1. Introdução.
A proteção ao direito autoral encontra relevante papel na sociedade contemporânea como um todo, resguardando aos autores de obras literárias, artísticas ou científicas todos os direitos delas decorrentes.
Essa proteção merece especial atenção quanto às obras produzidas no seio das comunidades indígenas, conforme se verá a seguir.
2. DESENVOLVIMENTO.
Os Direitos Autorais são um conjunto de normas legais e prerrogativas morais e patrimoniais (econômicas) sobre as criações do espírito, expressas por quaisquer meios ou fixadas em quaisquer suportes, tangíveis ou intangíveis. São concedidos aos criadores de obras intelectuais e compreendem os direitos de autor e os que lhe são conexos. Eles se inserem na área que algumas correntes doutrinárias chamam de Direitos Intelectuais, embora seja mais conhecida com o nome de Propriedade Intelectual[1].
Para fins legais[2], os direitos autorais são divididos em direitos morais – que asseguram a autoria da criação ao autor da obra intelectual e são intransferíveis e irrenunciáveis – e os direitos patrimoniais – dizem respeito ao uso econômico da obra intelectual e podem ser transferidos ou cedidos a outras pessoas.
O direito em tela, de origem romano-germânica, encontra assento constitucional, conforme o art. 5º, inciso XXVIII, da CR/88, a seguir transcrito:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e á propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; (...).
O art. 1º, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/73, Estatuto do Índio, dispõe que:
Art. 1º. (...)
Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei.
A primeira parte desse dispositivo legal nem precisaria constar do Estatuto do Índio, pois o princípio da isonomia encontra previsão na própria Constituição da República (art. 5º, caput, acima transcrito), não se justificando, neste ponto, qualquer tratamento desigualitário, justamente por não haver discrímen apto para tratar desigualmente os indígenas e os demais cidadãos.
A respeito dos direitos autorais, há lei disciplinando o assunto, qual seja, a lei nº 9.610/1998, sendo que sua detida análise não será feita nesta oportunidade, por extrapolar os propósitos do presente trabalho.
De todo modo, vê-se que o ordenamento jurídico pátrio não trouxe, ainda, regras específicas a tratarem da especial proteção que merecem as criações e manifestações artísticas e culturais indígenas de caráter coletivo e individual.
O vasto patrimônio imaterial das comunidades indígenas, rico em expressões artísticas e culturais, possui rara beleza e, de fato, merece particular proteção. Enquanto o art. 215, §1º, da CR/88[3], garante a proteção às manifestações culturais indígenas, o art. 231, da Carta Constitucional[4], visa à proteção da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas.
Impende mencionar que a Convenção nº 169, da OIT, promulgada pelo Decreto nº 5051, de 19 de abril de 2004, reconheceu as aspirações dos povos indígenas para assunção do controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico.
Nesse contexto, a Fundação Nacional do Índio, por meio da Portaria nº 177/PRES, de 16 de fevereiro de 2006, objetivando proteger o patrimônio material e imaterial relacionados à imagem, criações artísticas e culturais indígenas, disciplinou a matéria nos seguintes termos:
PORTARIA n. 177/PRES, de 16 de fevereiro de 2006
(...)
Art. 1 – A presente Portaria regulamenta o procedimento administrativo de autorização pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI – de entrada de pessoas em terras indígenas interessadas no uso, aquisição e ou cessão de direitos autorais e de direitos de imagem indígenas; e orienta procedimentos afins, com o propósito de respeitar os valores, criações artísticas e outros meios de expressão cultural indígenas, bem como proteger sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
§ 1o. O gozo dos direitos individuais e coletivos de imagem e autoral, pelos seus titulares, independe de atuação, parecer, autorização ou qualquer outra medida administrativa da Fundação Nacional do Índio - FUNAI.
§ 2o. A Fundação Nacional do Índio - FUNAI atuará na defesa dos direitos e interesses indígenas, atendendo às suas atribuições legais.
DIREITOS AUTORAIS INDÍGENAS
Art. 2 – Direitos autorais dos povos indígenas são os direitos morais e patrimoniais sobre as manifestações, reproduções e criações estéticas, artísticas, literárias e científicas; e sobre as interpretações, grafismos e fonogramas de caráter coletivo ou individual, material e imaterial indígenas.
§ 1º. O autor da obra, no caso de direito individual indígena, ou a coletividade, no caso de direito coletivo, detêm a titularidade do direito autoral e decidem sobre a utilização de sua obra, de protege-la contra abusos de terceiros, e de ser sempre reconhecido como criador.
§ 2º. Os direitos patrimoniais sobre as criações artísticas referem-se ao uso econômico das mesmas, podendo ser cedidos ou autorizados gratuitamente, ou mediante remuneração, ou outras condicionantes, de acordo com a Lei N. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
§ 3º. Os direitos morais sobre as criações artísticas são inalienáveis, irrenunciáveis e subsistem independentemente dos direitos patrimoniais.
Art. 3 – As criações indígenas poderão ser utilizadas, mediante anuência dos titulares do direito autoral, para difusão cultural e outras atividades, inclusive as de fins comerciais verificados:
i- o respeito à vontade dos titulares do direito quanto à autorização, veto, ou limites para a utilização de suas obras;
ii- as justas contrapartidas pelo uso de obra indígena, especialmente aquelas desenvolvidas com finalidades comerciais;
iii- a celebração de contrato civil entre o titular ou representante dos titulares do direito autoral coletivo e os demais interessados.
§ Único – No caso da produção criativa individual, o contrato deverá ser celebrado com o titular da obra nos termos da Lei N. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
Art. 4 – A Fundação Nacional do Índio participará das negociações de contratos e autorizações de uso e cessão de direito autoral indígena, no âmbito de sua competência e atendendo aos interesses indígenas, sempre que solicitada.
§ 1o. O registro do patrimônio material e imaterial indígena no órgão nacional competente é recomendável, previamente à autorização e cessão do uso de criações indígenas por outros interessados, mas não impede o gozo dos direitos de autor a qualquer tempo.
§ 2o. Cópia ou exemplar do material coletado nas atividades acompanhadas pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI, desde que consentidos pelos titulares do direito, ficarão à disposição da Coordenação Geral de Documentação da Fundação Nacional do Índio - FUNAI para fins de registro e acompanhamento.
DIREITO DE IMAGEM INDÍGENA
Art. 5 - Direito de imagem indígena constitui direitos morais e patrimoniais do indivíduo ou da coletividade retratados em fotos, filmes, estampas, pinturas, desenhos, esculturas e outras formas de reprodução de imagens que retratam aspectos e peculiaridades culturais indígenas.
§ 1º O direito de imagem é um direito personalíssimo, inalienável e intransferível.
§ 2º O direito sobre as imagens baseadas em manifestações culturais e sociais coletivas dos índios brasileiros pertence à coletividade, grupo ou etnia indígena representada.
§ 3º Quando o uso da imagem de pessoas afetar a moral, os costumes, a ordem social ou a ordem econômica da coletividade, extrapolando a esfera individual, tratar-se-á de direito de imagem coletivo.
§ 4 A captação, uso e reprodução de imagens indígenas dependem de autorização expressa dos titulares do direito de imagem indígena.
Art. 6 – As imagens indígenas poderão ser utilizadas para difusão cultural; nas atividades com fins comerciais; para informação pública; e em pesquisa.
§ Único - Qualquer contrato que regule a relação entre indígenas titulares do direito de imagem e demais interessados deve conter:
i- expressa anuência dos titulares individuais e coletivos do direito sobre a imagem retratada;
ii- vontade dos titulares do direito quanto aos limites e às condições de autorização ou cessão do direito imagem;
iii- garantia do princípio da repartição justa e eqüitativa dos benefícios econômicos advindos da exploração da imagem.
Art. 7 - Atividades de difusão cultural são as que visam a circulação e divulgação da cultura associada à imagem indígena, podendo ter finalidade comercial.
Art. 8 - Atividades com fins comerciais são as que utilizam a imagem indígena, individual ou coletiva, para agregar valor a um determinado produto, serviço, marca ou pessoa jurídica.
Art. 9 – A Fundação Nacional do Índio - FUNAI participará das negociações de contratos e autorizações de captação, uso e reprodução de imagens indígenas, no âmbito de sua competência e atendendo aos interesses indígenas.
§ Único - Todo material coletado, desde que autorizado pelos titulares do direito de imagem e conforme contrato firmado, poderão ficar à disposição do Banco de Imagens da Fundação Nacional do Índio - FUNAI para registro e uso institucional com indicação dos devidos créditos de autoria.
Art. 10 - O uso de imagens indígenas para fins de informação pública é livre e gratuito, respeitados os limites da privacidade, honra e intimidade dos retratados, conforme disposto na Lei N. 9.610,de 19 de fevereiro de 1998.
§ 1º A coleta de materiais de vídeo, foto e áudio para fins jornalísticos atenderá exclusivamente à finalidade proposta e será restrita em sua divulgação a 15 fotos e 05 minutos de gravação de qualquer natureza, sujeita à fiscalização pela Coordenadoria Geral de Assuntos Externos.
§2o. As imagens indígenas coletadas para fins de informação pública não podem ser exploradas comercialmente. (...).
Como não poderia ser diferente, as contrapartidas e recursos advindos dos contratos e indenizações por uso ou cessão do direito de imagem ou direito autoral indígena deverão ser revertidos aos próprios silvícolas titulares do direito ou àquela coletividade.
Lado outro, a FUNAI, a partir da sua própria função institucional, deverá prestar a devida assistência aos índios, a fim de garantir a efetiva proteção ao patrimônio material e imaterial relacionados à imagem, criações artísticas e culturais indígenas, o que encontra disciplina na própria Portaria acima citada.
A aludida Portaria preceitua ser indispensável a autorização expressa da captação, uso e reprodução de imagens indígenas dos titulares do direito de imagem. Para que seja autorizada a concessão de uso de imagens e sons pelas comunidades indígenas, com a assistência da FUNAI, é essencial que restem claras todas as finalidades e os estritos limites do seu uso, inclusive se se tratar de utilização para fins comerciais, o que será importante na ponderação a ser feita pela própria comunidade a respeito da conveniência de divulgar aspectos referentes a direitos de sua titularidade.
Toda a sistemática exposta acima tem o claro intento de conferir a devida proteção ao direito autoral dos indígenas, sendo certo que o seus direitos não podem ser amesquinhados ou relegados a segundo plano, até mesmo porque as peculiaridades das quais se revestem sua cultura, organização social, costumes e tradições merecem proteção ainda maior, de modo a preservar as raízes e origens daquela minoria, conferindo também, a eles, eventual contraprestação.
Convém explicitar que a proteção aos direitos autorais independe de registro em órgão público. Em verdade, trata-se de faculdade do próprio autor, que poderá registrar sua obra, conforme sua natureza, na Biblioteca Nacional, na Escola de Música, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto Nacional do Cinema, ou no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, a teor do que dispõem o art. 19, da lei nº 9.610/98, c/c art. 17, da lei nº 5.988/73.
Isto se deve ao fato de que a obra encontra-se protegida desde à sua criação, embora o seu registro constitua providência importante para fins de figurar como início de prova de autoria.
Por fim, não se pode olvidar que, há muito, a legislação brasileira tipificou a conduta de violação de direito autoral no art. 184, do Código Penal, o que denota, iniludivelmente, a importância que o ordenamento pátrio atribuiu a tal direito, acarretando consequências ao infrator não só no campo civil, mas também conferindo-lhe responsabilidade penal.
3. CONCLUSÃO.
Os direitos autorais integram as políticas públicas voltadas para a economia da cultura dos países modernos, sendo fundamentais para assegurar sua soberania e desenvolvimento[5]. São de grande relevância na sociedade contemporânea, resguardando os direitos dos seus autores, como expressa o próprio texto constitucional.
Os índios e as comunidades indígenas também são detentores deste especial direito – como consectário do próprio princípio da isonomia –, o qual pode repercutir de forma significativa para os silvícolas, na medida em que podem difundir sua cultura, tradições, costumes, conquanto seja necessário resguardá-los de possíveis ingerências externas que possam desvirtuar seus reais interesses ou os rumos de uma eventual reprodução.
Nesse aspecto, a Fundação Nacional do Índio, a partir da sua função institucional, deve conferir a devida assistência aos silvícolas nesses casos, valendo-se de todas as medidas necessárias para resguardar os interesses daquela minoria, tendo editado, para tanto, a Portaria nº 177/PRES/2006.
Isto não afasta a constatação de que a matéria ainda pende de regulamentação legal específica para atender às peculiaridades dos silvícolas, de modo a garantir proteção ainda maior não só à cultura indígena, mas também às culturas populares, às afro-brasileiras e às de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, conforme preceitua o art. 215, §1º, da CR/88.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
- CARDOSO, João Augusto. Breve histórico dos direitos autorais no Brasil e no mundo. 2002. 23 f.
Trabalho acadêmico (Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidad del Museo Social Argentino, UMSA, Buenos Aires, 2002.
- SOUZA FILHO. Carlos Frederico Mares de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 1ª Edição. Editora Juruá, 2004.
- VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. 1ª Edição. Editora Juruá, 2008.
[1] Conceito extraído do sítio do Ministério da Cultura (http://www2.cultura.gov.br/site/2009/10/06/direitos-autorais-4/#more-59999 – consulta realizada aos 15/08/2013).
[2] Art. 22, da lei nº 9.610/98: “Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”.
[3] Art. 215, § 1º, CR/88: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
[4] Art. 231, da CR/88: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
[5] Ministério da Cultura (http://www2.cultura.gov.br/site/2009/10/06/direitos-autorais-4/#more-59999 – consulta realizada aos 15/08/2013)
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cristiano Alves. A proteção ao direito autoral no que tange às obras de propriedade das comunidades indígenas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36332/a-protecao-ao-direito-autoral-no-que-tange-as-obras-de-propriedade-das-comunidades-indigenas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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