I. Considerações iniciais
Qualquer referência jurídica à separação dos poderes direciona automaticamente o interlocutor à figura do Barão de Montesquieu. Evidentemente, essa vinculação está longe de ser equivocada. Contudo, a teoria em questão foi aperfeiçoada com o passar dos anos até ser consolidada pelo insigne jurista em razão do contexto sociopolítico vivido na França revolucionária.
Este é o tema deste ensaio: a relação fato-norma ensejadora da teoria da separação dos poderes consolidada por Montesquieu.
II. O princípio da separação dos poderes
A ideia de separação dos poderes remonta a Aristóteles, seguindo-se a John Locke e, principalmente, a Montesquieu, por ter sido quem a propôs do modo como se organiza a maior parte das democracias mundiais atualmente, ou seja, a separação em Legislativo, Executivo e Judiciário. O momento histórico em que a tese de Montesquieu surgiu tem peculiar interesse por encontrar a razão de ser na própria sociedade, isto é, na necessidade de superar determinadas situações pelas quais a França passava.
A Revolução Francesa de 1789 originou-se na crise sociopolítica enfrentada pelo país. A sociedade e a vida política eram divididas em três classes - clero, nobreza e terceiro estado (composto pela burguesia, artesões, camponeses e operários) -, porém somente o último grupo, abrangendo 98% dos franceses, trabalhava e pagava impostos exorbitantes; quanto aos dois primeiros, donos de quase todas as terras da França, apenas desfrutavam os privilégios da vida na corte. Ademais, as decisões políticas eram tomadas nos Estados Gerais[1] pela deliberação e apresentação isolada do voto da classe (não por membro), o que colocava sempre o terceiro estado em posição desfavorável, tendo em vista os interesses comuns do clero e da nobreza em manter seus privilégios[2].
Diante desse panorama, em 1789, por ocasião dos Estados Gerais convocados um ano antes por Luís XVI, o terceiro estado autodenominou-se Assembleia Nacional, depois de ver rejeitada pelo monarca absolutista a petição de voto por cabeça. Antes mesmo de a Assembleia elaborar a nova Carta constitucional, a revolução contra a monarquia iniciou-se com a tomada pelo povo da Bastilha, que era a prisão símbolo da monarquia absolutista, pois lá aconteciam as degolas dos criminosos.
Se a tomada da Bastilha representou a resposta social à crise vivenciada, a teoria da separação dos poderes consistiu na resposta doutrinária à crise política francesa. O princípio da separação dos poderes foi defendido por Montesquieu quando considerou a existência
em cada Estado [de] três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daqueles que dependem do direito civil.
Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado[3].
O autor continua a explanação justificando que os três poderes não podem estar reunidos na mesma pessoa ou no mesmo corpo porque essa situação retiraria toda a liberdade do cidadão. No momento em que a criação das leis e a sua execução estiverem reunidas na mesma pessoa, estar-se-á a um passo da tirania, pois a vontade de um será lei e será executada exatamente de acordo com a sua vontade. O mesmo aconteceria se o Judiciário estivesse unido ao Legislativo ou ao Executivo, pois qualquer reunião de dois poderes culminar em força suficiente para subjugar o terceiro[4].
Procedendo-se à análise do princípio da separação de poderes em conjunto com a realidade social da França por ocasião da elaboração da teoria, fica mais claro que Montesquieu concebeu a divisão do poder, não dos poderes, pois a tese foi o meio encontrado para combater a monarquia, ou seja, havia um só poder absoluto, o rei. A divisão do poder veio com uma forma de limitá-lo, dividindo-o. Essa é a leitura feita por Zaffaroni:
(...) as palavras de Montesquieu são muito mais claras se forem consideradas como provindas de um sociólogo e não como texto dogmático, porque parte ele do reconhecimento de um fenômeno humano que não pode ser esquecido na medida em que se conserve um mínimo de contacto com a realidade: todo poder induz ao abuso.
(...)
Entendendo Montesquieu sociológica e politicamente – e não jurídica ou formalmente – não resta dúvida de que ele quer significar que o poder deve estar distribuído entre órgãos ou corpos, com capacidade de regerem-se de forma autônoma com relação a outros órgãos ou corpos, de modo que se elida a tendência ‘natural’ ao abuso.[5]
O verdadeiro significado do princípio da separação dos poderes mostra-se como uma norma finalística: proteger os valores liberdade e segurança em todos os seus aspectos, da segurança jurídica das instituições da sociedade à segurança física dos seus integrantes, pois a história francesa contemporânea à teoria de Montesquieu e a própria história recente da Alemanha nazista de 1933, constituída sob a égide de um Estado de Direito, demonstram que, com a centralização do poder, o povo fica vulnerável à força do Estado. É plausível, então, mesmo que de forma extremamente abstrata, atribuir ao princípio da separação dos poderes a seguinte formulação: conter o poder, dividindo-o, para garantir os valores liberdade e segurança.
Não obstante, é consequência lógica a admissão de que o princípio da separação de poderes tem um caráter de complementariedade, não a pretensão de decidibilidade e abrangência das regras. Esse aspecto é importante porque, sozinha, a divisão de poderes pode não alcançar o fim almejado, uma vez que num golpe de estado um ditador pode, pela força, autonomear-se chefe do Executivo e nomear seus cúmplices como chefes do Legislativo e do Judiciário. Neste exemplo, por mais que cada um deles tenha a mesma intensidade de atuação e mantenha a independência do poder que representa, não há garantia de proteção dos valores citados, porque eles agirão no interesse de um grupo.
Por outro lado, a situação é totalmente diferente quando o princípio da separação dos poderes é complementado pelo princípio democrático. Esse princípio tem como finalidade a participação popular na decisão dos rumos a serem tomados pelo Estado. A Constituição brasileira de 1946, no art. 1º, bem o sintetizou ao consagrar que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, como também o fez Abraham Lincoln em Gettysburg, ao defender “um governo do povo, pelo povo e para o povo”[6]. A participação do povo na escolha de seus líderes, combinada com a separação de poderes, a fim de evitar que esse líder se volte contra seu povo, aproxima mais a realização social dos valores liberdade e segurança.
A separação dos poderes consiste, então, num verdadeiro diferencial na organização estatal, possuindo desdobramentos sociais tão pertinentes que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada na França revolucionária de 1789, no seu artigo 16, considera que “qualquer sociedade na qual não esteja assegurada [...] a separação dos poderes, não tem Constituição”[7].
Muito interessante é o elo que pode ser feito nesse momento com a concepção sociológica de Constituição. Ao distinguir a Constituição escrita, mera folha de papel[8], da Constituição real, Lassalle defende a existência dos “fatores reais do poder”, que consistiriam nos poderes sociais existentes de fato, os quais informam e determinam como as leis e as instituições jurídicas devem ser, independentemente da positivação na Constituição, e fortes o bastante para atribuírem ou retirarem a supremacia e força normativa da Constituição, por subsistirem sem ela[9]. Para esse autor,
os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder; a verdadeira Constituição de um país sòmente tem por base os fatôres reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituição escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatôres do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar.[10]
Exatamente pela necessidade de limitar os fatores reais do poder, como meio de garantir os valores da liberdade e da segurança, é que foi concebido o princípio da separação dos poderes. Logo, contradizendo a concepção sociológica de Constituição, a Revolução Francesa não só demonstrou a possibilidade de rompimento com o poder absoluto como, ao determinar a sua divisão, consagrou que não há Constituição sem separação dos poderes.
III. Considerações finais
Assim, diante do contexto sociopolítico na França em 1789, que exigia a imposição de limites à incidência da força estatal, concluem-se os apontamentos acerca do princípio da separação dos poderes retomando a sua finalidade histórica de conter o poder, dividindo-o, para garantir os valores liberdade e segurança.
[1] A divisão política em castas era exercida também nos Estados Gerais, órgão legislativo subordinado, por certo, ao monarca, entendido como a mais alta organização corporativa da sociedade no Antigo Regime e que representavam o reino diante do rei. Os Estados Gerais, compostos por representantes eleitos pelo clero, pela nobreza e pelo terceiro estado, não eram convocados desde 1614, malgrado o rei tenha tentado fazê-lo por duas vezes, mas recuara em virtude das pressões políticas de clero e nobreza.
[2] SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: Qu’est-ce que le Tiers État? 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 9.
[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de. O espírito das leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 167-168.
[4] Ibidem, p. 168.
[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 81-82.
[6] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Introdução a democracia. 18 de setembro de 1951. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/sergiobuarque_democracia.htm>. Acesso em: 20 mar. 2013.
[7] FRANÇA. Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão. 1789. Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br>. Acesso em: 20 mar. 2013, p. 2.
[8] A designação da Constituição escrita como simples folha de papel é uma alusão à frase de Frederico Guilherme IV: “Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus no céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita como se fosse uma segunda providência [...]”.
[9] LASSALLE, Ferdinand. Que é uma constituição? Guanabara: Laemmert, 1969, Cultura Popular, 1969, p. 27.
[10] Ibidem, p. 117.
Procurador Federal. Chefe da Divisão de Patrimônio Imobiliário e Coordenador-Geral de Matéria Administrativa Substituto da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, Direção Central em Brasília/DF. Especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UnP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais - Direito - pela Universidade de Passo Fundo, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Rodrigo Guimarães. Antecedentes do princípio da separação dos poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 mar 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34393/antecedentes-do-principio-da-separacao-dos-poderes. Acesso em: 23 dez 2024.
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