamente não cuide de preceito de eficácia limitada – subordina-se, muitas vezes, a alterações da realidade fática que a viabilizem.
2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo artigo 68, C. Pr. Penal – constituindo modalidade de assistência judiciária – deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública. Essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do artigo 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada até que – na União ou em cada estado considerado –, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o artigo 68, C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente. É o caso do estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135.328.”
Vale retomar, por fim, a Petição Inicial da ADI 4068, subscrita pelo Presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Brito e pelo advogado Francisco Rezek (Relatoria da Ministra Cármen Lúcia, já que o Ministro Celso de Mello declarou-se suspeito com base no art. 13, parágrafo único do CPC), a qual tem por objeto o § 1º do art. 16 da Lei nº. 11.457/07 (II fase de implantação da “Super-Receita”) e ainda não foi julgada.
Na inicial o autor afirma:
(...) a situação peculiar e inédita em seara de controle abstrato de inconstitucionalidade que se apresenta é justamente esta: a norma em cotejo, art. 16, § 1º, da Lei nº11.457/07 é circunstancialmente inconstitucional, em face do quadro fático que lhe é subjacente, e, porém, sem embargo disso, a lei em que se insere a norma representa um avanço tal no esboço jurídico por ele regulado que se torna imperativo preservá-la” (fl. 25).
Daí porque se pleiteia o acolhimento do pedido para que se declare a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade do dispositivo atacado, até que se implementem as condições necessárias à transferência total à PGFN das atribuições outrora da PGF.
Noutras palavras, defende-se a constitucionalidade e total legitimidade da norma, mas demonstra que sua viabilização depende de mudanças estruturais ainda não realizadas, motivo pelo qual, até que se implementem as condições, a norma deve ser considerada inconstitucional. Trata-se de um caso emblemático de norma ainda inconstitucional.[2]
2. CONCLUSÃO
A técnica da Lei “ainda constitucional” é mais um interessante meio de controle jurídico-político utilizado por nossa Corte Suprema. Tem guarida no Brasil, que eventualmente recebe a influência constitucionalista norteamericana e alemã e as digere segundo o entendimento nacional. Deve permanecer em uso no controle abstrato de especialmente no tocante a temas de repercussão geral e que apresentem o periculum in mora inverso na jurisdição constitucional pátria ou em temas em que as leis ainda não tiveram implementadas as condições para sua vigência.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1996.
CAMPOS, Ricardo Ribeiro. Leis Inconstitucionais Ainda Constitucionais? Disponível em: http://www.sosconcurseiros.com.br/direito-onstitucional/textos-complementares/novas-tecnicas-de-decisao-em-controle-abstrato-de-constitucionalidade---normas-em-processo-de-incostitucionalizacao_83-224_1/
COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula vinculante e reforma do Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
CLÈVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 297p.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. Saraiva. 2007.
Notícia Disponível em: http://coad.jusbrasil.com.br/noticias /2198919/sistema-de-cotas-lei-ainda-e-constitucional-diz-lewandowski. Acessado em: 23/11/2011.
Petição Inicial da ADI 4068, subscrita pelo Presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Brito e pelo advogado Francisco Rezek, disponível em: http://www.stf.gov.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=238921&tipo=TP&descricao=ADI%2F4068. acesso em: 29/07/08.
[1] Disponível em: http://coad.jusbrasil.com.br/noticias/2198919/sistema-de-cotas-lei-ainda-e-constitucional-diz-lewandowski. Acessado em: 23/11/2011.
[2] Disponível em: http://www.sosconcurseiros.com.br/direito-onstitucional/textos-complementares/novas-tecnicas-de-decisao-em-controle-abstrato-de-constitucionalidade---normas-em-processo-de-incostitucionalizacao_83-224_1/
Bacharel em Direito Pela FAAO, em Rio Branco/AC-2009,Pós-graduada em Direito Constitucional em 2012. Cirurgiã-dentista com diversas pós-graduações na USP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Fátima Maria Silva de. Da lei "ainda constitucional" e sua utilização pelo STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jan 2013, 08:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33658/da-lei-quot-ainda-constitucional-quot-e-sua-utilizacao-pelo-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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