Não vou ajuizar sobre a natureza do caráter que possa ter movido os constituintes de 1988, quando decidiram inscrever em nossa Constituição, no artigo 5º, inciso XLVII, alíneas a e b, na categoria de Cláusula Pétrea, a garantia da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade... etc, sem remetê-la a posterior regulamentação, através de leis ordinárias, com o fito de prover tal garantia de um embasamento doutrinário inspirado em preceitos deontológicos que nos ajudassem a elaborar as disposições jurídicas mais próximas do ideal de justiça universalmente almejado, porque, não podendo penetrar em suas consciências, correria o risco de ser leviano. Portanto, fica a critério de cada um inferir de tal fato o entendimento que mais próximo da verdade lhe parecer.
Da forma como esta questão está jurisdicionada, a maioria esmagadora do nosso povo ficou condenada a condição de cordeiros indefesos entregues a uma alcatéia de lobos sanguinários decididos e livres para barbarizarem. Então, estamos nessa situação porque os constituintes movidos por um espírito ingênuo nos colocaram nela? Ou ela seria a mais lamentável expressão da canalhice que nos vitimou tragicamente, dando sustentação a essa anomia social em que vivemos mergulhados, onde nossos direitos de cidadãos são suplantados pelos direitos dos bandidos de estourarem nossos miolos quando voltamos do trabalho, albergados pela leniência deste nosso ordenamento jurídico que não prioriza os cidadãos, evidentes paladinos da cidadania que sustentam, financeiramente, todo o aparato estatal?
No meu entendimento, o artigo 5º da nossa Constituição revela o mais clamoroso golpe que se pôde perpetrar contra a soberania do nosso povo, que se viu privado de participar, a época da constituinte, da decisão a favor ou contra a pena de morte em nosso país via plebiscito precedido de um amplo debate, que seria levado a termo através de fóruns de discussão pelos mais diversos setores organizados da sociedade abrangendo toda a nação brasileira. É oportuno lembrar a luta empreendida pelo então Deputado Amaral Neto, que se empenhou corajosamente na defesa do nosso povo quanto ao seu legítimo direito de autodeterminar-se no que respeita a esse pleito de importância tão fundamental, e que acabou sendo derrotada por forças políticas representantes, não dos nossos interesses, mas de grupamentos corporativos aliados ao clero e submissos a vontade de grupos internacionais que contemplavam outro projeto político em que não incluía as nossas conveniências. Eu vou mais além e digo que, na época da constituinte, toda a articulação política levada a termo nos conluios realizados entre deputados no ambiente segredoso dos gabinetes e que redundou no que hoje está posto da forma como se vê no citado artigo constitucional se mostrou, ao que me parece, uma traição ao nosso povo que hoje sofre as conseqüências em decorrência dela.
É do domínio público a constatação do absurdo a que chegamos referente à violência urbana, uma vez que os bandidos, diariamente, estão matando a qualquer hora do dia, com tal grau de crueldade e gratuidade, que chega a nos parecer uma miragem esquizofrênica o que a realidade arrebatadoramente nos confronta. Basta que assistamos diariamente aos programas televisivos do tipo BRASIL URGENTE com José Luiz Datena, CIDADE ALERTA com Marcelo Rezende, A TARDE É SUA com Sônia Abrão, para constatarmos que o Estado é impotente em termos de segurança pública e inadequado quanto à resposta devida a esses facínoras.
O cidadão, que com seus impostos financia todo o nosso aparato Estatal, se pergunta por que não lhe foi dado o direito de decidir sobre a institucionalização ou não da pena de morte em nosso país já que será ele o alvo das conseqüências que advirão da decisão tomada. Ele não entende essa equação em que a vida do bandido homicida deve ser preservada mesmo que implique, além de numa flagrante injustiça, num altíssimo coeficiente probabilístico que potencialize a sua execução levada a termo pelo facínora outrora poupado. Será que é porque a vida do assaltante homicida é mais importante do que a dele? Outra questão que deve angustiá-lo é imaginar que lhe restará de tudo isso apenas contar com uma possível futura guerra ou revolução que venha em seu socorro para ensejar a devida correção de tal violência e traição. Pergunta-se: nós merecemos realmente isso? Claro que não e com certeza não demorará muito o dia de uma redentora mudança em favor dos que são dignos, restaurando-nos a soberania avariada, independente da ocorrência de uma guerra ou revolução.
Quando vier a ser instituída a pena capital para as situações de latrocínio e estupro seguido de morte, assim como também o homicídio qualificado, pouco se acrescentará em termos de tragédia a nossa realidade uma vez que estamos todos sentenciados a morrer já que ninguém ficará para a semente. O diferencial na circunstância em que a morte venha em decorrência de uma judicatura realizada nos termos da lei, com amplo direito de defesa, é apenas o da antecipação da mesma destinada àqueles que não reconheceram em fato o direito à vida de outrem.
A mais ponderada reflexão nos aponta para um futuro, que a graça de Deus nos conceda não esteja muito distante, consideravelmente diferente. O homem escolherá, por força de uma condição inescapável, os valores que constituirão o modelo de projeto civilizatório definidor do conceito de humanidade. Como toda opção implica essencialmente numa disposição discriminatória e excludente, ele terá que decidir sobre que tipo de hominídeo se enquadrará na conformação arquetípica do espécime capacitado a fazer parte da grande família humana, consoante os parâmetros morais então identificados e as balizas de mesma natureza estabelecidas.
É possível que demoremos ainda mais algum tempo, até que nos caiam todas as fichas, e compreendamos que não nos sobram alternativas se quisermos de fato contemplar a possibilidade de um dia vermos plasmada a verdadeira humanidade. Em termos mais simples, trata-se tão somente da verdade inscrita no aforismo popular que diz: “Não conseguiremos fazer a omelete se não quebrarmos os ovos”. Mas tal incremento, quando a hora for chegada, ocorrerá obedecendo ao cânon que prefigura todo o esforço civilizatório rumo a uma necessária depuração daquilo que entendemos por humanidade no seu conceito mais puro. Aliás, esse horizonte nos remete a uma profecia bíblica: “Muitos serão chamados, porém, poucos os escolhidos!”. Como se pode ver, o imperativo da circunstância em que a escolha se nos apresenta como inescapável vem de remotas eras. Um dia o homem terá que decidir, e esperemos que esse dia não esteja tão longe, para que vidas legitimamente significativas e eticamente valorosas não tenham mais que ser sacrificadas no altar da hipocrisia e da covardia dos que insistem em ficar em cima do muro numa tácita e vil conivência com todo esse horror de violência impune que toma conta do país. Estamos nos acostumando a conviver com a banalização de uma rotina de violência urbana sem que tal fato nos arrebate a uma atitude natural de indignação e inconformismo. É mais ou menos como se tal fato constituísse um fenômeno da natureza, imponderável, imprevisível e que nada há o que se fazer a não ser os procedimentos institucionais já conhecidos e inócuos que existem apenas para compor um formalismo inútil e ridículo. http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,impunidade,38378.html.
É imperativo que a sociedade, representada pelos mais diversos setores organizados que a constitui, reaja em peso, pois se temos algum respeito por nós mesmos, não é coerente que adotemos uma atitude de indiferença em relação a esse quadro de anomia em que a violência letal urbana ceifa diariamente vidas de cidadãos trabalhadores inocentes, honestos, muitos dos quais deixando na cruel orfandade crianças que tiveram o azar de nascer num país onde um bandido conta mais que um cidadão.
Sabemos que tudo no mundo que compreenda a forma de atuação do homem em face da realidade que o cerca é susceptível de superação, posto que a realidade seja dinâmica e cria novas demandas cada vez mais complexas. A nossa Constituição está superada quando em várias de suas disposições legais fica configurado um entrave para um aprimoramento do nosso Ordenamento Jurídico consoante as exigências demandadas pela complexidade da realidade, sociocriminal, atualizada. Sem mudanças é impraticável otimizar o grau de eficácia jurisdicional com foco na contemplação de um autêntico ideal de justiça em que a sociedade possa se reconhecer representada. Nosso atual texto constitucional exerce em todo o aparato normativo uma ação imobilizadora que impede o necessário ajuste em boa parte das leis ordinárias que seria de importância fundamental para torná-las mais conseqüentes. Eu diria que a atual Constituição promove um engessamento no Ordenamento Jurídico como um todo. Dessa forma qualquer pretensão de reformar o nosso Código Penal, Código Processo Penal, redundará sempre num resultado canhestro, sem os ganhos necessários que a nossa realidade criminológica está a exigir.
Se pensarmos que a lei do crime hediondo, conquistada a duras penas pelo povo brasileiro, que tinha como caráter essencial a justificá-la, a exigência de ser refratária a incidência do instituto do regime de progressão de pena, ou seja, a obrigatoriedade do cumprimento integral da pena arbitrada pelo juiz, compulsoriamente determinada pela tipificação objetiva do delito, foi a mais recente vítima da nossa Constituição que, em razão dela, consoante o entendimento da maioria dos Ministros da Suprema Corte, impunha-se suprimir-lhe o caráter compulsório para largá-la na vala insondável do solipsismo exegético jurídico, mercê da subjetividade imponderável, fator de singularíssimas e polêmicas interpretações jurídicas. Conclusão: a lei do crime hediondo hoje, de fato, não mais existe consoante as razões pelas quais ela foi criada, de tal ordem que, se ela for excluída literalmente não fará absolutamente falta alguma. Levamos mais uma vez um traço do destino. É muita caiporice nossa! Quando se cria uma lei, com seriedade de propósitos, que venha eficazmente colimar um legítimo ideal de justiça e dar cobro a esse miasma da impunidade, acontece dela ser detonada como a do caso em questão. Apelar para quem? É duro de encarar!
Acreditar na possibilidade da convocação de uma nova Assembléia Constituinte chega a ser, além de um alento para a nossa angústia decorrente do horror em que vivemos nos termos da violência urbana reinante no país, um dever moral e cívico no exercício da nossa cidadania. Afinal de contas a exigência conjuntural para isso já se configura, pois já vivemos praticamente em estado de guerra ou, no mínimo, em uma situação de extrema gravidade nacional.
A título de sugestão eu pergunto: porque nas próximas eleições não poderia ser disponibilizado ao eleitor, por ocasião do seu exercício eleitoral, em anexo e sem finalidade institucional formal, mas apenas para se apreender com precisão o que o nosso povo anseia, as opções contra ou a favor da pena de morte?
A adoção ou não da pena de morte é um decisão que se delibera no âmbito da esfera política e não técnica, por conseguinte não pode prescindir da vontade do povo.
Profº de Filosofia c/ Pós-Graduação em Filosofia da Ciência e da Linguagem. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, José da Silva. Repensando a Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33730/repensando-a-constituicao. Acesso em: 23 dez 2024.
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