SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O sentido da Democracia. 3 Conclusão. 4 Referências
RESUMO: Este trabalho se propõe ao estudo e reflexão acerca de um dos temas de grande incidência e importância para o direito, política e a sociedade como um todo. Diante das inúmeras situações em que somos chamados a discutir a prevalência da vontade da maioria da população em detrimento de uma parte minoritária desta - que termina por perder espaço na sociedade e, por consequência, tem seus direitosnão garantidos na sociedade brasileira, dita democrática e plural -, urge o aprofundamento desta discussão, visando demonstrar a necessidade da garantia da vontade, também, das minorias e, por conseguinte, o respeito e a concretização dos valores supremos da Constituição Federal.
PALAVRAS-CHAVE:Democracia – Sentido – Vontade das minorias.
The meaning of Democracy
CONTENTS: 1 Introduction. 2 The meaning of Democracy. 3 Conclusion. 4 References
ABSTRACT: This work aims to study and reflection of one of the topics of great importance and impacts the rights, politics, and society as a whole. Given the numerous situations in which we are called to discuss the prevalenceof the will of the majority rather than the minority, - this may end up losing space in society and having no rights guaranteed in the Brazilian society, said democratic and plural – urges the deepening of this discussion in order to demonstrate the need for assurance that minorities will respect the implementation of the supreme values of the Federal Constitution.
KEYWORDS: 1 Democracy – 2 Meaning – 3 Willingness of minorities.
Introdução
Na atualidade muito se discute o real sentido da Democracia em nosso país. E, mais recentemente, a sociedade foi suscitada a discuti-lo com enfoque na liberdade de votar e eleger políticos. Neste cenário foi promulgada a chamada Lei da “Ficha Limpa”, fruto de grande mobilização popular que almejava a melhoria da qualidade dos nossos parlamentares. Houve e ainda há grade clamor popular por ética publica e higidez moral; reclamam-se políticos que bem representem o país ao invés de, como muito vem acontecendo, causar vergonha e deter o crescimento da nação.
Neste contexto, muito se questiona se seria necessário que viesse uma lei para que somente o cidadão com conduta socialmente aceita pudesse se eleger. Ora, não seria apenas necessário que os cidadãos, tendo conhecimento dos atos praticados pelos candidatos, tivessem o discernimento de escolher quem vai representá-los? Se a maioria desejasse ter um determinado candidato lhes representando, poderia a lei proibir-lhe a candidatura? A vontade da maioria não deveria prevalecer? Não seria antidemocrática esta proibição? Por outro lado, a maioria desejou que a moralizadora Lei da “Ficha Limpa” fosse aplicada de imediato e requer, muitas vezes, radicalismos sob o manto da moralização. Dever-se-ia respeitar a vontade da maioria, tendo-se em vista que é ela que elege os parlamentares que irão elaborar as leis que representem seus anseios?
Esses questionamentos importam para a sociedade devido às inúmeras discussões que se instalaram em torno da validade dessa lei. Diante de tais discussões, muitos se apegaram ao fato de que a tão esperada Lei da “Ficha Limpa” é fruto de clamor popular e, contando com o apoio da maioria dos cidadãos, deveria ser declarada constitucional.
O sentido da democracia
Inicialmente, no intuito de esclarecer a questão da prevalência da vontade da maioria propõe-se que se reflita e se recorde que, com o apoio da maioria, Hitler ascendeu ao poder e, também, a maioria, quando lhe foi perguntada em um “plebiscito” realizado por Pilatos, optou por crucificar Cristo.
Este momento da história de grande clamor popular pela crucificação, na visão de Hans Kelsen representou um processo democrático, mas este conceito de democracia não deve prevalecer nos dias atuais conforme aponta o jurista italiano Gustavo Zagrebelsky (2011) e será explicitado adiante.
Sabe-se que a democracia brasileira é representativa. O titular do poder é o povo, que transfere apenas o exercício deste aos parlamentares ao escolhê-los por meio do voto livre; elegendo-se o candidato que obtiver maior número de votos. Argumenta-se que, sendo o povo o titular do poder, este pode ditar e modificar as regras do jogo sempre que assim desejar. Mas este posicionamento não pode ser levado ao pé da letra. Esta visão pauta-se em um entendimento a respeito de democracia que, como dito, não deve prevalecer. Democracia nos dias atuais não significa apenas vontade das maiorias, deve-se garantir também que as minorias tenham seus anseios assegurados. O seu conceito hoje é material/substancial, ou seja, significa vontade da maioria + garantia dos direitos básicos inclusive pelas minorias.
A Constituição Federal, como também o seu guardião – o STF -, atua como mecanismo antimajoritário, ou seja, é um mecanismo de limitação do poder. Observe que, ao contrário, os poderes Legislativo e Executivo não exercem este poder contramajoritário porquanto eleitos pelo povo. Desta forma, tendem a tomar medidas a favor da maioria, e, por isso, deve-se ter muito cuidado na análise da constitucionalidade das leis, tentando-se evitar que seja instaurada a “ditadura da maioria”.
O poder constituinte originário é soberano, incondicionado e ilimitado juridicamente. Quando instituído, todo o ordenamento jurídico, como também o próprio povo que o instituiu, lhe deve obediência. A Carta assegura as regras do jogo democrático para que a base democrática não seja destruída. Isto é importantíssimo para que seja garantido um Estado de Direito. Sem a observância do que determina a Constituição, modificações abruptas e desarrazoadas seriam possíveis em nome de uma maioria que poderia não assegurar o direito das minorias existentes. Além disso, a vontade do povo é impulsionada por questões infinitas, muitas vezes irracionais e indesejáveis. A Carta Política é então relevante ferramenta de proteção ao Estado Democrático de Direito.
Assim, a validade de uma norma, não decorre da sua origem e apoio popular. Ainda que a maioria deseje determinada modificação legislativa, esta deve estar de acordo com a Carta, e mais especificamente, com os fundamentais princípios nela consagrados. Esses princípios norteiam o sistema jurídico, sendo imprescindível averiguar se foram desrespeitados pela Lei da “Ficha Limpa”.
Por conseguinte, o argumento de que a lei é democrática, idealizada pelo povo, votada e aprovada por seus representantes, não é argumento válido para, por si só, validá-la. Em excelente trabalho realizado pelo jurista italiano Gustavo Zagrebelsky (2011), este autor explica que o conceito de democracia que ainda se tem nos dias atuais encontra imperfeições. Explica que há três concepções de democracia: a dogmática, a cética e a crítica.
As concepções acríticas enaltecem a soberania popular, como se o povo detivesse um poder ilimitado. Já a democracia crítica, apesar de reconhecer a soberania, discorda que o poder seja ilimitado. Tem uma visão realista do povo. A multidão pode ser movida como uma arma, facilmente manipulada, além de também ser movida por emoção e razões pessoais, o que acarreta muitas vezes em uma má escolha dos representantes. O povo é muitas vezes utilizado, pelos que exercem o poder, como argumento a favor da correição de seus atos, quando estes são questionados, mas estão respaldos pela vontade do povo; é comumente utilizada a seguinte frase: “o povo falou está falado”.
Continua Zagrebelsky (2011) que as concepções acríticas da democracia levam a situações unitárias; a tendência é reduzir-se a pluralidade de vozes. Na dogmática, porque o indivíduo que dissente está minando a força da verdade. Na cética, porque o que dissente seria um sabotador do poder constituído. A democracia crítica, por sua vez, aceita a existência de vozes minoritárias, inclusive a deseja. Acredita no dialogo, na reflexão, na mutabilidade e reversibilidade das decisões. A minoria pode, eventualmente, até vir a tornar-se maioria.
Para a democracia crítica, nada é mais insensato que a divinização do povo expressa pela máxima Vox populi, vox dei , uma verdadeira forma de idolatria política. Esta grosseira teologia democrática condiz com as concepções triunfais e acríticas do poder do povo, as quais, como vimos, são apenas adulações interesseiras.
A autoridade do povo, na democracia crítica, não depende de suas supostas qualidades sobre-humanas, como a onipotência e a infalibilidade. Depende, ao contrário, da razão exatamente oposta, ou seja, admitir que o povo de maneira geral e todos os homens são necessariamente limitados e falíveis.
Este ponto parece, à primeira vista, conter uma contradição que deve ser esclarecida. Como se pode confiar na decisão de alguém, como se pode atribuir-lhe autoridade quando sabemos que este alguém tem vícios e falhas, ao invés de méritos e virtudes? A resposta justamente na generalidade dos vícios e das falhas. A democracia, em geral e a democracia crítica em especial estão fundamentadas em um ponto essencial: de que as virtudes e os defeitos de um indivíduo são também os de todos. Negando essa qualidade no valor político, já não teríamos uma democracia, ou seja, o governo de todos sobre todos; teríamos, ao invés, alguma forma de autocracia, ou seja, o governo de uma parte (os melhores) sobre outra (os piores). Portanto, se todos são iguais nos vícios e nas virtudes políticas, ou se não existe critério alguma para estabelecer hierarquias de mérito ou demérito, nós não temos alguma possibilidade de atribuir a autoridade a outrem senão a todos, no seu conjunto. Para a democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas virtudes, mas provém – é necessário concordar sobre – da insuperável falta de algo melhor. (Zagrebelsky, 2011, p.135)
Voltando à história de Cristo - grande exemplo que demonstra as falhas da democracia acrítica -, ensina Zagrebelsky que, à época, Pilatos tinha a opção de declarar a libertação do Rei dos Judeus ou aceitar o que desejavam os representantes de Sinédrio, maior autoridade hebraica, e condená-lo à morte. No entanto, preferiu dar ao povo esta escolha, em um “plebiscito”, chamado por alguns, a exemplo de Hans Kelsen, de processo democrático. (Zagrebelsky, 2011)
A multidão, gritando, começou a pedir que ele fizesse como sempre tinha feito [alusão ao costume, muito discutido em sede de crítca histórica, de soltar um condenado à morte na época da Páscoa (...) “E Pilatos respondeu-lhes, dizendo: ‘Quereis que vos solte o Rei dos Judeus?’. Isso porque ele sabia que os sumos sarcedotes o haviam entregado por inveja e instigavam o povo para que pedissem que libertasse Barrabás em vez de Jesus. Pilatos falou-lhes outra vez: ‘E que quereis que eu faça daquele a quem chamais de Rei dos Judeus?’. Eles tornaram a gritar: ‘Crucifique-o’. e Pilatos replicou: ‘Mas que mal ele vos fez?’ e a multidão clamava ainda mais forte: ‘Crucifique-o!’” (Zagrebelsky, 2011, p.31)
E conclui o jurista italiano que (2011, p.151, grifos no original):
A multidão que gritava crucifique-o! era exatamente o contrário do que a democracia crítica pressupõe: tinha pressa, era atomística, mas totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva e, portanto, extremista e manipulável... Uma multidão terrivelmente parecida com o “povo” ao qual a “democracia” poderia confiar seu destino no futuro próximo. Ela condenava “democraticamente” Jesus e assim acabava por reforçar o dogma do Sinédrio e o poder de Pilatos.
Observa-se que a vontade do povo foi motivada por razões outras que não a correta. Se lhes fosse perguntado a razão da escolha em crucificar Jesus e libertar Barrabás, provavelmente não saberiam responder; os indivíduos foram levados pelo “sentimento da massa” provocados por uns cidadãos, mas não sabiam ao certo o que faziam e, de alguma forma, se isentam de responsabilidade já que não o fizeram sozinho, nem nominalmente.
Guardadas as devidas proporções, vivencia-se situação semelhante diante da Lei da “Ficha Limpa”. É tão grande o clamor popular que, a maioria da população defende a referida lei sem, contudo, conhecê-la. Os cidadãos veem na lei a solução para as mazelas na política nacional e, sob o manto da busca por higidez moral dos parlamentares, arguem que a referida lei deve ser considerada válida, sem, contudo, apreciar as questões constitucionais que podem ter sido violadas. Acreditam que a busca por ética pública é capaz de se sobrepor a tantos outros princípios constitucionais que garantem o Estado Democrático de Direito, como, por exemplo, o princípio da anualidade eleitoral.
Conclusão
Nesse contexto, coube ao Supremo Tribunal Federal posicionar-se a respeito da totalidade da Lei da “Ficha Limpa”, tendo em vista os anseios da sociedade, mas sem perder o foco nas questões formais e materiais que envolvem a matéria para que não haja desrespeito à Carta Política. É esta a missão da Corte, como aduz o ministro Gilmar Mendes em seu voto sobre a aplicação da referida lei às eleições de 2010: “aplicar a Constituição, ainda que contra a opinião majoritária. Esse é o ethosde uma Corte Constitucional. É fundamental que tenhamos essa visão”.
Assim, apesar do clamor pela imediata aplicação dessa lei, o Supremo acertadamente se pronunciou em sentido contrário, determinando que deve ser observado o princípio constitucional da anualidade eleitoral.
Por todo o exposto e tendo em vista tantos outros debates que a sociedade brasileira enfrenta quando se trata de vontade do povo versus garantias das minorias e respeito à Carta Magna, flagrante é a importância deste tema e a necessidade desta discussão. Propõe-se a reflexão!
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário N. 633703. Informativo 620. Brasília. DJ de 21 a 25 mar. 2011. Relator: Min. Gilmar Mendes. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo620.htm.>. Acesso em: 25 set. 2011.
ZAGREBBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de Monica Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2011.
Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduação em Direito do Estado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Laís Marques Cidreira Domitilo. O sentido da Democracia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33905/o-sentido-da-democracia. Acesso em: 23 dez 2024.
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