A liberdade de escolha (de eleição) e a vulnerabilidade da nossa condição humana (somos todos mortais, ou seja, a finitude é da essência humana) são as duas bases da ética, entendida como a “arte de viver bem humanamente” (Savater).
Não temos como não ser os responsáveis pela eleição, dentro de certas circunstâncias, de cada ato consciente da nossa vida. Não temos como superar a finitude da nossa existência (somos mortais e extremamente frágeis). Logo, temos que fazer tudo, sendo ou não religioso, sendo ou não teólogo, sendo ou não papa, para melhorar a convivência humana, respeitando todas as pessoas – inclusive e, sobretudo, as mulheres.
A vida ética, bem sublinhou a ministra Cármen Lúcia, significa dirigir na mão correta todo o percurso. Eis a sua metáfora: "Sabe o que eu acho?", disse a ministra do STF. "(Eu acho) que a vida é igual a uma estrada. Não adianta você dizer que foi na reta certinho mil quilômetros e depois você entra na contramão e pega alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira. Independente do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a estrada. Se você estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser mais fácil. Isso no serviço público [ou religioso ou empresarial], muito mais."
Nós somos tudo o que fazemos na nossa vida. Há coisas boas e coisas ruins. O mundo inteiro, desde que o papa anunciou sua renúncia, reverencialmente procurou enaltecer suas coisas boas. Mas como não somos perfeição acabada (a começar pela nossa constituição física, extremamente frágil), não há como mostrar para os jovens do mundo inteiro o que o papa também fez de equivocado (do ponto de vista ético). Temos que ter todo respeito pelas suas obras positivas para a convivência humana. Isso, no entanto, não significa esquecer os seus pecados (sobretudo, os cometidos contra as mulheres).
Para homenagear a cruenta luta internacional das mulheres, massacradas coletivamente pelos homens (somente no Brasil, uma morte a cada duas horas), mas desde a Idade Média, sob o império do discurso satânico das bruxas, pelos homens das Igrejas, segue, para reflexão, a tradução do texto de Juan José Tamayo, um dos teólogos mais lúcidos de toda a Europa, na atualidade, publicado no El País de 01.03.13:
Amnésia coletiva
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Bento XVI foi eleito papa em abril de 2005, com 78 anos. Sua eleição não foi enfocada como algo atípico, quando, na verdade, era ou teria sido em qualquer instituição viva e ativa. O anúncio da sua renúncia, a ponto de cumprir 86 anos, provocou, para além de uma surpresa generalizada, uma avalanche efervescente e febril de elogios, loas e parabéns de todos os setores políticos e religiosos, empresariais e financeiros, e de todas as tendências ideológicas, desde os conservadores, passando pelos centristas, até chegar aos progressistas, que são os que mais elogiaram a decisão papal.
Os meios de comunicação de todo mundo e de todas as cores ideológicas, incluindo os mais laicos, se somaram a este coro de discursos apaixonados pró-papais, em um gesto de quase unanimidade que não se havia produzido durante os quase oito anos de pontificado do cardeal Ratzinger. A inesperada notícia provocou tamanho deslumbramento mental e sentimental no imaginário social e em não poucos setores críticos do catolicismo, que, repentinamente, lançou um véu protetivo sobre seu passado episcopal, desde que fora nomeado arcebispo de Munique, e papa, durante seus anos de pontificado.
O enaltecimento do papa ancião e o reconhecimento do seu trabalho se converteram em um exercício de amnésia coletiva e de perdão geral dos seus 36 anos de poder que exerceu autoritariamente, sem nunca permitir qualquer tipo de armistício. Sua renúncia foi vista como uma decisão normal justificável pela sua idade avançada assim como pela saúde precária, o que lhe absolveria de tudo o que fez anteriormente.
Por mais negligente (ou indulgente) que seja a memória coletiva, neste e em muitos outros casos, existem coisas que não podem ser jogadas ao esquecimento. Não se pode esquecer a atitude inquisitorial do cardeal Ratizinger com seus colegas, os teólogos e as teólogas, desde que assumiu o cargo do ex-Santo Ofício, até seu afastamento. Durante todo esse tempo – mais de seis lustros -, que para alguns foi uma eternidade, julgou, condenou, impôs silêncio, censurou, expulsou de cátedras, destituiu diretores de revistas de teologia ou de informação religiosa, suspendeu do ministério divino, eliminou a liberdade de cátedra, limitou a liberdade de investigação, impôs sua teologia como pensamento único e inclusive chegou a excomungar colegas pelo que subjetivamente acreditou que eram erros e laminou o pluralismo teológico com o conseguinte empobrecimento para a teologia.
Durante todos esses anos humilhou as mulheres – que é maioria na Igreja católica -, negou-lhes voz e voto, fechou-lhes as portas de acesso ao sacerdócio, negou-lhes os direitos sexuais e reprodutivos, impediu-lhes de assumir postos de responsabilidade, lhes impôs uma moral sexual repressiva, não lhes permitiu entrar no âmbito do sagrado, lhes declarou rebeldes e lhes admoestou severamente, como no caso das Religiosas Norteamericanas, por seguirem a voz da consciência e comprometerem-se com os pobres.
As mulheres foram utilizadas, enfim, como serviçais. Assim seguirá tratando-as em seu retiro de papa emérito, onde terá quatro religiosas à sua inteira disposição. Final patriarcal para o papa e humilhante para as mulheres!
Juan José Tamayo é diretor da Cátedra de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade Carlos III de Madrid. Seu último livro é Invitación a la utopía (Trotta, 2012).
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