I. Introdução
O princípio da publicidade representa uma pedra basilar de um Estado de Direito. Ele tem como fundamento principal a ideia de que toda e qualquer manifestação do poder estatal interessa aos administrados, pois são eles os financiadores do Estado e são eles os destinatários da sua atuação[1]. Desse modo, em regra, os atos administrativos devem ser de conhecimento público.
Entretanto, não existe princípio ou regra com poder absoluto em nenhum ordenamento jurídico. No Brasil, até mesmo o direito à vida está limitado pela Constituição Federal de 1988, na medida em que esta admite a pena de morte no caso de guerra declarada (art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”)[2]. Assim, nem todos os atos praticados pela Administração Pública podem ser acessados por todos os cidadãos, pois alguns são considerados sigilosos. O princípio da publicidade da Administração Pública encontra limite, por exemplo, na colisão com o direito à intimidade e com o direito à vida privada, pois estes também estão previstos constitucionalmente.
Uma das hipóteses de sigilo do ato administrativo - e, portanto, exceção ao princípio da publicidade - é o acesso aos laudos da perícia realizada para concessão da licença para tratamento de saúde do servidor público federal, prevista no art. 202 e seguintes da Lei nº 8.112/90.
Este é o tema deste ensaio: o alcance do sigilo dos laudos médico-periciais.
II. O alcance do sigilo do laudo médico na perícia oficial.
O direito à intimidade está prevista no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, e ele refere-se “às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade”[3], alcançando fatos e situações que não dizem respeito à coletividade, senão ao próprio indivíduo. O direito à intimidade classifica-se como direito fundamental de primeira geração, pois impõe ao Estado um dever de inércia, de não agir, de se abster[4]. Ao garantir a inviolabilidade à intimidade, a Constituição Federal de 1988 proíbe o Estado de ingressar na esfera íntima do cidadão.
Nesse momento, contudo, é importante pontuar que, se a Constituição Federal de 1988 prevê a inviolabilidade à intimidade, ela não garante em seu texto - constitucional - o sigilo da atuação médica. Por esse motivo é que o sigilo médico está exatamente no mesmo patamar dos demais sigilos que visam proteger a intimidade - nem é mais, nem é menos importante -, isto é, o patamar infraconstitucional ou legal (decorrente de lei).
O sigilo dos documentos públicos foi normatizado pela Lei nº 8.159/91, que, no art. 23, § 1º, previu que “os documentos (...) necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos.”, e no seu caput determinou uma maior regulamentação pelo Poder Executivo. O art. 2º, caput, do Decreto nº 4.553/2002, por sua vez, trouxe previsão símile à recém-transcrita, mas o seu parágrafo único - agora sim exercendo o poder regulamentar - dispôs que o “acesso a dados ou informações sigilosos é restrito e condicionado à necessidade de conhecer”. Esse parágrafo único merece destaque porque esclareceu que o fato de o documento ser sigiloso não significa que ele deve ficar absolutamente inacessível. Ao contrário, determina que somente possa ser manuseado por pessoas que tenham necessidade de conhecê-lo.
Com base no sigilo médico-paciente, o Conselho Federal de Medicina restringiu o acesso aos laudos resultantes das perícias médicas somente a médicos através do Parecer nº 05/2010. Esse ato concluiu que “a proteção do direito à privacidade e confidencialidade dos dados íntimos do segurado, obtidos durante a realização de um ato médico-pericial, é dever ético do médico e da instituição”[5] e que disponibilizar “manuseio, impressão ou consulta do prontuário médico de segurado, para servidores não médicos de instituições públicas ou privadas, sem que o ato atenda os requisitos legais, constitui infração ao Código de Ética Médica e demais disposições normativas relacionadas.”[6]
A posição adotada pelo Conselho Federal de Medicina ampara-se no sigilo médico-paciente. Entretanto, existem duas situações que, por terem suporte fático distinto, tem consequências jurídicas distintas: o sigilo médico-paciente e o sigilo da perícia médica.
O sigilo médico-paciente baseia-se na relação de confiança que existe entre o médico e o paciente, pois é este quem escolhe o médico para cuidar da sua saúde. Nessa relação jurídica, existem apenas duas pessoas: o médico e o paciente. Por essa razão, aplica-se o disposto no capítulo IX, da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.931/2009, que aprovou o Código de Ética Médica. O art. 73 veda ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. Essa proibição persiste mesmo no depoimento como testemunha, hipótese em que, perante a autoridade, o médico deve declarar o seu impedimento. O art. 76, por sua vez, proíbe o médico de “revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores”, mesmo que haja exigência dos dirigentes e empresas ou de instituições. Na mesma linha, o art. 77 proíbe o médico de “prestar informações a empresas seguradoras sobre as circunstâncias da morte do paciente sob seus cuidados”.[7]
Pela pertinência de diferenciar o sigilo médico-paciente da perícia médica, gize-se que o Código de Ética Médica (art. 73, parágrafo único) concede ao médico a prerrogativa de alegar perante o juiz impedimento de “revelar fato que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão”. Por outro lado, o art. 89[8] do mesmo Código de Ética não permite ao médico se negar a “liberar cópias do prontuário sob a sua guarda” para o atendimento de ordem judicial.
Inquestionável, em conseqüência, que, para o próprio Código de Ética Médica, há diferença entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos, bem como que o sigilo dos prontuários é menos rigoroso que o sigilo médico-paciente. Essa situação tem uma explicação muito simples: enquanto na conversa com o paciente o médico ficará sabendo de muitas informações necessárias para formar o diagnóstico (o local, a data, a situação em houve o contágio...), no prontuário não é necessário constar, por exemplo, que a contaminação se deu num relacionamento extraconjugal, basta registrar a doença.
Na hipótese da perícia médica, ademais, não há se falar em relação de confiança entre médico-paciente, a uma porque não há paciente e, sim, periciando, a duas porque não é o periciando quem escolhe o médico, a três porque existe uma terceira pessoa na relação jurídica, isto é, a destinatária do resultado da perícia. Nessa senda, pela diversidade do suporte fático (=inexistência de paciente) não é possível aplicar o sigilo médico-paciente às hipóteses de perícia médica.
Não é só o Código de Ética Médica, aliás, que positiva diferença entre o sigilo médico-paciente e o sigilo dos prontuários médicos. O próprio Conselho Federal de Medicina exarou o Parecer nº 24/1990, confirmando a perícia médica como exceção ao sigilo médico:
O dever de guardar o segredo médico, no entanto, não é absoluto. A ilicitude penal, como a civil e ética, é excluída pelos próprios diplomas que regem a matéria.
(...)
O Jurista Antonio Carlos Mendes afirma (Parecer ao CREMESP, em 1980) que:
"A justa causa tem, assim, os seus limites fixados pelo Direito, não admitindo circunstâncias estranhas que conduziriam fatalmente a imprecisão e alargamento excessivo da posição justificativa, com o enfraquecimento da tutela penal". E que:
"Destarte, o segredo médico, como espécie do segredo profissional, cede a razões relevantes que o Direito reconhece e regula, evitando que o médico seja punido. Estas razões são identificadas pela expressão JUSTA CAUSA ..."
(...) Compete somente à lei, tendo em vista um interesse público superior, trazer exceções ao segredo médico. Segundo aquele mestre, a legislação brasileira menciona as seguintes situações, em face das quais o médico tem o dever de abrir exceção à regra do segredo:
1 - declaração de nascimento, na ausência dos responsáveis legais;
2 - declaração de óbito, na ausência da família e do diretor do estabelecimento;
3 - denúncia de doença cuja notificação é compulsória;
4 - no exercício de função pericial;
5 - em atestados médicos, por solicitação do paciente;
6 - comunicação de certos crimes, nos termos da L.C.P.[9]
A posição adotada pelo colegiado foi reiterada no Parecer CFM nº 28/1992 (Processo Consulta CFM nº 2156/92), abaixo transcrito no que é relevante:
(...)
Contudo, não é essa questão a ser dirimida. O que se questiona é se o dispositivo legal apontado, que determina a quebra do Sigilo Médico, corresponde ao dever legal de que trata o Art. 102 do Código de Ética Médica. A legislação e jurisprudência citada em Parecer referente ao Processo Consulta n.º 3016/89, aprovado por este Plenário, expressa que compete à lei, tendo em vista um interesse público superior, trazer exceções ao Segredo Médico e que a legislação brasileira menciona, entre as situações em face das quais o médico tem o dever de abrir exceção à regra do segredo, como é o caso da comunicação das doenças ditas de notificação compulsória, o exercício da função pericial.
Assim, entendo que os dispositivos citados da Lei n.º 8.112/90 orienta o exercício da função pericial do médico, determinando as patologias que devem ser expressas no atestado médico e no laudo da junta médica, especificamente para licença para tratamento de saúde e para Aposentadoria dos Servidores submetidos ao Regime Jurídico Único.[10]
(sem destaque no original)
Assim, entende-se ser a posição que melhor harmoniza a controvérsia no ordenamento jurídico brasileiro.
III. Conclusão
Ante todo o exposto, por força do art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, do art. 23, § 1º, da Lei nº 8.159/91, e do art. 2º do Decreto nº 4.553/2002, os laudos médico-periciais estão cobertos pelo sigilo legal. Por outro lado, diante da diferenciação feita pelo Código de Ética Médica entre sigilo médico-paciente e sigilo dos prontuários médicos e da posição manifestada pelo Conselho Federal de Medicina nos Pareceres nº 24/1990 e 28/1992, conclui-se que o acesso aos laudos médicos periciais, em situações específicas, é uma exceção ao sigilo médico.
[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 18.ed.rev.atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 104/105.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 204/205.
[3] FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1998. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 35
[4] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 26.
[5] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Processo Consulta CFM nº 6032/09. Interessado: Comissão de Ética Médica/ Gex Campo Grande/ MS - INSS. Relator: Cons. Renato Moreira Fonseca. Brasília, 14 de janeiro de 2010. Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 17/03/2013.
[6] Ibidem, acesso em 17/03/2013.
[7] Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 17/03/2013.
[8] É vedado ao médico: (...) Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa.
[9] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Processo Consulta CFM nº 3016/89. Interessado: Petrobrás - Petróleo Brasileiro S/A. Relator: Cons. Hércules Sidnei Pires Liberal. Brasília, 11 de agosto de 1990. Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 01/08/2011.
[10] BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Processo Consulta CFM nº 2156/92. Interessado: Marcelo Augusto L. Cardoso. Relator: Cons. Hércules Sidnei Pires Liberal. Brasília, 11 de dezembro de 1992. Disponível em: < http://www.cfm.org.br>. Acesso em 28/02/2013.
Procurador Federal. Chefe da Divisão de Patrimônio Imobiliário e Coordenador-Geral de Matéria Administrativa Substituto da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, Direção Central em Brasília/DF. Especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UnP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais - Direito - pela Universidade de Passo Fundo, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Rodrigo Guimarães. O alcance do sigilo dos laudos médicos na perícia oficial (LEI Nº 8.112/90). Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34637/o-alcance-do-sigilo-dos-laudos-medicos-na-pericia-oficial-lei-no-8-112-90. Acesso em: 23 dez 2024.
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