Resumo
Fruto de uma inquietação antiga que se instalou no seio da instituição, a Recomendação nº 16, de 28 de abril de 2010, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), propõe a reorientação da atuação do Parquet, no processo civil, com o desiderato de amoldá-lo ao novel perfil que lhe fora traçado pela Carta Cidadã de 1988, qual seja, o de órgão agente, demandista, em detrimento do Ministério Público custos legis. O presente trabalho tem o escopo de analisar, à luz da Constituição Federal, da Lei Adjetiva Civil e da legislação extravagante, a atuação da instituição como parte e como fiscal da lei, no ordenamento processual civil, a fim de verificar se, de fato, a intervenção ministerial implica em prejuízo de suas atribuições na defesa e promoção de interesses coletivos de maior relevância social.
Palavras-chave: Ministério Público. Recomendação nº 16/2010. Conselho Nacional do Ministério Público. Custos legis. Intervenção ministerial.
1. INTRÓITO.
Certo é que a Constituição Federal de 1988 dispensou um tratamento institucional revolucionário ao Ministério Público, garantindo maior amplitude em suas atividades e fazendo-o alcançar um destacado papel como órgão agente na busca da justiça social, sobretudo em se tratando de um país no qual a efetivação dos direitos da coletividade é, de fato, uma difícil tarefa.
Nesse panorama, o novo regime constitucional perfilhou a independência funcional do Parquet e assegurou sua autonomia financeira, administrativa e orçamentária; marcando, de vez, o fim de sua subordinação ao Poder Executivo e, por conseguinte, da representação judicial da União e dos Estados, e da consultoria dos seus respectivos órgãos públicos.
Assim, sabe-se que, seja como parte ou como custos legis, o Ministério Público, em consonância com o preconizado no art. 127, cabeça, da vigente Carta Política, submete-se, tão somente, aos imperativos constitucionais, à lei e aos ditames sociais; desvinculando-se, pois, dos Poderes Estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário), e agindo de maneira unitária, indivisível e independente, no afã de salvaguardar o ordenamento jurídico, a democracia e os interesses coletivos e individuais que não se pode dispor.
Por consectário lógico do princípio da independência funcional, ao representante ministerial é garantida sua liberdade de convencimento, ou seja, quando tal ou qual hipótese legitima sua atuação, ele deverá agir de acordo com sua livre consciência e opinião.
Quadra ressaltar que, a despeito de certa discricionariedade da qual goza o representante do Parquet na análise, em concreto, dos pressupostos que autorizam sua atuação, quando esses estão presentes, isto é, quando há razões para que se considere indispensável a atuação ministerial, exsurge, então, o dever de agir, seja ajuizando ações civis públicas, seja intervindo como fiscal da lei.
Com efeito, afasta-se a possibilidade de que, por razões de oportunidade e conveniência, o Ministério Público abstenha-se de demandar ou intervir, quando a lei determinar que sua atuação é imprescindível; de sorte a refletir o princípio da obrigatoriedade, também presente no processo civil, em maior ou menor grau, a depender da situação.
Nesse sentido, leciona o saudoso jurista Hélio Tornaghi, ao comentar o art. 81 do Código de Processo Civil:
[...] a rigor, e ao contrário do que acontece com o particular, o Ministério Público tem por vezes o dever e não apenas o direito de agir. Tem razão o Código ao dizer que ele exercerá, isto é, deverá exercer. Mas por isso mesmo não é feliz ao falar indiscriminadamente em direito de ação.[1]
Infere-se, assim, que malgrado a própria lei, por vezes, confira ao representante ministerial margem discricionária para sua atuação, dando-lhe liberdade para vislumbrar, no caso concreto, se se trata de hipótese de agir; quando esta se configura, o Ministério Público deve mover-se para restabelecer o sistema jurídico, pois do contrário, patente seria a transgressão de seu dever de ofício.
Ocorre que, no âmago da instituição, protraíam-se acalorados debates em derredor das prioridades do Ministério Público em sua atuação no processo civil, o que culminou na edição da Recomendação nº 16, de 28 de abril de 2010, do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, que em deliberação unânime, dispôs sobre a reorientação da atuação ministerial de maneira a coadunar-se com o perfil que lhe fora traçado pela Lei Maior, qual seja, o de órgão demandista, promotor dos interesses sociais, em detrimento do Ministério Público “parecerista”, interventivo, fiscal da lei.
Em verdade, a aludida Recomendação caminha no sentido de minorar sobremaneira a intervenção do representante ministerial no processo civil, ainda que nas lides onde a lei a exija, tencionando priorizar sua atuação na promoção e defesa de direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis.
Nesse diapasão, em que pese o já referido princípio da obrigatoriedade, a Recomendação trazida a lume considera, em síntese, a necessidade – em virtude da evolução institucional, da limitação orçamentária e da expectativa social que recai sobre o Parquet – de tornar mais efetiva, espontânea e integral a defesa dos interesses e anseios da sociedade, de modo a considerar desnecessárias certas intervenções na condição de fiscal da lei.
Dentre as providências recomendadas, insta frisar a dispensa da intervenção nas hipóteses disciplinadas pelo art. 82, II e III, do CPC, referentes às lides que versam, basicamente, sobre direito de família, estado das pessoas e direito das sucessões. Forçoso indagar se tal Recomendação vai de encontro ao positivado pelo legislador, negando vigência aos referidos dispositivos legais, já que, não raramente, vem sendo utilizada – inobstante ser desprovida de efeito vinculante – pelos representantes da instituição, como escusa para não intervir nessas demandas que, sublinhe-se, a lei considera obrigatória a fiscalização ministerial.
De outro giro, sabe-se que é de capital importância a atuação do Parquet na concretização dos interesses sociais e na solução dos conflitos coletivos de ordem econômica, social e cultural, notadamente no que atine à educação, à saúde, à infância e juventude, às pessoas idosas, aos portadores de deficiência, ao meio ambiente, à probidade administrativa etc. Assim, é de meridiana clareza que ao Ministério Público cabe esse essencial munus, o de defender a sociedade das mais variadas agressões que, comumente, lhe são perpetradas; atuando, autenticamente, com desassombro e engajamento em prol de um Estado socialmente justo e democrático.
Por oportuno, cabe salientar que, muito embora a Constituição atribua ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, alçando-o como uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, é certo que não lhe toca ser o guardião de todo o ordenamento jurídico, de todas as leis, não estando incumbido de fazer-se presente todas as vezes em que um comando legal for transgredido. Legitimado estará, de fato, quando presentes interesses sociais ou individuais que sejam indisponíveis.
Portanto, tendo em vista a Recomendação em tela, almeja-se, neste estudo, mesmo que de maneira perfunctória, analisar a importância/essencialidade da atuação ministerial no processo civil, tanto amoldado ao seu perfil constitucional de órgão agente, como em suas raízes no processo civil nacional, na condição de custos legis.
2. O MINISTÉRIO PÚBLICO DEMANDISTA.
A Carta Magna de 1988 traçou o perfil político-constitucional do Brasil como o de um Estado Democrático de Direito; ressaindo, do seu art. 1º, caput, todos os princípios fundamentais de nosso Estado. Há, então, a imposição de metas e deveres com o fito de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de descriminação.
Com efeito, busca-se uma igualdade efetiva, no plano concreto e social, ao invés de uma igualdade meramente formal entre as pessoas. Nesse contexto, o Ministério Público, forte nos arts. 127 e 129 da Constituição Federal, tem a incumbência – acentuada em razão de nossa hodierna realidade social – de agir na promoção e defesa dos valores constitucionalmente assegurados à coletividade e, ainda, aos indivíduos, revelando-se como verdadeira égide sobre os direitos fundamentais, indisponíveis.
Nessa esteira, mostra-se a importância do processo coletivo, isto é, de um sistema de defesa coletiva, consubstanciado na ação civil pública (instituída pela Lei nº 7.347/85 e, ulteriormente, consagrada pela Constituição, em seu art. 129, III), visando à defesa de grupos, classes ou categorias de lesados. Destarte, com o fito de resguardar direitos transindividuais, assim compreendidos os direitos difusos e coletivos, bem como direitos individuais homogênios, torna-se latente a necessidade de um Ministério Público agente, que pugne pela defesa do conjunto de lesados, estejam eles ligados por uma situação de fato, por uma relação jurídica base ou por uma origem comum.
Sobre o tema, urge trazer à baila o seguinte excerto da luminosa lição de Hugo Nigro Mazzilli sobre a ação civil pública, in verbis:
Embora a ação civil pública de que cuida a Lei n. 7.347/85 objetive apenas adefesa de interesses transindividuais, na verdade, as ações civis públicas, sob o aspecto doutrinário, podem ter objeto mais amplo. Como bem ensinou Calamandrei, sob o aspecto doutrinário ação civil pública é a ação de objeto não penal, movida pelo Ministério Público. Neste sentido, podemos referir-nos, por exemplo, às ações civis públicas para defesa de interesse público (como as de nulidade de casamento, movidas pelo Ministério Público), para a defesa de interesse individual indisponível (como as ações de alimentos em defesa de crianças e adolescentes)², para a defesa do patrimônio público e social (CF, art. 129, III; Lei n. 8.429/92, art. 17; LONMP, art. 25, IV, c.c. LOMPU, art. 6º, VII)[2]
Comungamos do entendimento adrede reproduzido, considerando que a ação civil pública tem por objeto não só a defesa de interesses transidividuais, como também a de interesses individuais indisponíveis. Entrementes, neste tocante, controvertem-se as posições jurisprudenciais e doutrinárias.
Isso porque, há os que sustentem que o Ministério Público não pode fazer-se patrono de causas individuais, já que compete à Defensoria Pública a defesa jurídica dos hipossuficientes. Todavia, imperioso registrar que, a nosso sentir, não é o interesse público ou privado que irá legitimar a atuação do Parquet; mas, sim, a indisponibilidade do direito lesado.
Portanto, temos que é plenamente legítima, v.g., a propositura de ação civil pública pelo representante ministerial, colimando o fornecimento de medicamentos/tratamentos a um indivíduo hipossuficiente acometido por doença grave e severa, quando o Estado (União Federal, Distrito Federal, Estados e Municípios) negar-lhe a devida assistência. Ora, por certo, embora o direito, na hipótese, esteja afeto a uma única pessoa, sabe-se que a saúde e, em última análise, a vida, revestem-se de indisponibilidade absoluta; além, é claro, de haver grande repercussão social no que concerne à matéria.
Nesse soar, vê-se que, em decorrência de nossa realidade social, as atribuições do Parquet, na esfera cível, tiveram um enorme crescimento, haja vista que até poucos anos atrás, sua iniciativa para a ação civil pública era quase meramente simbólica. Hoje – sobretudo após o advento da Lei de Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) –, atravessando petição em juízo, o representante ministerial busca a concretização de interesses coletivos referentes ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público e social, à ordem econômica e à economia popular, à ordem urbanística etc., além da defesa dos portadores de deficiência, das crianças e adolescentes, dos idosos, dos investidores do mercado de valores mobiliários e, à toda evidência, dos demais direitos (mesmo que individuais) revestidos pelo atributo maior da indisponibilidade.
Favoravelmente à Recomendação nº 16/2010, do CNMP, há os que advoguem a necessidade de mitigar o princípio da obrigatoriedade para que avulte discricionariedade ao Ministério Público, de sorte a possibilitar a melhor escolha de seus caminhos e de sua maneira de atuação, elegendo prioridades e dando maior liberdade para a defesa de interesses coletivos. Outrossim, sustentam a necessidade da racionalização da atuação ministerial, tendo em vista a prevalência do interesse público sobre o particular, de modo a não destoar de seu “verdadeiro papel constitucional”.
Não desconhecemos, como já expendido, a necessidade de um Ministério Público agente; contudo, o entendimento supracitado não nos parece acertado. É que, como ventilado alhures, deve-se afastar a ideia de que apenas o interesse da coletividade autoriza a atuação ministerial, e ter em mente que a essencialidade do direito trazido a tomo é que legitima o Ministério Público no processo civil, inobstante seja um direito afeto a apenas um indivíduo (desde que indisponível), de sorte a atender ao princípio da dignidade da pessoa humana – supedâneo de todos os direitos da personalidade.
Ademais, é a própria Constituição – no mesmo artigo invocado pelos que defendem a minoração da intervenção ministerial, qual seja, o caput do art. 127 – que comete ao Ministério Público a defesa de interesses individuais indisponíveis, sendo assim seu dever funcional intervir na condição de custos legis.
3. O MINISTÉRIO PÚBLICO CUSTOS LEGIS.
Note-se que o vigente Código de Processo Civil, em vigor desde 11 de janeiro de 1973, foi recepcionado, em seu todo, pela ordem constitucional de 1988, não havendo que se cogitar qualquer inconstitucionalidade referente às atribuições cometidas ao Ministério Público no que atine à sua intervenção no processo civil. Aliás, nosso diploma processual cível é, por evidente, o código de um Ministério Público predominantemente interventivo.
Nesse caminhar, há, basicamente, três causas que justificam a atuação do Parquet no processo civil, e em todas elas, presente está o interesse público. Mesmo nas hipóteses previstas no art. 82, do CPC, que cuidam de ações individuais, com alcance inter partes, como, p. ex., o matrimônio e as disposições de última vontade, o interesse público subsiste, permeando tais situações, ainda que as partes sejam maiores e capazes. Sim, é o interesse público que orienta a intervenção ministerial no processo civil. Senão vejamos.
Por primeiro, temos o Ministério Público que age na tutela de um direito que é indisponível em razão da condição de alguma pessoa. Atua, pois, em decorrência de uma indisponibilidade atrelada à qualidade da parte, seja porque ela é hipossuficiente ou porque sofre alguma limitação social/funcional. Assim, o interesse público evidencia-se nos processos que envolvem incapazes, portadores de deficiência, idosos etc.
Secundus, o Ministério Público far-se-á presente para tutelar a indisponibilidade de certas relações jurídicas, tal qual a curatela, o poder familiar e o casamento, que demandam a intervenção ministerial no afã de zelar pela validade destas, posto consideradas indisponíveis e dizem respeito ao estado da pessoa.
Por derradeiro, a atuação dá-se quando, independentemente de haver direito indisponível ou não, existe grande repercussão social sobre a causa, isto é, sua abrangência é tão significante, tão essencialmente social, que diz respeito à coletividade como um todo.
No particular, impende registrar o entendimento lapidar de Hugo Nigro Mazzilli:
Já temos defendido que a tônica da intervenção do Ministério Público consiste na indisponibilidade do interesse. Hoje vamos mais além. A par dos casos em que haja indisponibilidade parcial ou absoluta de um interesse, será também exigível a atuação do Ministério Público se a defesa de qualquer interesse, disponível ou não, convier à coletividade como um todo. […] Num sentido lato, portanto, até o interesse individual, se indisponível, é interesse público, cujo zelo é cometido ao Ministério Público.[3]
Nessa esteira, o aludido art. 82 do CPC, disciplina a intervenção do fiscal da lei em seus três incisos. No inciso I, reza a intervenção em virtude da presença de incapazes, pois é essa qualidade que torna indisponíveis seus interesses. O inciso II cuida da intervenção nas lides que versam sobre o estado da pessoa e disposições de última vontade, relações jurídicas que devem ser preservadas pela sua importância social, não obstante tenham efeito apenas entre as partes. Por último, em seu inciso III, vê-se uma norma residual, de extensão, que visa contemplar as hipóteses não abarcadas nos incisos anteriores, onde o interesse público reste patente pela qualidade da parte ou natureza da lide.
A Recomendação em comento tem o escopo de suprimir a intervenção do custos legis nas situações previstas nos incisos II e III do artigo supramencionado, considerando dispensável o papel do Ministério Público nessas lides quando as partes forem maiores e capazes, porquanto aptas para ajustarem suas relações da maneira que melhor lhes convenha.
Permissa venia, temos que tal lógica não merece guarida. Como se sabe, todas as pessoas naturais, desde o nascimento com vida, são titulares de direitos vitalícios, imprescindíveis ao desenrolar pleno e saudável de sua existência. São direitos indisponíveis, irrenunciáveis, que asseguram o respeito à integridade física, psíquica e moral da pessoa, funcionando como um verdadeiro arsenal de defesa do sujeito-indivíduo e situando-o na sociedade. Nessa linha, faz-se mister zelar pelo estado da pessoa, seja referente à família (status familiae) ou à cidadania (status civitatis), haja vista que são esses atributos que as distinguem, tornando-as singulares sobre diversos aspectos.
Sobre o tema, cumpre trazer à baila o entendimento assentado no Supremo Tribunal Federal:
O estado da pessoa é uma qualificação jurídica que deriva da posição que os sujeitos ocupam na sociedade e da qual decorrem direitos e deveres, no ensinamento do mestre Orlando Gomes. E mais, regula-se por dispositivos de ordem pública, pois a situação jurídica de cada indivíduo interessa a toda sociedade. Esses preceitos não podem ser modificados pela vontade do particular. São "us publicum”, “privatorum pactis mutari non potest”. [...] O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana, princípio alçado a fundamento da República Federativa do Brasil (CF, artigo 1º, inciso III). O nome, por sua vez, traduz a identidade da pessoa, a origem de sua ancestralidade, enfim é o reconhecimento da família, base de nossa sociedade. Por isso mesmo, o patronímico não pertence apenas ao pai senão à entidade familiar como um todo, o que aponta para a natureza indisponível do direito em debate. No dizer de Luiz Edson Fachin" a descoberta da verdadeira paternidade exige que não seja negado o direito, qualquer que seja a filiação, de ver declarada a paternidade. Essa negação seria francamente inconstitucional em face dos termos em que a unidade da filiação restou inserida na Constituição Federal. Trata-se da própria identidade biológica e pessoal - uma das expressões concretas do direito à verdade pessoal. [...] A indisponibilidade de determinados direitos não decorre da natureza privada ou pública das relações jurídicas que lhes são subjacentes, mas da importância que elas têm para a sociedade. O interesse público de que se cogita é aquele relacionado à preservação do bem comum, da estabilidade das relações sociais, e não o interesse da administração pública em sentido estrito. Daí reconhecer-se ao Estado não só o direito, mas o dever, de tutelar essas garantias, pois embora guardem natureza pessoal imediata, revelam, do ponto de vista mediato, questões de ordem pública. Direito individual indisponível é aquele que a sociedade, por meio de seus representantes, reputa como essencial à consecução da paz social, segundo os anseios da comunidade, transmudando, por lei, sua natureza primária marcadamente pessoal. A partir de então dele não pode dispor seu titular, em favor do bem comum maior a proteger, pois gravado de ordem pública sobrejacente, ou no dizer de Ruggiero "pela utilidade universal da comunidade.[4]
Depreende-se, pois, que deve o Ministério Público intervir nos procedimentos referentes a registros públicos para, p. ex., evitar que os pais, ao atribuir o nome dos filhos, exponham-nos ao ridículo; intervir em ações de nulidade de casamento, para verificar se o matrimônio foi contraído em contrariedade com a lei, com impedimentos ou causas suspensivas; intervir nas ações de interdição e curatela, para resguardar os interesses de incapazes etc. Perceba-se que a questão de mérito subjacente, em todas essas situações, diz respeito ao estado da pessoa.
Portanto, clarividente que em suas atividades institucionais, o Ministério Público sempre age em busca de interesses indisponíveis, mesmo que, como já dito um ror de vezes, esteja defendendo um direito ligado a apenas um sujeito-indivíduo.
3. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS.
Não pretendemos abastardar o novo perfil traçado pela Carta Cidadã para a instituição; contudo, estabelecer primazia entre o Ministério Público agente e o Ministério Público fiscal da lei não nos parece correto, máxime porque nem a lei nem a própria Constituição fazem essa distinção. Muito ao revés, é a própria Constituição, em seu art. 127, cabeça, que traz a defesa de interesses individuais indisponíveis como atribuição precípua do Parquet.
Distinguir o representante ministerial agente, do representante ministerial fiscal da lei, como bem ensina o douto Promotor de Justiça do Estado de Pernambuco, Eduardo Henrique Borba Lessa, “seria criar um odioso sistema de castas na instituição – que já tem que conviver com as diferenciações entre os membros que atuam no primeiro grau e os que atuam no segundo grau”[5], alimentando ainda mais disputas intestinas.
Seguramente, não pode haver função jurisdicional em matéria social ou indisponível sem que o Ministério Público esteja presente como órgão agente ou órgão interveniente. Assim, é a indisponibilidade e a essencialidade social do direito levado a juízo que legitima a instituição, e não a sua natureza de “público” ou “privado”, até porque existem situações envolvendo interesse público – como no caso da execução fiscal – em que a atuação do Ministério Público é dispensada, ao passo que existem processos que versam sobre interesses tidos como particulares – a exemplo da mudança de sexo (redesignação de gênero) – nos quais o Parquet deverá intervir.
Imperioso anotar que, conquanto as recomendações sejam destituídas de caráter cogente, elas têm grande força moral, e até mesmo implicações práticas. Embora não represente nenhuma mácula à autonomia funcional e administrativa do Parquet, em razão de, repise-se, ser desprovida de efeito vinculante, a Recomendação nº 16/2010, do CNMP, na prática, vem tomando outra proporção, à medida que se constata que até os magistrados vêm invocado-a, sem nenhum reproche, para indeferir pedidos de intimação do Parquet, impossibilitando que os representantes ministeriais, ao seu alvedrio, ponderem sobre a necessidade, ou não, de sua intervenção.
Demais disso, usar-se de discricionariedade, quando ainda se está subordinado à obrigatoriedade – recusando-a gratuitamente –, é ir de encontro ao princípio da legalidade, sustentáculo de todo o ordenamento jurídico, caminhando contra a lei, apagando as funções institucionais que foram cometidas ao Ministério Público, sem nenhuma incompatibilidade, pela Constituição Federal, de sorte é abdicar, inconstitucionalmente, de suas atribuições.
Não será mitigando o princípio da obrigatoriedade, e fazendo com que este seja sobrepujado pelo princípio da independência funcional, que teremos um Ministério Público com maior legitimidade social. A liberdade e a independência funcional, de fato, existem. O que não pode haver é liberdade ao arrepio da lei.
Dessa maneira, acatar o entendimento da Recomendação em comento significa negar vigência aos incisos II e III do art. 82, do CPC, e mais ainda, negar vigência aos dispositivos que reclamam a intervenção ministerial nos procedimentos referentes a registros públicos (Lei nº 6.015/73), ao mandado de segurança (Lei nº12.016/09) e outros.
REFERÊNCIAS
LESSA, E. H. B. O custos legis retórico: a desconstrução do fiscal da lei no processo civil brasileiro. 2011. 94 f. Dissertação (Mestrado em Direito)–Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Recife, 2011. Disponível em: <http://www.unicap.br/tede//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=660> Acesso em: 20 mar. 2013.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16. ed. São Paulo; Saraiva, 2003.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
[1] TORNAGHI, Hélio Bastos. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, p. 278, Revista dos Tribunais, 1976.
[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. Aspectos polêmicos da Ação civil pública. Artigo publicado em diversas revistas jurídicas, dez. 2005. Disponível em: <http://www.mazzilli.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2013.
[3] MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público, Saraiva, 3ª edição, 1996, p. 72-73.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 422099-SP. Disponível em: <http//redir.stf.jus.br> Acesso em: 20 mar. 2013.
[5] LESSA, E.H.B. A Atuação do MP no Custos Legis. DFATO - Revista da Associação do Ministério Público de Pernambuco, Recife/PE, p. 29 - 30, 01 jul. 2011.
Bacharelando em Direito pela Faculdade de Olinda. Atuou como Órgão Auxiliar do Ministério Público de Pernambuco, na 7ª Promotoria Cível. Estagiário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, João Paulo Babini de. A atrofia da intervenção ministerial, no processo civil, face à recomendação nº 16/2010 do Conselho Nacional do Ministério Público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34838/a-atrofia-da-intervencao-ministerial-no-processo-civil-face-a-recomendacao-no-16-2010-do-conselho-nacional-do-ministerio-publico. Acesso em: 23 dez 2024.
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