Em um livro de ficção (ADAMS, 2004, 199-200), dois viajantes caminhavam por uma floresta habitada por homens cuja cordialidade era questionável. Em uma clareira, se deparam subitamente com uma pilha de frutas suculentas oferecidas por esses nativos. Um dos viajantes levantou a suspeita de que as frutas poderiam estar envenenadas. No entanto, tentados pela fome, eles se puseram a pensar em uma maneira de encarar a situação que, no final das contas, redundasse que deveriam comê-las. Até que um deles formulou o seguinte raciocínio – Não importa se as frutas vão fazem bem ou mal, se os nativos querem nos alimentar ou envenenar. Se forem venenosas e não comermos, eles vão nos atacar de algum outro jeito. Se não comermos, saímos perdendo de qualquer forma – satisfeitos com a ideia, eles devoraram a pilha inteira.
O comportamento dos viajantes ficcionais que, depois de decidirem que queriam comer as frutas, procuraram uma lógica que legitimasse aquela escolha, se assemelha muito com a realidade da dogmática jurídica ao formular e reformular novos discursos para legitimar a escolha feita pela manutenção do atual modelo de sistema penal.
Os discursos jurídicos tradicionais sustentam a função preventiva do sistema penal. Este promoveria a reinserção social do apenado (prevenção especial) e advertiria a sociedade sobre os malefícios de imitar sua conduta, além de reforçar os laços sociais dos que não delinquem (prevenção geral). O Direito Penal seria o instrumento da proteção de bens jurídicos. Contudo, a criminologia, durante as últimas décadas, demonstrou empiricamente a disfunção do controle penal e a incapacidade de o sistema cumprir suas promessas, seja em relação ao pressuposto de ressocialização, ao de intimidação ou ao de coesão social (CARVALHO, 2008, p. 91).
Os estudos do labeling approach[1] demonstraram que as penas detentivas, em lugar de terem um efeito reeducativo sobre o delinquente, promovem uma estigmatização da identidade do apenado e o seu ingresso, na maioria dos casos, em uma verdadeira carreira criminosa (BARATA, 2002, p. 85-92).
Foucault (2009, p. 251-254) por sua vez, ao reconstituir a história das prisões, relata que as críticas à prisão e aos seus métodos aparecem já em 1820 e se repetem hoje quase sem mudança nenhuma: pode-se aumentar, multiplicar ou transformar as prisões, mas a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta; a detenção provoca reincidência (os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos); a prisão favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para cumplicidades futuras; a prisão fabrica indiretamente delinquentes, ao fazer cair na miséria a família do detento.
O ideal de controle social através da repressão de condutas humanas definidas como criminosas também foi abalado por correntes do labeling approach que revelaram a existência de uma lacuna incalculável entre a seleção das condutas criminalizadas pelo Poder Legislativo e a efetiva atuação dos aparelhos repressivos na dissuasão de delitos (CARVALHO, 2008, p. 81).
Pode-se imaginar que essa cifra oculta da criminalidade é resultado de um problema conjuntural de baixa operacionalidade do sistema penal, comprometedor da função intimidadora da pena[2]. Todavia, pesquisas especificas sobre o tema[3] já não permitem estabelecer qualquer relação entre o número de prisões e as taxas de criminalidade (ROLIM, p.43-44)
Sabemos, desde os trabalhos pioneiros de George Rusche e Otto Kirscheimer, confirmados por cerca de 40 estudos empíricos em uma dezena de sociedades capitalistas, que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos – ao passo que não existe vinculo comprovado entre índice de criminalidade e índice de encarceramento (WACQUANT, 2001, p. 206).
Ou seja, a ideia da “prisão de criminosos” não pode ser apresentada seriamente como uma resposta adequada em segurança pública, seja para produzir intimidação generalizada, seja para assegurar a ressocialização dos condenados (ROLIM, 2009, p. 44).
As exigências disseminadas em setores da opinião publica em favor de uma atuação mais rigorosa ou “dura” das forças policiais só tem conseguido estimular níveis ainda maiores de arbitrariedade e dificultar qualquer controle sobre a atuação dos policiais (ROLIM, 2009, p. 46).
Apesar das criticas aos mitos da repressão geral aos delitos e da dissuasão do crime através da coação psicológica, que deslegitimam os discursos jurídicos tradicionais, projetos políticos que defendem o mito do controle total do delito (ex: Movimentos de Lei e de Ordem e a Tolerância Zero[4]) mantêm as bases do discurso dogmático inalteradas (CARVALHO, 2008, p. 82).
A comprovação da ineficiência e da seletividade do sistema penal “lesiona seriamente o narcisismo teórico do direito penal, e é explicável que este optasse por ignorá-la com todo o seu arsenal metodológico disponível” (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2003, p. 68).
Portanto, a persistência da dogmática em fundamentar o sistema penal em mitos já superados indica não mais que uma disposição de fechar os olhos à falsidade que flui na essência do seu discurso, do mesmo modo que os dois viajantes ficcionais de Douglas Adams, que relutavam em afastar a hipótese de haver veneno nos seus frutos.
Bibliografia:
ADAMS, Douglas. O restaurante no fim do universo. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
BARATA, Alessandro. Criminologia Critica e Crítica do Direito Penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
CARVALHO, Salo de. Anti-manual de Criminologia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 36ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
ROLIM, Marcos. A síndrome da rainha vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade da sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
_______________________; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2ª ed. Buenos Aires: Ediar, 2002.
[1] Inspirados pelos estudos sociológicos de G.H. Mead e Alfred Schutz, os estudos sobre a teoria do etiquetamento partem da premissa de que não há um conceito ontológico de delito e de indivíduo delituoso, mas de o “desvio” é um comportamento definido como tal e que alguns indivíduos, dadas suas condições econômicas e suas características de raça, sexo e idade, tendem a ser rotulados como criminosos. Esse estigma persegue, principalmente, aqueles que já foram alvos do sistema penal, o que dificulta seu convívio com o resto da sociedade e aumenta as chances de o processo de seleção penal reconduzi-lo ao cárcere (BARATTA, 2002, 92-99).
[2] (...) imagina-se que, em lugar de uma nova receita, o que se precisa é aumentar os ingredientes da mesma fórmula. O que se observa, invariavelmente, é uma forte pressão para que se faça mãos do mesmo, uma espécie de “isomorfismo reformista”. Os gestores, então, em vez de alterarem o discurso falam as mesmas coisas só que em tom cada vez mais estridente (ROLIM, 2009, p. 44).
[3] Como boa referência: Blumenstein, A. J. Cohen e D. Nagin, Deterrence and Incapacitation: Estimating the effect of Criminal Sanctions on Crime Rates. 1978. Washington, D.C., National Academy of Sciences.
[4] Essas políticas insistem em diminuir a criminalidade através do aumento da repressão ao desvio. Elas partem da premissa de que a intransigência aos atos classificados como “pequenas infrações” – como pichar, urinar em espaço público e mendigar – diminui a ocorrência de “crimes mais graves” – como homicídios e estupros (COUTINHO e CARVALHO, 2003, p. 1)
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HERICK VICTOR DANTAS DE ARGôLO, . A Fome Cega do Discurso Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34261/a-fome-cega-do-discurso-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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