A Constituição Federal de 1988 restruturou fundamentalmente a organização do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula desde os primórdios do Estado brasileiro, teve a sua competência remodelada, excluindo-se certas matérias (cujo conteúdo não se referia diretamente ao controle constitucional, que passariam às mãos de um recentíssimo Superior Tribunal de Justiça) e incluindo novas competências, que viriam a confirmar o Supremo como o ápice da função jurisdicional pátria.
Simultaneamente, uma questão “efervescente” desde os eventos anteriores ao da constituinte ganham uma maior dimensão. Juristas e operadores do direito começavam a perguntar se o Supremo Tribunal era, com a atual competência, uma corte constitucional[1] ou não.[2] O STF, afinal de contas, era um tribunal superior (o mais superior de todos) ou uma instância sólida e exclusiva de guarda da constituição?
Até hoje os pensadores jurídicos não chegaram a um consenso doutrinário. A resposta para esta questão está umbilicalmente atrelada à concepção adotada de “corte constitucional” ou de “tribunal constitucional”. A concepção lata e técnica de uma corte judicial de controle de constitucionalidade com certeza levaria a uma conclusão de que o STF é uma corte constitucional de algum tipo. Já uma concepção estrita e política permitira evidenciar que não há uma corte constitucional brasileira, apesar de existir um sistema de guarda de nossa lei maior entregue às mãos, principalmente, do Poder Judiciário.
A concepção lata de “corte constitucional” presume que qualquer órgão que tenha por atribuição zelar pelo cumprimento administrativo, judicial e legislativo da Constituição, seja essa função exclusiva, seja essa função compartilhada com outras atribuições, é uma corte que mereça a qualificação de constitucional. Esta é uma classificação aberta, já que o único requisito necessário é ter dentre suas responsabilidades a guarda do texto e da normatividade da carta política de um Estado, de forma que órgãos tão desassemelhados, como a Assembleia Legislativa da Suíça e o Supremo Tribunal Federal do Brasil, são cortes da mesma categoria, isto é, cortes ou tribunais constitucionais.[3]
Um refinamento desta própria linha pode ser identificado quando acrescentamos mais um requisito à função de guarda da lei maior, que é a imposição da corte ser uma instância judicial. Haveria, aqui, a necessidade de que a corte constitucional fosse um órgão técnico-jurídico que não apenas cuida da constituição mas o faz a partir da atividade judicial, existindo, assim, um verdadeiro Tribunal Constitucional. Podemos dizer que a corte constitucional, nesse caso, é aquele que faz o controle jurídico e jurisdicional da carta magna. O sistema norte-americano difuso de controle da constituição vai nessa linha. A corte constitucional poderia assim ser o último órgão a apreciar a constitucionalidade da lei ou qualquer órgão com esta atribuição, final ou intermediária.
Outro aprofundamento da primeira concepção lata é considerar que as “cortes constitucionais” seriam todos os órgãos judiciais que poderiam, de forma exclusiva ou acumulada, verificar a constitucionalidade em abstrato, de forma concentrada, dos atos normativos e das leis em geral ou em específico. Novamente, se adotada essa concepção temperada, é o STF qualificado para ter o status de Tribunal ou Corte constitucional.
Muitos doutrinadores, todavia, não compartilham dessa visão generalizadora. Uma segunda concepção, compromissada com a origem histórica do termo “corte constitucional”, uma concepção estrita, exige um número muito maior de requisitos que devem ser satisfeitos para que um órgão seja reconhecido como uma “corte constitucional”.
As verdadeiras cortes constitucionais, em sentido estrito, surgiram na Europa, a partir da década de 1920, como órgãos de controle político-ideológico (porque não faziam um controle meramente sistêmico, mas também substancial), especializado (porque não julgavam casos concretos, mas tão somente a constitucionalidade dos atos em abstrato) e exclusivo (porque somente a corte constitucional detinha essa função) da constituição. Eram entes autônomos que não pertenciam ao Poder Judiciário ou a qualquer outro Poder ou órgão administrativo ou legislativo.[4]
O Supremo Tribunal Federal carece de alguns elementos e possui outros elementos a mais que não o permite ser classificado, em sentido estrito, como uma Corte Constitucional.
Em primeiro lugar, o STF não é uma corte autônoma do Poder Judiciário. É, na verdade, cúpula máxima deste mesmo Poder,[5] sendo ele responsável não somente pelo controle da constitucionalidade em abstrato como também responsável pelo julgamento de recursos extraordinários de casos concretos em que houve a discussão da constitucionalidade em instâncias inferiores. Logo, alija-se de vez a questão da exclusividade, pois se de um lado não há exclusividade por lado das tarefas do STF, que além do controle abstrato ainda assoma o controle difuso e o julgamento de questões não-constitucionais (como o julgamento de crimes políticos e de recursos de Mandados de Segurança), ainda há a falta de exclusividade por parte do sistema que, ao invés de atribuir o zelo da carta política apenas ao Supremo, pulveriza esta competência por toda a organização judicial (e até mesmo administrativa e legislativa).
Outrossim, o controle realizado pelo STF é, majoritariamente, técnico-jurídico, não político-ideológico. Os ministros do Supremo não devem avaliar de forma restrita os aspectos políticos, morais, econômicos e utilitários das questões constitucionais, mas devem decidir com base nas regras, padrões e normas endógenas ao próprio sistema jurídico.
E é por esse motivo que surge uma outra questão palpitante atrelada ao Supremo Tribunal Federal, atinente à forma pela qual seus membros são escolhidos. Atualmente, os ministros do Supremo são livremente nomeados pelo Presidente da República, após sabatina e aprovação por maioria absoluta dos membros do Senado Federal. Exige-se, para a nomeação, o notável saber jurídico[6], demonstrando que o cargo de ministro é um cargo teoricamente mais técnico do que político. Poder-se-ia clamar pela escolha popular dos membros da corte máxima. Segundo algumas vozes, somente com a democratização do STF, substituindo os cargos vitalícios por mandatos e as nomeações por eleições, é que poder-se-ia aproximá-lo de uma corte política, afastando-o da “roupagem” preponderantemente técnica dos dias atuais. Tal atitude, contudo, poderia comprometer a atuação dos magistrados, já que eles não gozariam mais de uma certa estabilidade para julgarem de forma imparcial, tendo em vista a transformação de um cargo eminentemente técnico em um cargo político, uma vez que os ministros deveriam se preocupar também com a campanha política para permanecer ou ascender aos cargos jurisdicionais.
O Supremo Tribunal Federal, portando, haja vista o exposto, não pode ser classificada, em sentido estrito, como uma corte constitucional (como o é, por exemplo, a corte constitucional da França). O STF não é um órgão predominantemente político e nem é a única instância de guarda da Constituição Federal. José Afonso da Silva é categórico ao afirma que mesmo com a redução da competência do STF à matéria constitucional, “isso não o converte em Corte Constitucional”.[7]
Outros doutrinadores, no entanto, adotam critério mais abertos para identificar uma corte como constitucional, de forma que o STF seria sim uma espécie daquele gênero. Alexandre de Moraes, por exemplo, afirma que “ a função precípua do Supremo Tribunal Federal é de Corte de Constitucionalidade, com a finalidade de realizar o controle concentrado de constitucionalidade no Direito Brasileiro[...]”.[8]
Entendemos que, independentemente dos critérios de identificação utilizados, a despeito da instituição de um órgão especializado, autônomo e político para se obter uma corte constitucional nos moldes da atual corte francesa ou da histórica corte austríaca (produtos das ideias de Kelsen), não podemos reduzir ou relativizar a importância e a responsabilidade do nosso Supremo Tribunal Federal. Alguns países fizeram a escolha por um sistema único enquanto a constituinte brasileira optou por um sistema múltiplo de controle constitucional, eclético por combinar elementos do modelo americano e do europeu continental.[9]
O Supremo Tribunal Federal é o órgão responsável pela guarda da rigidez, solidez e coerência do sistema constitucional, sem que isso seja afetado pela ausência de exclusividade ou de autonomia nessa função. Pode ser que a nossa corte se distancie fundamentalmente da corte francesa, mas isso não o descaracteriza como o órgão máximo de controle da carta política, sendo ou não chamado formalmente de corte constitucional, como também acreditam o anterior Ministro Oscar Dias Corrêa[10] e o atual Ministro Gilmar Ferreira Mendes.[11]
Referências Bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MENDES, Gilmar F. et al. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
SILVA, J. Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995
[1] Utiliza-se, aqui, a expressão “Corte Constitucional”que hora é análoga à expressão Tribunal Constitucional, hora é um conceito especializado em face de um “Tribunal” ou “Juízo” Constitucional.
[2] MENDES, Gilmar F. et al. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 990.
[3] NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2007, pg. 280.
[4] SILVA, J. Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, pg. 526.
[5] PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pg.521.
[6] Artigo 101 da Constituição da República Federativa do Brasil.
[7] SILVA, J. Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, pg. 527
[8] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. pg. 562.
[9] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro.6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pg. 67.
[10] Apud SILVA, J. Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, pg. 527.
[11] MENDES, Gilmar F. et al. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 990.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COLONTONIO, Carlos Ogawa. O papel do Supremo Tribunal Federal como corte constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jul 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36037/o-papel-do-supremo-tribunal-federal-como-corte-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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