Questão sempre muito debatida na doutrina e jurisprudência se refere à circunstância do Decreto 3.179/99 – atualmente ab-rogado pelo Decreto 6.514/08 – ter previsto as infrações ambientais passíveis de reprimenda pelo Poder Público, assim como suas respectivas sanções.
Com efeito, o Decreto 3.179/99 dispôs sobre “a especificação das sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”. Os intérpretes desavisados, então, não tardaram em alegar uma suposta ilegalidade / inconstitucionalidade do mencionado Decreto, por violação do princípio constitucional da legalidade. Trata-se, consoante ao longo deste expositório demonstrar-se-á, de uma falácia, tendente a assegurar a impunidade daqueles que praticam infrações em desfavor do meio ambiente. Comprovaremos que nenhuma inconstitucionalidade ou ilegalidade existe pelo fato do instrumento legislativo competente ter delegado a um decreto a função de prever as condutas ambientais infracionais.
Em breves linhas, será explicitado que nenhum vício, seja de legalidade seja de constitucionalidade, existe, conclusão esta que deixa às escancaras a fragilidade da construção teórica que preconiza a impossibilidade do poder de polícia ambiental ser exercido com fulcro no multicitado Decreto 3.179/99.
1- Do Princípio Constitucional da Legalidade. Definição de Decreto Executivo. O Regulamento Autônomo no Direito Francês.
Ninguém melhor do que Celso Antônio Bandeira de Melo¹ para definir o mais importante princípio – ou mandamento nuclear do sistema, nas suas palavras – do Estado Democrático de Direito, qual seja, o da legalidade. De acordo com o escólio do mestre, deste princípio derivam outros, de envergadura igualmente constitucional, e de extrema relevância, tais como os princípios da finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, entre outros. Pedimos vênia para transcrever parte de sua lição.
O Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5,II, expressamente estatui que: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Note-se que o preceptivo não diz “decreto”, “regulamento”, “portaria”, “resolução” ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas.
Em estrita harmonia com o art. 5, II, precitado, e travando um quadro cerrado dentro do qual se há de circunscrever a Administração, com todos os seus órgãos e auxiliares personalizados, o art. 84, IV, delimita, então, o sentido da competência regulamentar do Chefe do Poder Executivo ao estabelecer que ao Presidente da República compete “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Nisto se revela que a função regulamentar, no Brasil, cinge-se exclusivamente à produção destes atos normativos que sejam requeridos para “fiel execução” da lei. Ou seja: entre nós, então, como se disse, não há lugar senão para os regulamentos que a doutrina estrangeira designa como “executivos”.
Em suma: consagra-se, em nosso Direito Constitucional, a aplicação plena, cabal, do chamado princípio da legalidade, tomado em sua verdadeira e completa extensão. Em conseqüência, pode-se, com Pontes de Miranda, afirmar: “Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso do poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que se possa, com talo desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei”.
Os preceptivos da Constituição brasileira, retrotranscritos, respondem com precisão capilar a objetivos fundamentais do Estado de Direito e exprimem com rigor o ideário e as preocupações que nele historicamente se substanciaram, pois seu projeto é o de que vigore o governo das leis e não o dos homens. Ou seja: a rule of law, not of men, conforme assertiva clássica oriunda do Direito inglês.
(...)
Por tal razão, a regra do art. 5, II, bem como o disposto nos arts. 37 e 84, IV, da Carta Magna do País possuem relevo transcendente, pois assumem função-chave no sistema jurídico. Correspondem a verdadeira pedra angular de nosso Direito Público, na medida em que respondem pelo critério de preservação de um ponto nodular da ordem jurídica brasileira. Deles depende a mantença, sob o ponto de vista jurídico, de instituições concebidas para garantir o indivíduo contra eventuais desmandos do Estado.
(...)
Limitações ao regulamento no Direito brasileiro: a delegação legislativa disfarçada
Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.
Alexandre de Moraes², acerca do mencionado postulado, destaca, também, in verbis:
“O art. 5, II, da Constituição Federal, preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixare de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional, podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei. Conforme salientam Celso Bastos e Ives Gandra Martins, no fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei, pois como já afirmava Aristóteles, “a paixão perverte os Magistrados e os melhores homens: a inteligência sem paixão – eis a lei”.
O princípio da legalidade, quando analisado sob a perspectiva administrativista, possui um diferente enfoque. Apesar da sua diminuta importância para o presente estudo, vale a pena explicitar sua abrangência. José dos Santos Carvalho Filho³, com o brilhantismo costumeiro, aborda esta outra faceta do mencionado postulado. Vejamos:
O princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita.
Tal postulado, consagrado após séculos de evolução política, tem por origem mais próxima a criação do Estado de Direito, ou seja, o Estado que deve respeitar as próprias leis que edita.
Nessa senda, tendo em vista os fins do presente trabalho, mister se faz, também, trazer à baila a definição de Decreto Executivo.
De acordo com o Constitucionalismo brasileiro, é possível afirmar que DECRETO é o ato normativo expedido pelo Chefe do Executivo, no exercício do poder-dever normativo. Atualmente, é possível distinguir-se três funções para esta espécie legislativa, a saber:
1- Proporcionar a fiel execução das leis (art. 84, IV);
2- Dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos (art. 84, VI, “a”);
3- Extinguir funções ou cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI, “b”)
A razão de ser dos Decretos Executivos está no fato de que nem todas as leis aprovadas pelo Poder Legislativo são auto-executórias. Dessa forma, torna-se imperiosa a edição de decretos que pormenorizem o conteúdo da lei, proporcionando a sua aplicação uniforme a todos os jurisdicionados.
Apesar dos nobres fins para os quais concebidos, não raro se observa no histórico de países com experiências ditatoriais a utilização transversa dos decretos. A rigor, em se tratando de atos hierarquicamente inferiores à lei em sentido formal, jamais poderiam ampliar ou diminuir o conteúdo das disposições legislativas. Apenas a lei tem o condão de inovar na ordem jurídica. Isto porque a lei é fonte primária do Direito, ao passo que os regulamentos, decretos, são fonte secundária.
Outra prática nefasta observada em alguns países se refere à “delegação legislativa disfarçada”. Por intermédio desta, o Parlamento edita lei autorizando que o Poder Executivo disponha acerca de determinada matéria por meio de Decreto. Como visto, eventual decreto - fonte secundária - que seja editado neste sentido padecerá do vício de inconstitucionalidade, por violação manifesta do princípio da legalidade. Caso o Poder Legislativo deseje delegar a função típica de legislar ao Poder Executivo, deverá se valer do instituto da “Lei Delegada”, observando as limitações estatuídas na Constituição Federal, tal como a vedação de que determinadas matérias sejam tratadas por este tipo de lei. Cumpre lembrar que a Lei Delegada caiu em desuso com a criação das Medidas Provisórias, cuja disciplina permite ao Executivo atingir seus desideratos com mais celeridade e flexibilidade.
Alguns países, como a França, são mais flexíveis quando se trata da edição de diplomas legislativos por parte do Poder Executivo. Esta nação consagrou, na sua Constituição, a figura do regulamento autônomo, não obstante a existência, também, do regulamento Executivo. O campo de atribuições do regulamento autônomo é residual, vez que todas as matérias que não forem reservadas ao Parlamento poderão ser tratadas via regulamento autônomo. É chamado de autônomo porque pode inovar na ordem jurídica, enquanto o regulamento executivo necessariamente pressupõe a existência de lei anterior.
2- Da não caracterização do Decreto 3.179/99 como decreto ou regulamento autônomo
Aqueles que militam na seara ambiental com certeza já se depararam com a tese defendida pelos causídicos dos autuados referente à inconstitucionalidade do Decreto 3.179/99, vez que a ordem jurídica pátria não teria concebido a figura dos “decretos ou regulamentos autônomos”. Esta assertiva revela-se duplamente equivocada. Primeiramente, porque a Constituição Federal de 1988 previu, sim, os decretos autônomos. Segundo, porque os Decretos 3.179/99 e 6.514/08 não podem ser qualificados como autônomos.
A Emenda Constitucional nº 32/01 foi a responsável pela introdução, no Brasil, da figura do “Decreto Autônomo”. A partir de então, o art. 84, VI, da CF/88, passou a permitir que o Presidente da República (leia-se: o Poder Executivo) promova a extinção de cargos públicos vagos mediante Decreto. Tem-se aqui, portanto, uma espécie legislativa cuja legitimação advém diretamente do texto constitucional. Este decreto inova, sim, na ordem jurídica, não se tratando de um mero complemento de outra norma. Mas, repita-se: trata-se de uma exceção prevista diretamente na CF/88. Em regra, cabe aos decretos simplesmente a função de esmiuçar o conteúdo de leis preexistentes, sem criar direitos ou obrigações para os cidadãos, em atendimento ao multicitado princípio da legalidade.
Acerca dos Decretos Autônomos, cumpre trazer à baila os comentários de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo4.
Essas inovações introduzidas em nosso ordenamento jurídico pela EC n 32/01 são extremamente significativas. Como já comentamos, passou a existir, no Brasil, a figura do Decreto Autônomo, nas hipóteses previstas no art. 84, VI (vale lembrar que as atribuições previstas neste inciso podem ser delegadas pelo Presidente da República a outras autoridades administrativas). Além disso, a EC n 32/2001 desconsidera um dos mais tradicionais postulados da ciência jurídica: o princípio segundo o qual os institutos devem ser criados e extintos por ato de igual natureza. Com efeito, os cargos públicos passam a ser criados, obrigatoriamente, por lei e são extintos, quando vagos, mediante decreto. É verdade que o Decreto, nesse caso, é ato primário, uma vez que não é expedido em função de uma lei, mas deflui diretamente do texto constitucional. De qualquer forma, não deixa de ser ato administrativo, de natureza diversa, portanto, do ato que criou o cargo (a lei formal). [Alexandrino, Marcelo. Direito Administrativo / Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo. – 8 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005, págs.157/158].
De qualquer sorte, a discussão acerca da existência ou não da figura dos decretos ou regulamentos autônomos no Brasil é de menor importância, porquanto uma constatação é inafastável: os Decretos 3.179/99 e 6.514/08 não inovaram na ordem jurídica. Conforme restará comprovado nos tópicos seguintes deste trabalho, tais decretos, atendendo o quanto determinado pelo art. 75, da Lei 9.605/98, simplesmente previram as sanções pecuniárias aplicáveis às infrações nela descritas.
Não é de difícil percepção o fato de que as infrações administrativas previstas no Decreto 3.179/99 e 6.514/08 são meras repetições dos tipos penais estatuídos na Lei 9.605/98. Como afirmar, então, que representam decretos autônomos? Como sustentar sua ilegalidade?
3- Da Legalidade / Constitucionalidade na Imposição de Sanções via Decreto. Observância dos Limites dos Poderes Normativo e Regulamentar. Posição da Doutrina e Jurisprudência.
É indubitável a possibilidade de imposição de sanções em razão da prática de infrações ambientais. Neste diapasão, quadra destacar que este poder, ou melhor, este poder-dever, está consignado em três planos, quais sejam: constitucional (art. 225, §3º, da CF/88), legal stricto sensu (arts. 70 usque 75, da Lei 9.605/98) e regulamentar (Decreto 3.179/99 – recentemente ab-rogado pelo Decreto 6.514/08 -). Vejamos:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:
I- Advertência
II- Multa simples
III- Multa diária
IV- Apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração
V- Destruição ou inutilização do produto
VI- Suspensão de venda e fabricação do produto
VII- Embargo de obra ou atividade
VIII- Demolição de obra
IX- Suspensão parcial ou total das atividades
X- (VETADO)
XI- Restritiva de direitos.
Art. 75. O valor da multa de que trata este Capítulo será fixado no regulamento desta Lei e corrigido periodicamente, com base nos índices estabelecidos na legislação pertinente, sendo o mínimo de R$ 50,00 (cinqüenta reais) e omáximo de R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais).
Não há falar-se, portanto, em inconstitucionalidade do Decreto 3.179/99 ou 6.514/08, por violação do princípio da legalidade. Não obstante a norma inquinada de inconstitucional estar prevista em um decreto regulamentar, a mesma não passa de uma repetição estrita do que está previsto nas leis mencionadas na ementa do citado Decreto.
Na situação em tela, não é possível vislumbrar-se um decreto invadindo a esfera legislativa reservada às leis. Pelo contrário, o ato normativo emanado do Poder Executivo está subordinado ao princípio constitucional da legalidade, vez que apenas cumpriu o quanto estatuído pela Lei dos Crimes e Infrações Administrativas Ambientais. Aliás, mesmo que o Poder Executivo não tivesse editado o Decreto 3.179/99, a incidência da Lei 9.605/98 seria suficiente para tipificar as condutas praticadas pelos infratores.
Pelo que se expôs nos parágrafos pretéritos, resta inconteste, então, que não houve extrapolação do Poder Regulamentar ou Normativo, tampouco a caracterização de delegação legislativa disfarçada.
A rigor, o decreto apenas disse o óbvio: se as infrações tipificadas nos arts. 29 a 69 da Lei 9.605/98 constituem crimes, admitindo a mais severa das reprimendas, qual seja, a privação da liberdade, certamente, e com mais razão (a fortiori), constituirão também infrações administrativas, cujas sanções, mais leves, jamais extrapolam a esfera patrimonial do infrator. Trata-se da aplicação do princípio geral do direito segundo o qual “quem pode o mais, pode o menos”: se o Estado pode punir um fato ilícito com grande rigor (na esfera penal), obviamente também poderá punir o mesmo fato com rigor menos acentuado (na esfera administrativa). Ocorreu, portanto, apenas a regulamentação do disposto no art. 70 da Lei nº 9.605/98, com a explicitação de seu conteúdo. Ressalte-se que seu próprio art. 75, como visto, determinou que “o valor da multa de que trata este Capítulo será fixado no regulamento desta Lei”.
3.1- Posicionamento Doutrinário Acerca do Tema
A doutrina nacional não negligenciou a análise da problemática em questão. Insta trazer à baila as lições do Juiz Federal Flávio Dino de Castro e Costa5, colhido em obra considerada o maior clássico do direito ambiental punitivo.
“Com efeito, a imperativa observância do princípio da legalidade não se confunde com o estabelecimento de tantas barreiras ao exercício da atividade regulamentar que acabe por inviabilizá-la, reduzindo-a a efetuar mera cópia da lei. A ação normativa por parte da Administração é um ‘poder constitucionalmente fundado’, como revela o art. 49, incisos V e XI, da Carta Político, daí porque – se exercida nos limites nesta fixados – não é revestida de qualquer nota de ilegitimidade.
Tais limites acham-se consignados no art. 84, inciso IV, da CF: os regulamentos podem ser expedidos pelo Presidente da República, destinados à ´fiel execução` das leis. Deste modo, editado um Decreto com esta finalidade, cumpre examinar se este ultrapassou a tarefa de complementar a lei que o habilita, hipótese em que as disposições com tal vício serão nulas.
Com base nestas premissas, considera-se que o Decreto nº 3.179/99, de 21 de setembro de 1999, na parte em que se dedicou a especificar o comando contido no caput deste art. 70, não incorreu na mácula mencionada. Os tipos infracionais nele arrolados decorrem de leis em sentido estrito, constantes do seu pórtico. Nesse contexto, merecem especial relevo os dispositivos que transpuseram para a seara administrativa condutas classificadas na Lei nº 9.605/98 como crimes, já que é óbvio que elas violam ´as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente`.”
Na mesma linha, o administrativista Régis Fernandes de Oliveira6, ao tratar do direito administrativo sancionador de modo geral, assevera que:
“Pode ocorrer que a lei possibilite à autoridade administrativa estabelecer determinada ordem cuja violação já vem sancionada em lei (p. ex.: comunicação de moléstias transmissíveis, que serão previstas em regulamento, etc.). Neste caso especial, se a conduta violar a disposição regulamentar e a sanção estiver prevista em lei, não há lesão ao princípio da legalidade, nem ao princípio da indelegabilidade das funções.”
Não é de difícil percepção o fato de que a matéria ora tratada se enquadra exatamente na situação descrita pelo administrativista. É dizer: as condutas infracionais administrativas (que são reiterações dos crimes ambientais) estão previstas no Decreto 3.179/99 – atualmente ab-rogado pelo Decreto 6.514/08 - (em virtude da autorização dos arts. 70 e 75 da Lei 9.605/08), enquanto as sanções têm sua aplicação legitimada por uma norma legal (art. 72 da lei retro mencionada).
3.2- Posicionamento da Jurisprudência
A jurisprudência pátria, seguindo a linha da doutrina retro transcrita, avaliza a conclusão acerca da legalidade / constitucionalidade dos Decretos 3.179/99 e 6.514/08. Os arestos a seguir transcritos destacam que o fato da Lei 9.605/98 ter previsto como crime as infrações administrativas reproduzidas no multicitado Decreto 3.179/99 confere o embasamento legal necessário para que sejam efetuadas as autuações pela autarquia ambiental, sem que reste minimamente arranhado o princípio constitucional da legalidade. Vejamos:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA AMBIENTAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. ARMAZENAGEM DE PNEUS USADOS IMPORTADOS, SEM AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO AMBIENTAL COMPETENTE. ART. 70 DA LEI 9.605/98. PENA DE MULTA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. PLENA OBSERVÂNCIA. REVISÃO DO VALOR DA MULTA EM SEDE DE MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. PRECEDENTES.
1. É pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não viola o art. 535 do CPC, tampouco nega a prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adota, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia. 2. A aplicação de sanções administrativas, decorrente do exercício do poder de polícia, somente se torna legítima quando o ato praticado pelo administrado estiver previamente definido pela lei como infração administrativa. 3. Hipótese em que o auto de infração foi lavrado com fundamento no art. 70 da Lei 9.605/98, c/c os arts. 47-A, do Decreto 3.179/99, e 4º da Resolução CONAMA 23/96, pelo fato de a impetrante, ora recorrente, ter armazenado 69.300 pneus usados importados, sem autorização do órgão ambiental competente. 4. Considera-se infração administrativa ambiental, conforme o disposto no art. 70 da Lei 9.605/98, toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. 5. A conduta lesiva ao meio ambiente, ao tempo da autuação, estava prevista no art. 47-A do Decreto 3.179/99, atualmente revogado. De acordo com o referido preceito, constituía infração ambiental a importação de pneu usado ou reformado, incorrendo na mesma pena quem comercializava, transportava, armazenava, guardava ou mantinha em depósito pneu usado ou reformado, importado nessas condições. A referida proibição, apenas para registro, está prevista, atualmente, no art. 70 do Decreto 6.514/2008. 6. Tem-se, assim, que a norma em comento (art. 47-A do Decreto 3.179/99), combinada com o disposto no art. 70 da Lei 9.605/98, anteriormente mencionado, conferia toda a sustentação legal necessária à imposição da pena administrativa, não se podendo falar em violação do princípio da legalidade estrita. 7. O valor da multa aplicada, por levar em conta a gravidade da infração e a situação econômica do infrator, conforme dispõe o art. 6º da Lei 9.605/98, além de não ter ultrapassado os limites definidos no art. 75 do mesmo diploma legal, não pode ser revisto em sede de mandado de segurança, pois exige dilação probatória, tampouco pode ser reexaminado em sede de recurso especial, conforme o disposto na Súmula 7/STJ. 8. Recurso especial desprovido, ressalvado o acesso da impetrante às vias ordinárias.
RECURSO ESPECIAL 100613 RELATOR(A) DENISE ARRUDA STJ ORGÃO JULGADOR: PRIMEIRA TURMA FONTE: DJE DATA 10/08/2009
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AUTO DE INFRAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO: LEI 9.605/98, DECRETO 3.179/99 E PORTARIA N. 44/93-N DO IBAMA. LEGALIDADE. 1. O art. 70 da Lei 9.605/98 considera como infração administrativa toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. 2. Apesar da conduta descrita no art. 46, parágrafo único, da Lei 9.605/98 configurar crime contra o meio ambiente, a sua combinação com o supracitado artigo dão suporte à aplicação da multa administrativa, não havendo que se falar em ilegalidade. Precedentes do STJ e desta Corte. 3. Quanto ao valor da multa fixada em razão do ato infracional, nos limites previstos no art. 32 do Decreto 3.179, mostra-se ele razoável e proporcional, considerando que o proveito econômico que a Autuada teria com a comercialização da madeira ilegal seria muito superior a esse valor, levando-se em conta o preço médio do metro cúbico da madeira objeto da autuação. 4. Apelação e remessa oficial providas, para julgar improcedente o pedido.
PROCESSO: APELAÇÃO CÍVEL – 200239000033984 RELATOR (A) JUIZ FEDERAL PEDRO FRANCISCO DA SILVA (CONV.) TRF1 QUINTA TURMA FONTE: e-DJF1 DATA: 17/12/2009 PÁGINA 286
ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. IBAMA. AUTO DE INFRAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE POR VÍCIO DE COAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA SUFICIENTE DA ALEGAÇÃO. RECEBIMENTO DE MADEIRA SEM COBERTURA DE ATPF. MULTA IMPOSTA COM BASE NOS ARTS. 2º E 32 DO DECRETO N. 3.179/99. DETALHAMENTO DE INFRAÇÕES E DE PENAS EM REGULAMENTO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. 1. Ainda quando constatados alguns fatos que se alinham na direção da tese da alegada coação dos fiscais do IBAMA sobre o motorista do caminhão para fazer a entrega da madeira desacompanhada de documentação regular no estabelecimento da apelante, se a autora, costumeira infratora da legislação ambiental, não faz prova robusta do fato, que aliás classifica como mera suspeita, é de ser mantida a legalidade da atuação dos fiscais. 2. Embora não mencionados no auto de infração, os arts. 70, 72 e 75 da Lei n. 9.605/98 dão respaldo ao auto de infração lavrado para punição do recebimento de madeira desacompanhada de documentação regular, com invocação dos arts. 2º e 32 do Decreto Federal n. 3.179/99, que regulamentam os citados dispositivos legais, detalhando os fatos constitutivos das infrações, assim como as respectivas penas, umas e outras previstas, em termos gerais, naqueles dispositivos legais, sem que isso importe em violação do princípio da reserva legal. 3. Apelo da autora não provido.
4- Conclusão
Por tudo quanto exposto, não é possível vislumbrar-se qualquer inconstitucionalidade (seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista formal) ou ilegalidade na edição do Decreto 3.179/99 ou do Decreto 6.514/08, porquanto estas espécies legislativas não promoveram a criação ou inovação no ordenamento jurídico, mas apenas regulamentaram o quanto determinado pela Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais.
Referências Bibliográficas:
1- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 15.ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2002. p. 105-108
2- MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19.ed. – São Paulo: Atlas, 2006. p. 300-302.
3- CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.23.
4- ALEXANDRINO, Marcelo. Direito administrativo / Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo. – 8ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
5- COSTA, Flávio Dino de Castro e et alli. Crimes e infrações administrativas ambientais, 2ª edição, Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 2001, pp. 376/377.
6- OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 39.
Juíza de Direito do Estado de São Paulo. Coautora do livro: Atipicidade dos meios executivos (Editora Juspodivm) - 2011.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Marina Lemos de. Constitucionalidade e/ou legalidade da imposição de sanções pelos decretos 3.179/99 e 6.514/08. Alcance do princípio da legalidade. Limites do poder regulamentar e normativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 fev 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33869/constitucionalidade-e-ou-legalidade-da-imposicao-de-sancoes-pelos-decretos-3-179-99-e-6-514-08-alcance-do-principio-da-legalidade-limites-do-poder-regulamentar-e-normativo. Acesso em: 23 dez 2024.
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