1. Introdução.
Questão não muito explorada no meio doutrinário é a possibilidade de se reconhecer aos índios o direito ao alistamento eleitoral como exercício do direito à cidadania, à luz da ordem constitucional.
Para tanto, é mister analisar o Estatuto do Índio sob a égide da Constituição da República de 1988, com o que se verá que não há razões para se afastar dos silvícolas o exercício desse importante direito.
2. DESENVOLVIMENTO.
A Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, conhecida como Estatuto do Índio, surgiu no contexto da Constituição Federal de 1967, tendo previsto a distinção entre índios integrados e índios não-integrados:
Art 4º Os índios são considerados:
I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.
Assim, entendia-se que os índios não-integrados deveriam ser tutelados ou assistidos, e representados pela União, através do órgão federal de assistência aos silvícolas.
Todavia, a classificação dos índios em relação ao seu grau de integração perdurou tão-somente até o advento da Constituição da República de 1988, quando esta reconheceu expressamente aos índios, suas comunidades e organizações a capacidade processual, ou seja, a possibilidade de ser parte legítima para ingressar em juízo em defesa dos seus direitos e interesses, conforme dispositivo a seguir transcrito:
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Dessa forma, a Constituição da República reconheceu expressamente a capacidade jurídica aos índios, não havendo que se cogitar de qualquer distinção que tenha como parâmetro referido nível de integração à comunhão nacional, de modo que aquele dispositivo legal não foi recepcionado pela Carta Magna vigente.
Com efeito, o atual texto constitucional superou a visão integracionista que até então vigorava, adotando o princípio do respeito e preservação à organização sócio-cultural das comunidades indígenas.
Por outro lado, a distinção entre índios integrados e não-integrados não passa pelo crivo da constitucionalidade também por se tratar de previsão discriminadora, violando o principio da isonomia, que preceitua a necessidade de se conferir tratamento igualitário a pessoas iguais e tratamento desigualitário a pessoas desiguais, na medida de sua desigualdade, sendo certa a inexistência de discrímen apto a permitir tratamento diferenciado entre eles.
Outrossim, impedir o alistamento eleitoral de qualquer índio ofenderia também a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da República Federativa do Brasil inserto no art. 1º, inciso III, da Carta Magna, tolhendo, de maneira desarrazoada, a participação dos silvícolas nas decisões políticas do país. Nesse passo, convém salientar que o regime tutelar ao qual se sujeita alguns grupos indígenas não se confunde com a incapacidade civil ou eleitoral, jamais podendo trazer tamanha restrição indiscriminadamente aos índios.
É de bom alvitre mencionar que a antropologia atual tem considerado totalmente superada a classificação dos índios em relação ao seu grau de integração à sociedade, o que é defendido no presente estudo e pode ser extraído também da exegese da Convenção nº 169, da OIT.
Assim, é forçoso concluir pela possibilidade de alistamento eleitoral dos índios, sendo mister trazer à baila algumas outras nuances com repercussão prática.
Dispõe os arts. 42 e 44, do Código Eleitoral, que:
Art. 42. O alistamento se faz mediante a qualificação e inscrição do eleitor.
[...]
Art. 44. O requerimento, acompanhado de 3 (três) retratos, será instruído com um dos seguintes documentos, que não poderão ser supridos mediante justificação:
I - carteira de identidade expedida pelo órgão competente do Distrito Federal ou dos Estados;
II - certificado de quitação do serviço militar;
III - certidão de idade extraída do Registro Civil;
IV - instrumento público do qual se infirá, por direito ter o requerente idade superior a dezoito anos e do qual conste, também, os demais elementos necessários à sua qualificação;
V - documento do qual se infira a nacionalidade brasileira, originária ou adquirida, do requerente.
Parágrafo único. Será devolvido o requerimento que não contenta os dados constantes do modelo oficial, na mesma ordem, e em caracteres inequívocos. (grifou-se).
O Código Eleitoral exige, portanto, como requisito para alistamento como eleitor, a apresentação de requerimento e que este seja instruído com os documentos arrolados nos incisos do artigo 44, dentre eles, o certificado de quitação do serviço militar.
Todavia, não obstante aludido dispositivo preveja o alistamento militar como requisito intrínseco para o alistamento eleitoral, o tratamento conferido ao índio, neste aspecto, deve ser contextualizado com sua condição de silvícola, vez que a Constituição da República de 1988 estabelece a proteção à cultura indígena, de forma a impedir a imposição de regras e comportamentos estranhos a sua organização social e cultural.
A Lei nº 4.375/64 e o Decreto nº 57.654/1966, que dispõem sobre a prestação do serviço militar, nada rezam acerca da prestação de serviço militar pelo índio. Assim, o Ministério da Defesa editou a Portaria MD/SPEAI/DPE nº 983, de 17 de outubro de 2003, que aprova as Diretrizes para o relacionamento das Forças Armadas com as comunidades indígenas, trazendo como atribuição principal da Secretaria de Logística e Mobilização o seguinte:
1) Quando da elaboração do Plano de Convocação e das diretrizes e normas gerais relativas ao serviço militar, considerar para a seleção para o serviço militar inicial, dependendo da localidade onde se der o recrutamento, a priorização da incorporação de jovens oriundos das comunidades indígenas, desde que voluntários e aprovados no processo de seleção. (grifou-se).
Nesse mesmo sentido é a Portaria MD/EME n. 020, de 02 de abril de 2003, que estabelece:
3) Quando da seleção para o serviço militar inicial, priorizar a incorporação de jovens oriundos das comunidades indígenas, desde que voluntários e aprovados no processo de seleção. (grifou-se).
A contrario sensu, interpreta-se referidas portarias admitindo-se a dispensa do serviço militar aos índios não-voluntários, até porque coagi-los ao seu exercício significaria afronta à sua organização social, modo de vida, crenças e demais aspectos culturais. A prestação do serviço militar seria, pois, uma faculdade aos índios, é dizer, garantida àqueles que voluntariamente se disponibilizassem a prestá-lo.
Impende destacar que mesmo a prestação de obrigação alternativa, prevista no art. 5º, VIII, da Constituição da República, constitui afronta à cultura indígena, sobretudo em se tratando de indígenas aldeados, razão pela qual também deve ser dispensada. E isso em razão do fato de que a prestação alternativa envolve serviços administrativos, filantrópicos, assistenciais ou produtivos, o que configura imposição de atividade estranha à organização e cultura indígena.
Assim, vincular o direito ao alistamento eleitoral à apresentação de certificado de quitação do serviço militar seria uma patente restrição ao exercício da cidadania pelos índios, o que não deve ser admitido pelo ordenamento jurídico pátrio.
Não se pode olvidar que eventual dificuldade prática no alistamento eleitoral deve ser superada por intermédio da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, a quem compete prestar auxílio aos sílvicolas, fornecendo, inclusive, documento que substitui o comprovante de residência.
Diante dos fundamentos jurídicos supramencionados, não merece prosperar o entendimento consagrado na Resolução TSE nº 20.806, que concluiu que aos índios integrados deve-se exigir o certificado de quitação do serviço militar. Tal Resolução conflita frontalmente com a Constituição da República de 1988, excluindo o direito dos índios a esse relevante direito fundamental.
Convém mencionar que as mesmas previsões constitucionais atinentes à facultatividade do alistamento eleitoral e voto são aplicáveis aos índios. Em outras palavras, o alistamento eleitoral e voto serão facultativos aos índios analfabetos; àqueles com idade entre 16 e 18 anos; e para os maiores de 70 anos de idade, a teor do art. 14, § 1º, inc. II, da CR/88.
Tratando-se de norma inclusiva e que garante o exercício da cidadania, há de se cogitar até mesmo da possibilidade de instalação de urnas eleitorais nas aldeias indígenas, de modo a facilitar a participação política.
3. CONCLUSÃO.
Dessa forma, o alistamento eleitoral e o direito de voto dos índios devem ser exercidos com as peculiaridades que lhes são próprias, não se concebendo que os silvícolas atendam aos mesmos requisitos exigidos a qualquer pessoa, pois a própria Constituição da República de 1988 reconhece a organização social do povo indígena e estabelece a proteção à sua cultura, sendo que o entendimento aqui defendido representa manifesta aplicação do princípio da isonomia, na medida em que trata os iguais de forma igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de sua desigualdade, reconhecendo, ainda, o fundamento da dignidade da pessoa humana, expresso no texto constitucional.
Não poderia a legislação infraconstitucional restringir o direito dos índios ao alistamento eleitoral impondo obrigações estranhas à sua cultura, violando seus direitos e garantias fundamentais, razão pela qual há de se concluir pela não-recepção, pela Constituição da República de 1988, da distinção trazida pelo Estatuto do Índio entre silvícolas integrados e não-integrados à comunhão nacional.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
- KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2ª edição. Paris: Dalloz, 1962. Tradução francesa da 2 edição alemã, por Ch. Einsenmann.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a edição, 16a tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
- SOUZA FILHO. Carlos Frederico Mares de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 1ª Edição. Editora Juruá, 2004.
- VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. 1ª Edição. Editora Juruá, 2008.
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cristiano Alves. O reconhecimento do direito dos índios ao alistamento eleitoral e a dispensabilidade do certificado de quitação do serviço militar como requisito para o exercício desse relevante direito garantido constitucionalmente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 ago 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36264/o-reconhecimento-do-direito-dos-indios-ao-alistamento-eleitoral-e-a-dispensabilidade-do-certificado-de-quitacao-do-servico-militar-como-requisito-para-o-exercicio-desse-relevante-direito-garantido-constitucionalmente. Acesso em: 23 dez 2024.
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