1. O cenário atual
A escravidão nos dias de hoje é praticada por pessoas e empresas, por vezes com ajuda de incentivos que obtém do governo para exploração agrícola. Há trinta anos, incentivos fiscais federais, da SUDAM, já eram causa de servidão por dívida.
A escravidão contemporânea difere da tradicional apenas na oportunidade ou na ênfase de emprego da força, da violência e do confinamento. No mais, ela persiste com o mesmo caráter de crueldade e indiferença pelo outro. Além disso, a escravidão não é oficial, mas é como se fosse, pois a impunidade, apesar dos esforços, ainda é reinante.
Segundo a Organização das Nações Unidas, a escravidão compreende hoje grande variedade de violações de direitos humanos. Sustenta que além da escravidão tradicional e do tráfico de escravos, a escravidão moderna compreende a venda de crianças, a prostituição infantil, a pornografia infantil, a exploração de crianças no trabalho, a mutilação sexual de meninas, o uso de crianças em conflitos armados, a servidão por dívida, o tráfico de pessoas e a venda de órgãos humanos, a exploração da prostituição e certas práticas de apartheid e regimes coloniais (Office of the High Comissioner for Human Rights Fact Sheet No.14, 1991).
Apesar de todas essas formas de escravidão citadas pela ONU, a visão no Brasil é diferente. Talvez pelo passado de escravização de afro-descendentes haja a tendência de reduzir o conceito àquele tipo de escravidão e dar ênfase à defesa de direitos sociais e econômicos nas relações de trabalho ou emprego.
No entanto, a escravidão também ocorre em relações jurídicas diferentes das de trabalho, em que é impossível exigir o cumprimento das leis trabalhistas, e nas quais o objeto da relação é ilícito. São exemplos dessa situação a exploração sexual, o tráfico de pessoas e o comércio de órgãos.
Como a servidão por dívida é o formato mais comum da escravidão no Brasil, ela será abordada de forma especial.
A diferença da servidão por dívida para a escravidão tradicional é que o trabalhador está impedido de deixar o trabalho ou a terra em que está até que pague o que deve. O problema é que normalmente essa dívida não pode ser quitada, pois os fazendeiros ou os “gatos” supervalorizam os preços na cantina, além de cobrarem o transporte, a hospedagem, e, por vezes, os instrumentos de trabalho, fazendo com que a dívida acabe sendo herdada pelos filhos do trabalhador, mantendo-os em servidão.
Para erradicar a servidão por dívida no Brasil é imprescindível que se investigue todos os elos da corrente escravizadora. É preciso combater o recrutamento de pessoas em regiões carentes, a utilização de mão-de-obra escrava no desmatamento ilícito, o porte ilegal de armas, a exportação ilegal de madeiras nobres, a exploração ilícita de minérios e a formação de quadrilhas. Todos esses ilícitos estão precedidos ou relacionados à servidão por dívida, que é utilizada com vistas a derrubar a mata e abrir caminho à exploração agrícola ou mineral.
As vitórias na luta contra a escravidão não são resultado de uma política ampla e adequada, mas de uma dedicação individual de funcionários e organizações não governamentais. Dessa forma é muito difícil combater esse tipo de crime. É preciso que o governo e a sociedade passem a prestar mais atenção nesse problema para, de fato, solucioná-lo. É indispensável o encurtamento das distâncias, por meio de estradas e meios de transporte eficazes, o número necessário de pessoal habilitado, a disponibilidade de equipamento e de recursos e a integração entre os órgãos federais. 2. Os atores sociais
No contexto do trabalho forçado é importante falar sobre os atores sociais. Os principais são os patrões, os empreiteiros e os peões. Os peões são levados à escravidão pela fome e pela vontade de ganhar um bom dinheiro em pouco tempo. Eles podem ser divididos em duas categorias. Existem aqueles que têm família e os chamados peões do trecho. Os primeiros podem viver com os pais ou ter sua própria casa e não vagam a esmo pelo mundo, embora também possam vagar. Já o peão do trecho nunca mais voltará para casa. Ele poderá vir a constituir família, mas é mais comum que fique solteiro a vida toda. Sua descrição típica é: jovem, solteiro, sem qualificação, analfabeto – um andarilho. Não tem amigos, nem endereço fixo e está, não raro, envolvido com consumo excessivo de álcool e prostituição. O orgulho, a honra e a honestidade muitas vezes não permite que eles fujam sem pagar suas dívidas. Entretanto, ele não se deixa reduzir à posição de vítima e desenvolve vários mecanismos de defesa. Ele pode enganar o gato, fazendo menos que o combinado, pode ir embora sem terminar o serviço, ou pode pegar o dinheiro e fugir. Por isso tem fama de brigão e desonesto. Outro dado importante é que a maioria deles, cerca de 60%, são nordestinos, o que demonstra a influência da pobreza e da exclusão social no processo de escravização.
Esses trabalhadores são submetidos a diversas violações de direitos humanos como, por exemplo, espancamentos, falta de comida, de água e de condições mínimas de higiene, regime de trabalho insalubre e, não raro, assassinatos. Os motivos mais elementares podem servir de pretexto para esses atos. Peões são espancados apenas por pedirem água limpa para beber, reclamarem das condições de trabalho ou cobrar os pagamentos atrasados.
O fazendeiro, por sua vez, está interessado no resultado. Ele quer que o trabalho seja feito de forma rápida e barata. Não importa os meios usados, isso é deixado por conta do empreiteiro, conhecido como “gato”. Este pode contratar subempreiteiros ou ele mesmo verificar a área do serviço, calcular o número de trabalhadores necessários e contratá-los. Em geral, o tratamento dispensado pelo gato aos peões é violento. Na maioria das vezes os trabalhadores têm muito mais trabalho e muito menos dinheiro do que esperavam, por vezes sequer saindo com vida da empreitada.
Entretanto, não só os peões vivem com medo. Os fazendeiros também temem os peões. O medo é recíproco, mesmo sendo a relação e a reciprocidade desiguais. Além disso, não existem apenas dois pólos, mas diversos. O trabalhador por vezes tem medo de outro trabalhador, do pistoleiro, do gato ou do gerente. Também o fazendeiro pode temer outro fazendeiro, o gato ou os pistoleiros. Não é difícil ouvir relatos de fazendeiros assassinados por pistoleiros que trabalhavam para eles. Os conflitos se manifestam por suspeitas de roubo, de serviço malfeito, de divergências quanto aos preços estipulados, tentativas de escapar das responsabilidades ou por questões passionais.
3. As raízes históricas do problema
A sociedade escravista predominou na Antigüidade. No início, as tribos ambicionavam as terras das tribos vizinhas. Havia guerras e os vencidos eram mortos. Com o tempo, os vencedores perceberam que era vantagem deixar os vencidos vivos, pois assim poderiam utilizá-los no trabalho. Era o início da escravidão.
Para o senhor, o escravo era uma coisa qualquer, um objeto que produzia riquezas. Assim, acentuou-se a divisão de classes: uma minoria (os senhores) explorava o trabalho da maioria (os escravos).
Os primeiros europeus que chegaram ao Brasil tentaram persuadir os índios a trabalhar em troca de mercadorias. Os nativos participavam do transporte de pau-brasil e abriam roçados, dentre outras atividades. Entretanto, logo se recusaram, pois consideravam trabalho feminino qualquer coisa que não fosse caçar. Dessarte, os europeus passaram a capturá-los, com o pretexto de salvarem suas almas, quando na verdade queriam aproveitar sua força de trabalho. Enquanto isso, os missionários jesuítas incentivavam os indígenas a vir para suas reduções, onde poderiam trabalhar para Deus e para a irmandade. Tanto os colonizadores quanto os jesuítas desconsideraram a vontade e a cultura dos povos ameríndios, deixando um rastro de sangue e desrespeito por onde passaram. A dizimação da população indígena proporcionou o tráfico de escravos africanos.
Para falar sobre a escravidão dos negros no Brasil é preciso falar um pouco sobre a economia portuguesa na época.
Como se sabe, durante os primeiros trinta anos após o Achamento do Brasil os portugueses não se interessaram muito pelas novas terras. Com o declínio do comércio com as Índias a situação mudou. Era preciso ganhar dinheiro. O pau-brasil não dava lucros muito altos e além disso já não se encontrava facilmente essa madeira. Foi pensando nisso que o rei e os comerciantes escolheram a cana-de-açúcar.
Mas plantar cana-de-açúcar não era a mesma coisa que cortar árvores de pau-brasil. Era preciso que os interessados passassem a morar no Brasil, formassem povoados, construíssem os engenhos para a fabricação do açúcar, encontrassem trabalhadores permanentes. O primeiro passo era ocupar grandes extensões de terras, uma vez que a cana-de-açúcar era plantada em grandes propriedades. O segundo elemento necessário para a plantação de cana e a produção de açúcar era conseguir trabalhadores em grande quantidade. Os colonizadores não queriam pagar salários, pois assim gastariam menos e seu lucro seria maior. A solução encontrada foi o trabalho escravo. Os escravos africanos já eram muito utilizados na Europa e os traficantes viam no trabalho compulsório uma maneira de ganhar muito dinheiro. Portanto, a escravização dos africanos dava lucro tanto ao colonizador quanto ao traficante.
Metade dos africanos morria durante a viagem. Muitos de maus tratos, fome e doenças. Para o Brasil vieram pouco mais de três milhões de escravos. Se somarmos estes aos que foram levados para outras partes e aos que morreram e foram jogados ao mar, veremos que dezenas de milhões de africanos foram arrancados de suas terras.
Conseguir trazê-los para o Brasil não foi nada difícil. Veremos agora como os portugueses começaram a praticar o tráfico de escravos africanos.
Para chegar às Índias contornando a África eles demoraram mais de oitenta anos, mas durante todo esse tempo os portugueses descobriram no tráfico de escravos negros uma boa fonte de lucro.
No começo, para conseguir os escravos eles organizavam verdadeiras caçadas. Depois os traficantes passaram a pagar por eles. Às vezes os próprios chefes africanos vendiam membros de sua tribo em troca de jóias, aguardente, tabaco e outras mercadorias. Outras vezes vendiam prisioneiros de guerra.
A viagem para o Brasil era uma verdadeira tragédia. Os escravos vinham amontoados e acorrentados nos porões dos navios negreiros, onde comiam o pouco que lhes davam e faziam suas necessidades. Quando aqui chegavam eram colocados à venda nos mercados.
Os escravos começavam a trabalhar ao raiar do dia e só terminavam ao escurecer. As condições de trabalho eram extremamente duras, tanto nos canaviais quanto nas moendas e nas caldeiras. Eles viviam vigiados pelos capatazes e feitores e quando fugiam eram perseguidos pelos capitães-do-mato, especialistas em persegui-los e capturá-los.
Esse foi um pequeno resumo da história da escravidão negra no Brasil. Ela foi praticada e incentivada pelo Estado e pelas autoridades até 1888. A escravatura dos índios foi abolida muito antes, o que demonstra que havia graus de indiferença social. A extinção da escravidão de negros no Brasil só aconteceu depois que o Estado garantiu à classe dominante compensações financeiras pela libertação gradativa dos escravos, por meio das leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. A violação de direitos humanos pouco influiu para que a sociedade concordasse que o país não ia falir com a abolição. A idéia de um país moderno, a existência de mão-de-obra disponível na Europa e a ameaça de reprimendas internacionais foram mais decisivos.
A indiferença da sociedade brasileira com a situação dos escravos explica porque não foram criadas condições mínimas de sobrevivência dos libertados e de seus descendentes, e,em parte, influenciou na existência da escravidão contemporânea no Brasil. Para desconstruir essa mentalidade são necessárias ações preventivas, repressivas e educação em direitos humanos.
Analista Processual do Ministério Público da União. Aprovado no úlltimo concurso para ingresso na carreira de Advogado da União. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília. Especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Diego Brunno Cardoso de. Trabalho Forçado no Brasil Contemporâneo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34207/trabalho-forcado-no-brasil-contemporaneo. Acesso em: 23 dez 2024.
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