Nas ocasiões em que o tema “a fazenda pública em juízo” é invocado, dificilmente não se falará acerca do tratamento diferenciado que certos entes estatais desfrutam nas relações processuais. Para alguns estudiosos, tal tratamento enseja privilégios indevidos à fazenda pública, desequilibrando o processo e conferindo vantagens ao Estado tão somente por sua posição de império. Mas, será que os privilégios são frutos do mero exercício de poder arbitrário ou são instrumentos para satisfazer alguma finalidade especial do corpo político? Haverá um fundamento justo para a existência do tratamento diferenciado?
Nosso objetivo, no atual texto, será analisar se os privilégios da fazenda pública vão ao encontro do escopo da atuação estatal ou são simples resquícios de um Estado totalitário.
Devemos, primeiramente, refletir sobre a finalidade de um corpo político organizado, de um Estado. Os professores De Cicco e Gonzaga[1] ensinam que um dos elementos do Estado Moderno é a finalidade. O conteúdo da finalidade é a busca e manutenção, pelo governo, do Bem comum, no sentido de bem geral que a todos interessa e beneficia. Este objetivo universal estatal acaba ensejando dois valores principiológicos fortemente presentes atualmente: A supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público.
Logo, o interesse público é o valor-meta do Estado (e, por consequência, da Fazenda Pública). O interesse público, nesse sentido, é composto por aqueles interesses e faculdades que não são apenas da maioria ou do corpo político, mas sim de todos, gerais, no sentido mais universal possível. O interesse público não é o interesse que se opõe ao interesse privado, mas sim aquele interesse que é qualificado por ser compartilhado pela coletividade, sendo que em muitas ocasiões o interesse público se confunde com o interesse privado.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, não se deve afirmar que o interesse público existe por si só, separado e independente das vontades particulares. “O indispensável é prevenir-se contra o erro (…) de promover uma separação absoluta entre ambos, ao invés de acentuar, como se deveria, que o interesse público, ou seja, o interesse do todo, é função qualificada dos interesses das partes, um aspecto (…) de sua manifestação.”[2]
Primeiramente, cabe ao Estado conhecer, moldar e legislar sobre o bem comum e o interesse comum. Após, sua missão cardeal é a da manutenção e salvaguarda do interesse geral. Tal proteção, hodiernamente, manifesta-se de diversas formas: Quando o Poder Executivo lança programas afirmativos para mitigar a discriminação; quando o Ministério Público propõe ação coletiva em favor de interesse difuso; quando a Defensoria Pública possibilita a defesa dos juridicamente pobres; quando a Procuradoria da Fazenda Nacional executa os valores devidos à União, buscando recursos pecuniários que ensejarão a realização de serviços públicos que atendam aos direitos fundamentais; ou, quando uma Procuradoria Municipal defende a pessoa jurídica pública em juízo, evitando que o erário público (dinheiro de todos!) seja dilapidado indevidamente. Ademais, tal proteção deve ser também máxima e efetiva, pelo próprio peso que o interesse público traz em seu bojo.
Não há como recusar que os mais diversos atos do Estado, em suas diversas formas e graus, são manifestações da proteção ao interesse público. A finalidade do ato administrativo, aliais, segundo a doutrina, é o interesse público.[3] A manutenção e promoção do interesse público permeia toda atuação estatal, direta e indireta.
E, assim, a atuação do corpo nomeado como “fazenda pública” também se pauta em sentido de acolher o interesse público como supremo e indisponível. A obrigação dos procuradores das fazendas estaduais, municipais, distrital e federal nada mais é do que socorrer o interesse público, que se materializa na conservação do erário público, na manutenção dos poderes e funções estatais e no asilo do devido comportamento estatal.
Mas, se de um lado falamos de uma finalidade de relevo total e universal, que é o interesse público, de outro lado vislumbramos entidades públicas que não são totais ou universais que devem promovê-la. A Administração Pública de concepção democrática é severamente limitada pelo princípio da legalidade administrativa (art. 37, CF), de forma que o poder público (como a fazenda pública) somente pode atuar quando e como a lei permitir. Ademais, é notória a dificuldade financeira e material de muitos setores do poder público (e de muitas fazendas públicas), principalmente na esfera não-federal, havendo o acúmulo hercúleo de processos em muitos gabinetes.
Analisando a equação objetivamente, encontramos uma desproporção. Uma fazenda pública amarrada pela lei e pelas dificuldades de ordem material defendendo um interesse que não é somente dele, mas de todos. E, ainda piora quando tal interesse público é discutido em juízo em face de uma parte particular, pois, ai, teremos uma verdadeira batalha injusta.
Segundo Leornado José Carneiro da Cunha, “a fazenda pública (…) não reúne as mesmas condições que um particular para defender os seus interesses . Além de estar defendendo o interesse público, a Fazenda Pública mantém uma burocracia inerente à sua atividade, tendo dificuldade de ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa. O volume dos trabalhos que cerca os advogados públicos impede, de igual modo, o desempenho de suas atividades nos prazos fixados pelos particulares.”[4]
Consequentemente, dois princípios encontram-se em situação de lesão. De forma objetiva, temos um ente limitado defendendo um direito total, sendo visível a inadequação frente ao devido processo legal material, ao princípio da proporcionalidade, De forma subjetiva, de um lado teremos uma fazenda pública atada à lei e com restrita disponibilidade humana e financeira e de outro lado teremos uma parte privada, cujos procuradores tudo podem fazer (menos o proibido pela lei) e que ou não possuem restrições econômicas tão limitadas ou que podem escolher quais causas querem e podem defender. Não se respeita a paridade substancial de armas, ou melhor, não se respeita o princípio da isonomia.
E o que se pode fazer diante de tal desproporção e de tal desequilíbrio? Como impedir que a proteção ao interesse público seja aniquilada ou indevidamente mitigada?
A resposta é simples: Deve-se trata de forma desigual os desiguais, diversificando o tratamento dado a cada parte, até que se encontro o ponto de equilíbrio, de proporção entre o potencial de defesa que cada litigante prove diante do objeto que defendem. Daí surgem as prerrogativas (e não privilégios) da Fazenda Pública em Juízo. Daí surge o tratamento diferenciado do Poder Público diante do Poder Judiciário.
O juízo privativo, os não-efeitos da revelia, o duplo grau de jurisdição, a limitação das cautelas e antecipações de tutela diante do Poder público e a forma especial de execução (precatórios) são emanações do relevo do peso do interesse público. Tais prerrogativas não são privilégios, mas sim formas de resguardar ao máximo e efetivamente a finalidade capital de toda a sociedade politicamente e democraticamente organizada. Os prazos dilatados, a intimação pessoal e as regras de prescrição, por sua vez, tendem a igualar as capacidades das partes em juízos, permitindo que a atuação do Poder Público nas lides seja tão efetiva e eficaz como a de todos os outros envolvidos nas relações processuais.
Em suma, conclui-se que o tratamento diferenciado da fazenda pública em juízo não é a emanação da arbitrariedade do Governo e dos governantes, mas sim a manifestação de uma exigência de justiça e equidade. O interesse público é o valor-meta a ser protegido. Devido às dimensões do interesse a ser garantido (bem que a todos interessa), prerrogativas devem ser dadas àquele que é incumbido para a sua tutela, a fim de que não haja desproporções e desiquilíbrios que firam, de morte, os valores básicos da sociedade. Fundamenta-se as prerrogativas da fazenda pública na supremacia e indisponibilidade do interesse público e nos princípios do devido processo legal, da proporcionalidade e da isonomia.
[1] DE CICCO, Cláudio e GONZAGA, Alvaro. Teoria Geral do Estado e Ciência Política. São Paulo: RT, 2008.
[2] MELLO, Celso A. B. Curso de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, pp.59.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas., 2007.
[4] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A fazenda Pública em juízo. 4ª ed. São Paulo: Dialética, 2006, pp. 34.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COLONTONIO, Carlos Ogawa. Fundamentos das prerrogativas da Fazenda Pública no processo judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34302/fundamentos-das-prerrogativas-da-fazenda-publica-no-processo-judicial. Acesso em: 23 dez 2024.
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