O presente estudo vem tentar demonstrar entendimento acerca da posse indígena, a partir da legislação constitucional e ordinária, da sua qualificação como um direito originário (indigenato), do aspecto de tradicionalidade da ocupação, da diferenciação da posse civil e da sua inclusão no rol dos direitos fundamentais.
Em vista disso, é importante verificar o posicionamento do STF sobre a matéria, já que este órgão é a última instância de decisão na seara jurídica.
Como caso paradigmático, enfocar-se-á a decisão judicial sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS). Trata-se de um caso emblemático para a história da luta pelos direitos indígenas em nosso país, seja pela dimensão da área que ocupa, seja pela repercussão internacional que alcançou, ainda pelo envolvimento de entes federados de diversos níveis mas, principalmente, pela influência interpretativa que essa decisão poderá vir a causar.
1 Histórico do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Remonta à data de 1977 o início do procedimento administrativo de delimitação e demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Contudo, em face da não-convergência de interesses políticos, somente em 1993, a FUNAI concluiu os seus trabalhos antropológico-fundiários e reconheceu uma área de 1.678.800 hectares como pertencente aos povos Macuxi, Patamona, Tauperang e Wapichana da Raposa Serra do Sol.[1]
Em continuidade ao procedimento[2], foi expedida uma primeira portaria pelo então Ministro da Justiça, Nélson Jobim, em que, mesmo tendo julgado improcedentes as contestações administrativas dos particulares a essa demarcação, diminuiu-se a área indígena objeto da demarcação. A essa decisão seguiram-se divergências, até que, em 11 de dezembro de 1998, o Ministro da Justiça seguinte, Renan Calheiros, expediu a Portaria MJ n°. 820, confirmando o montante originário da área, previsto pela FUNAI. Em 1999, a demarcação física da Terra Raposa Serra do Sol foi efetuada, restando apenas a homologação presidencial do ato administrativo.
Nada obstante, várias ações judiciais passaram a ser interpostas a fim de anular esse procedimento de demarcação. Dentre elas, ações possessórias, anulatórias, ações populares etc. Muitas delas tiveram seus pedidos liminares aceitos para retirada dos índios dessa terra.
Nessa conjuntura, a Procuradoria Federal (Advocacia-Geral da União), com atribuição sobre a FUNAI, e o Ministério Público Federal lutavam através de uma Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal para o sobrestamento das ações e a suspensão das medidas cautelares, no que foi atendido pelo STF. Posteriormente, em junho de 2006, com o julgamento das Reclamações 2833, 3331 e 3813, houve a avocação de competência pelo STF, de todas as ações acerca da T I. Raposa Serra do Sol.
Ressalta-se que, nesse ínterim, havia uma Reclamação perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos em que se pleiteava a rapidez na conclusão do procedimento de demarcação.
Por fim, foi editada para o processo de demarcação uma nova Portaria, nº 534/2005, do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em substituição à Portaria nº 820, anterior, com a intenção de sanar vícios passados. Em seguida, houve a sua homologação pelo Presidente da República através do Decreto de 15 de abril de 2005.
Nesse contexto, o STF julgou as Reclamações até então interpostas, decidindo pela extinção de todos os processos relativos à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, dado a perda de objeto, ou seja, porque a Portaria n° 820 deixou de existir.
Posteriormente, foi interposta uma ação popular para declaração de nulidade do procedimento administrativo (Pet 3.388). Dessa vez, tendo como objeto a portaria MJ nº 534/2005 e o decreto presidencial homologatório. O seu julgamento declarou a constitucionalidade do processo administrativo de demarcação da TIRSS e também inseriu, no dispositivo, salvaguardas institucionais para a demarcação.[3] Trata-se do processo cujo julgamento final decidiu o destino da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Esse processo teve seu julgamento iniciado em agosto de 2008 e a sua conclusão somente se deu em março de 2009. Já a publicação do seu acórdão ocorreu em setembro de 2009. O processo é composto por 55 (cinquenta e cinco) volumes e o seu acórdão possui mais de 700 (setecentas) páginas. Destaca-se, dentre os vários pontos do presente julgamento, a ordem de imediata extrusão dos não índios da TIRSS, antes mesmo que fosse publicado o acórdão (setembro de 2009) ou que se desse o trânsito em julgado da decisão. Trata-se de um comando novo, posto que antecipa os efeitos da decisão. Por fim, anota-se que a extrusão terminou em junho de 2009. (HOFF, 2009)
Do exame dessa decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, vê-se ilustrada a aplicação, ao caso concreto, das normas constitucionais e dos posicionamentos protetivos do direito dos índios à posse de suas terras.
Porém, há alguns pontos no acórdão que, a princípio, não beneficiam os interesses dos índios. Cita-se, para fins de ilustração, a condicionante que impede a revisão de demarcação de terra indígena efetuada após a CF 88. Nesse caso, surgem questionamentos se essa determinação se refere apenas ao caso da TIRSS ou a todas as terras indígenas (esse ponto será melhor analisado posteriormente).
Contudo, mesmo com esses pontos obscuros a Advocacia-Geral da União (através de suas Procuradorias), não interpôs embargos de declaração. A possível razão para isso, poderia ser o fato de que embora esses embargos pudessem trazer esclarecimentos, também poderia vir somado, alguns prejuízos. Pois, o STF tanto poderia dizer que não tinha efeito abrangente como poderia deixar expresso que a decisão referia-se a todas as terras indígena. Então, optou-se por se deixar que a Consultoria-geral da União (órgão da AGU) aclarasse e estabelecesse os rumos a ser tomados em outros casos, sem desrespeitar a decisão judicial e ouvindo os órgãos interessados. (HOFF, 2009)
A finalidade maior deste capítulo é realizar um comparativo entre os argumentos defendidos pela doutrina com o posicionamento do STF, a partir do caso emblemático da TIRSS. Contudo, é importante analisar antes, os efeitos das 19 (dezenove condicionantes), haja vista sua imbricação com o caso.
2 As dezenove condicionantes aplicadas para o caso Raposa Serra do Sol e suas implicações para o trato futuro dos direitos dos índios à terra
O julgamento final do processo judicial acerca da Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi amplamente favorável aos interesses indígenas, posto que indeferiu o pleito de nulidade do processo administrativo sobre essa área e reconheceu a aplicabilidade de diversos dispositivos indigenistas. Contudo, também subordinou a constitucionalidade desse processo administrativo, ao seguimento de algumas condicionantes.
Tais parâmetros obrigatórios, impostos pelo STF, a serem obedecidos pelo processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ficaram conhecidos como “as 19 (dezenove) condicionantes”, ora descritos resumidamente[4]:
1 O usufruto das riquezas tas terras indígenas poderá ser relativizado sempre que houver interesse relevante da União;
2 O usufruto indígena não abrange o aproveitamento dos recursos hídricos e potenciais energéticos;
3 O usufruto indígena não alcança as riquezas minerais;
4 O usufruto indígena não abrange a garimpagem e a faiscação;
5 O usufruto indígena não se sobrepõe à defesa nacional, à instalação de postos militares e a expansão estratégica da malha viária;
6 A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal, na área indígena, se dará independente de autorização da FUNAI ou da comunidade indígena;
7 O usufruto indígena não impede a construção de vias de comunicação e redes de transporte e postos para serviço público da União;
Atribuem ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, os três itens a seguir:
8 A fiscalização do usufruto dos índios nas suas terras que coincidam com ‘áreas de conservação’;
9 A administração dessas “unidades de conservação”, dentro de terras indígenas;
10 A estipulação da forma de visita de não-índios em “unidades de conservação”, dentro de terras indígenas;
11 Deve ser admitido o ingresso de não-índios na terra indígena, com autorização prévia da FUNAI;
12 A comunidade indígena não poderá cobrar pelo ingresso de não-índios em suas terras;
13 A comunidade indígena também não poderá cobrar por instalação de redes elétricas ou construção de vias, públicas, em suas terras;
14 As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou outro negócio que restrinja o usufruto dos índios;
15 É vedada, a qualquer pessoa estranha à comunidade indígena, a prática de pesca, caça, coleta de frutos, agropecuária ou extrativa;
16 O patrimônio indígena goza de imunidade tributária;
17 É vedada a ampliação de área indígena já demarcada;
18 O direito dos índios sobre suas terras é imprescritível, inalienável e indisponível
19 É assegurada a participação dos entes federados na demarcação das terras indígenas. (BRASIL, 2009, p.19)
No presente estudo, procurar-se-á entender as condicionantes apenas de uma forma geral, sem se debruçar sobre a interpretação de cada uma, isoladamente. Nesse contexto, pelo caso prático que gerou, será tomada, como exemplo, a condicionante número 17, qual seja, a que estabelece a vedação da ampliação de área indígena já demarcada.
A estipulação dessas 19 condicionantes gerou certa polêmica quanto a sua repercussão fora do processo. Destarte, começou-se a especular sobre a possibilidade de invocá-las em outros processos referentes a outras terras indígenas.
A consequência de se acatar a obrigatoriedade dessas condicionantes em outras terras indígenas seria que aquelas passariam a ter força normativa perante toda a Ordem Jurídica, inclusive revogando leis anteriores que lhe fossem contrárias.
Nessa linha de pensamento, foi interposta pela Agropecuária Fazenda Brasil Ltda., a Reclamação constitucional nº 8070 perante o STF, a fim de declarar liminarmente a nulidade da portaria do presidente da FUNAI que constituía grupo técnico para a revisão dos limites da Terra Indígena Wawi. A autora fundava o seu pleito na decisão do STF, ora debatida, sobre a ação popular na TIRSS, segundo a qual, a condicionante n.° 17 proibia a revisão de área indígena já demarcada. Contudo, em julgamento liminar no dia 16 de abril de 2009, o ministro Carlos Ayres Brito não aceitou o presente argumento, como se vislumbra do trecho de seu voto:
Feito esse aligeirado relato da causa, passo à decisão. Fazendo-o, pontuo, de saída, não estarem presentes os requisitos para a concessão da liminar. É que há dúvida quanto ao próprio cabimento desta reclamação, uma vez que ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante. (grifo proposital) (BRASIL, 2009, p. 03)
Concorda-se, integralmente, com o referido posicionamento do STF. A ação popular é um “remédio constitucional”, com fins e rito próprio[5], que não se confunde com outros instrumentos jurídicos. Extrai-se do inciso LXXIII da Constituição Federal:
Art. 5°, LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custos judiciais e de ônus da sucumbência;
Assim, esse remédio constitucional visa facilitar o acesso jurídico do cidadão para intervir nos destinos do seu país e exercer a soberania popular. Refere-se a um meio processual para discussão daquelas questões de Estado, tais como a fiscalização do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente natural e cultural, dentre outros.
Sobre essa garantia fundamental, dispõe Hely Lopes Meirelles (1997, p. 87) que trata-se de um remédio constitucional à disposição de qualquer cidadão, individual ou coletivamente, para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos – ou a estes equiparados- ilegais e lesivos do patrimônio federal, estadual e municipal ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas com dinheiros públicos.
Quanto aos efeitos da ação popular, esses devem ser concedidos sempre se levando em consideração os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada. No que toca aos limites objetivos da coisa julgada, referem-se à parte específica da sentença que fica acobertada pela intangibilidade e não pode vir a ser modificada em outros processos, conforme ensina o professor Alexandre Freitas Câmara (2006, p. 490): “Trata-se da verificação do alcance da imutabilidade e da indiscutibilidade da sentença transitada em julgado, vista em seu aspecto objetivo. Em outras palavras, o que se busca aqui é saber o que transitou em julgado.”
Assim, a identificação dos limites objetivos da coisa julgada se faz importante para saber o que não pode sofrer nova revisão. Isso foi definido pelo Código de Processo Civil (CPC), por eliminação, ao definir o que outro juiz pode decidir novamente em novo processo:
Art. 469 - Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
Sobre esse artigo de lei, comentam Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior (2006, p. 612):
A sentença é composta por três partes distintas: relatório, fundamentação e dispositivo (CPC 458). Somente na parte dispositiva da sentença, na qual o juiz decide efetivamente o pedido (lide), proferindo um comando que deve ser obedecido pelas partes, é alcançada pela coisa julgada material (autoridade da coisa julgada).
Nesses termos, importa informar que os limites objetivos da coisa julgada incem sobre o dispositivo da decisão, ou seja, na parte da decisão que efetivamente decide o pedido do autor e, por conseguinte, resolve a lide.
No caso TIRSS, as 19 condicionantes estão insertas no dispositivo do acórdão. Portanto, entende-se, a um primeiro momento, que essas foram abrangidas pelos limites objetivos da coisa julgada. Tal fato significa as condicionantes estão insertas no núcleo da decisão que não pode ser alterado dentro desse processo.
Contudo, é imperioso anotar que essa imutabilidade atingirá apenas aqueles que foram “partes” na ação popular sobre a TIRSS. Para entender essa circunscrição dos efeitos, é de se perquirir pelos limites subjetivos da coisa julgada, a fim de saber sobre quais sujeitos essas condicionantes são aplicáveis e imutáveis.
Regra geral, os limites subjetivos da coisa julgada referem-se aos sujeitos da ação. Assim, a decisão somente poderá vincular aquelas pessoas que fizeram parte da relação jurídica originária, ou seja, aquelas pessoas que foram citadas e tiveram a oportunidade para manifestar-se no processo.[6]
Contudo, contemporaneamente, fala-se no arreferecimento da teoria dos limites subjetivos da coisa julgada em face das ações que, por sua natureza, tem efeito erga omnes, tal como a presente ação popular. Nessa classe de petitum, a força da decisão obriga até mesmo quem não foi citado para participar do feito.
Nesse sentido, orientam os professores Antônio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover (CINTRA, 2001, p.310):
O dogma da limitação subjetiva da coisa julgada às partes vem sendo rompida, no processo moderno, nas ações coletivas ajuizadas em defesa de interesses metaindividuais (ambiente, consumidor, etc.). No Brasil, após a coisa julgada da ação popular ( art. 18 da lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965), a Lei da Ação Civil Pública ( Lei n. 7347, de 24 de julho de 1985) e, por último, o Código de Defesa do Consumidor ( Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990) vieram ampliar os limites subjetivos da coisa julgada, estruturando-os de acordo com o resultado do processo, ou seja, secundum eventum litis (art.103, CDC, aplicável à Ação Civil Pública por força do novo art. 21, desta, introduzido pelo Código). Assim, conforme o caso, a autoridade da sentença poderá alcançar a todos, para beneficiá-los ou prejudicá-los – salvo no caso de improcedência por insuficiência de provas -, ou ser utilizada apenas em favor dos membros da classe, sem possibilidade de prejudicar suas pretensões individuais.
Em relação a esse ponto, por se tratar de ação popular, seus efeitos são erga omnes. Assim, existe a possibilidade da ação popular atingir outras pessoas que não foram citadas no processo. Exemplifica-se como nos casos em que um sujeito pede a anulação de um ato. Essa anulação atingirá a todos que eram afetados pelo “mesmo ato jurídico”, mesmo que não tenham sido citados no processo. Contudo, essa possibilidade deve ser entendida com limitações.
Portanto, esse alargamento atinge apenas aquelas pessoas que fizeram parte da mesma relação de fato ou jurídica, que os sujeitos originários do processo. No caso da presente ação popular, seria o caso daqueles outros proprietários[7] na TIRSS, que eventualmente não fizeram parte do processo. Essas pessoas poderiam invocar a aplicabilidade da aludida decisão.
Dessa feita, para a decisão fazer efeito em pessoas estranhas ao contraditório, é imperioso que todos estejam jungidos ao mesmo objeto que fora discutido no processo. Assim, não se admite que a decisão de uma ação se torne norma para outros casos em que envolvam pessoas sem nenhum vínculo jurídico e refiram-se a bens da vida totalmente diversos.
Logo, o que se admite é que a decisão da ação popular ora debatida abranja a todos os proprietários atingidos pela portaria demarcatória da TIRSS, mesmo que não participantes do contraditório. Isso porque eles têm uma relação jurídica[8] em comum. Contudo, não obrigará aos envolvidos em outras áreas indígenas, não discutidas no processo.
Pelo exposto, no que tange à teoria dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada, a decisão da ação popular não tem a capacidade de vincular os sujeitos da Reclamação n° 8070. Portanto, não se pode alegar que o tema da revisão de demarcação foi proibido em outra ação. Da mesma sorte, essa ação popular não pode ser invocada como paradigma para qualquer outra ação judicial que incida em terra indígena diversa, posto que seus limites objetivos e subjetivos só dizem respeito ao caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Agrega-se, nesse ínterim, que a aludida ação popular não poderá ser utilizada para estabelecer regras gerais para outras relações jurídicas, ou seja, em diferentes terras indígenas, posto não ter sido esse o objeto da ação popular em exame.
Hely Lopes Meirelles (1986, p. 369) já orientava sobre o perigo e impossibilidade de se utilizar a ação popular para outros fins diversos do previsto constitucionalmente: “Hoje é ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência que não cabe ação popular para invalidar lei em tese, ou seja, a norma geral, abstrata, que apenas estabelece regras de conduta para a sua aplicação.”
Observa-se que o motivo do raciocínio do autor é a impossibilidade de se usar a ação popular como uma forma de se estabelecer normas genéricas, que vinculem, indistintamente, pessoas de diferentes relações jurídicas. Assim, onde existem as mesmas razões também deve ser aplicado o mesmo raciocínio, o que só vem a confirmar a linha de raciocínio do STF, na Reclamação 8070, que afirma que o tipo de processo que admite a emanação de tais regras gerais seriam aqueles de controle de constitucionalidade abstrato.
Assim, nas ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade, (controle abstrato), a própria lei prevê a vinculação dos demais Poderes e dos particulares, ao comando das declarações de constitucionalidade. É o que se verifica da Constituição Federal:
Art. 102 [...], §2° As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações direitas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Essa característica é própria de um controle abstrato ou por via de ação, que obviamente não se confunde com o ocorrido no caso em exame, que foi trazido a juízo por meio de uma ação popular.
Nesses termos, observa-se que as dezenove condicionantes não resultou de um controle de constitucionalidade “abstrato”[9], mas um controle de constitucionalidade “incidental”[10] dentro de uma ação popular.
Da apreciação da presente ação popular (Pet. 3388), verifica-se que se julgou procedente em parte o pedido de inconstitucionalidade da portaria do Ministro da Justiça que demarca a TIRSS. Assim, prevaleceu a constitucionalidade da portaria demarcatória, desde que condicionada ao cumprimento de 19 (dezenove) requisitos. Transcrever-se-á uma parte do dispositivo:
[...] julgou-a o Tribunal parcialmente procedente, nos termos do voto do Relator, reajustado segundo as observações constantes do voto do Senhor Ministro Menezes Direito, declarando constitucional a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e determinando que sejam observadas as seguintes condições[...] (BRASIL, 2009, p. 19)
Dessa feita, é preciso deixar claro, desde o início, que o objeto da ação popular era a declaração de inconstitucionalidade da portaria demarcatória, especificamente, da TIRSS. Não se referia, portanto, a outras terras indígenas. Não se trata de apego às formas ou ao nome dado à ação. Acontece que o objeto da ação popular invocada versava especificamente sobre a TIRSS. Portanto, não há como estender os efeitos de uma terra indígena para outras que sequer foram estudadas.
A fim de sanar de vez qualquer dúvida decorrente dos meandros do controle de constitucionalidade e a eficácia erga omnes, passa-se a tecer alguns comentários para reforçar a impossibilidade de controle de constitucionalidade através de ação popular.
Conforme entendimento legislativo e doutrinário pacífico, o controle de constitucionalidade, por via de exceção, é caracterizado por sua eficácia inter partes.[11] Assim a regra geral seria que só aquelas pessoas que tiveram oportunidade de participar do contraditório seria atingidas pela decisão. Nada obstante, as condicionantes de constitucionalidade foram declaradas em sede de ação popular, que, por sua natureza, teria eficácia erga omnes. Portanto, haverá que se investigar qual o efeito (inter partes ou erga omnes), que prevalecerá nos casos em que o controle de constitucionalidade incidental for realizado em sede de ação popular. Bem com há que se investigar quem são as pessoas atingidas se os efeitos forem erga omnes.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou a respeito da impossibilidade de se conseguir efeito erga omnes para o controle de constitucionalidade, usando para isso a via da “ação civil pública”.[12]
Nesse contexto, entende o STF (1996, p. 34) que não se pode querer conferir eficácia erga omnes a um controle incidental, utilizando-se, para isso, do artifício de veicular a pretensão por via de ação civil pública. Haveria aí uma desobediência à competência, legitimidade e uma série de requisitos do rito próprio da ação direta de inconstitucionalidade.[13]
Contudo, o STF excepciona os casos em que o controle de constitucionalidade, em ação civil pública, postula “direitos individuais homogêneos.” Nesses casos, o STF entende que os efeitos erga omnes abrangerão somente os participantes da “relação jurídica”, ainda que não citados no processo. Assim, não haveria extensão dos efeitos para as pessoas que não fizessem parte da relação jurídica. Citaremos os comentários de Alexandre de Moraes (2006, p. 567), a esse entendimento do STF:
Em conclusão, o que se pretende vedar é a utilização da ação civil pública como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, de forma a retirar do Supremo Tribunal Federal o controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos federais e estaduais em face da Constituição Federal. Essa vedação aplica-se quando os efeitos da decisão da ação civil pública forem erga omnes, independente de tratar-se de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Por outro lado, não haverá qualquer vedação à declaração incidental de inconstitucionalidade (controle difuso) em sede de ação civil pública, quando conforme salientado pelo Pretório Excelso. 'tratar-se de ação ajuizada, entre partes contratantes, na persecução de bem jurídico concreto, individual e perfeitamente definido, de ordem patrimonial, objetivo que jamais poderia ser alcançado pelo reclamado em sede de controle in abstracto de ato normativo'.
Assim, somente quando se tratar de direitos individuais homogêneos, será possível que pessoas que não tenham sido citadas na ação popular, mas que sejam titulares da mesma relação jurídica, sejam atingidas pelo controle de constitucionalidade.
Para fins de diferenciação entre direitos individuais homogêneos, direitos coletivos e direitos difusos, cita-se o conceito legal trazido pela Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Art. 81 [...] I- interesses ou direitos difusos, assim entendidos para os efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II- interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III- interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Kazuo Watanabe (GRINOVER, 1999, p.729) resume com muita clareza o que vem a ser direitos individuais homogêneos: “[...] Individuais em sua essência, sendo coletivos apenas na forma em que são tutelados”.
Logo, tal abrangência não é irrestrita, pois esses efeitos só irradiarão aquelas pessoas que tenham direitos individuais e divisíveis, contudo decorrentes de uma origem em comum.
Portanto, entende-se que os direitos dos portadores de títulos de propriedade sobre a TIRSS configuram-se como direitos individuais homogêneos, haja vista possuírem todas as características dessa classe. Assim, são individuais porque estão sobre a titularidade de cada um dos proprietários, já que cada qual se julga dono uma gleba determinada. São divisíveis porque podem ser protegidos por cada qual sem necessária intervenção dos demais. E ainda estão ligados por uma relação em comum, qual seja, possuírem títulos dominiais na TIRSS.
Para que se configurem os direitos individuais homogêneos, é preciso haver uma relação jurídica em comum que ligue os integrantes de um dos polos da demanda. Assim, o fato de possuírem títulos de propriedade sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, faz com que a sentença atinja apenas a um grupo determinado, o que configura uma relação de direitos individuais homogêneos. Portanto, não há como proprietários de outras terras indígenas invocarem a obrigatoriedade de aplicação das dezenove condicionantes em suas áreas, pois os proprietários de outras terras indígenas não possuem direitos individuais homogêneos em comum com os proprietários da TIRSS.
Portanto, no caso dos direitos dos índios, direito fundamental gravado da maior importância constitucional, não se pode entender que o Supremo pretende abranger etnias, não citadas no processo, com as condicionantes presentes no dispositivo de outro feito judicial.
Outros argumentos somam-se para a defesa de que o dispositivo da ação popular TIRSS obriga apenas as partes dessa relação jurídica. Assim, em nenhum momento na ação popular, o STF manifestou-se de forma expressa pela extensão dos efeitos às demais causas indígenas. Tal fato verifica-se no dispositivo do acórdão, antes de iniciar o elenco das condicionantes: “[...] Segundo as observações constantes do voto do Senhor Ministro Menezes Direito, declarou constitucional a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e determinou que fossem seguidas as seguintes condições: [...]” (grifo proposital) (BRASIL, 2009, p. 19)
Assim, diferente é a situação de quem não possui nenhuma relação jurídica com os sujeitos originários do processo. Essas pessoas não são alcançadas pela decisão judicial de outro caso. Logo, no caso da retromencionada Reclamação n° 8070, que trata da revisão dos limites da Terra Indígena Wawi, verifica-se que a presente terra não está mencionada no dispositivo da ação popular TIRSS (Pet 3388).
Agrega a esse entendimento, a apreciação do contexto das demais condicionantes. Destarte, as condicionantes 8, 9 e 10 atribuem ao Instituto Chico Mendes, nos casos em que houver “unidades de conservação” dentro de terra indígena, a fiscalização do usufruto indígena, a administração e a regulação das visitas de não-índios.
Destarte, observa-se que as condicionantes 8, 9 e 10 não têm um cunho genérico ou de aplicação abstrata a todas as terras indígenas do território nacional, porque o conteúdo delas é sobremaneira específico e direcionado somente para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Assim, quando o dispositivo da sentença atribui ao instituto Chico Mendes uma dada missão, a conclusão é de que as condicionantes tratavam somente das áreas daquela região objeto da ação popular, pois seria fisicamente impossível se esperar que tal instituto cobrisse todo o país. Pelo delineado, a mesma conclusão deve ser estendida para as demais condicionantes, ou seja, as condicionantes foram pensadas só para o processo em que foram exaradas. A sua eficácia fora do processo nunca poderá ser vinculante, mas eventualmente interpretativa.
Agrega-se que, nesse caso, uma interpretação extensiva das condicionantes, além de ir contra a realidade dos fatos, vai contra todas as regras primárias do Direito. Desse modo, não se deve usar uma interpretação extensiva para as hipóteses de diminuição dos direitos de outrem, máxime quando se trata de um direito fundamental, bem como de um grupo étnico que possui toda uma disciplina jurídica no seio constitucional.
Assim, o julgamento da presente ação popular sobre a TIRSS é um valioso vetor interpretativo para a legislação indigenista. Contudo, não tem efeito vinculante, posto que essa força só poderia se extrair de uma ação de controle de constitucionalidade abstrato ou da expedição de uma súmula vinculante. Assim, só com o decorrer do tempo, saber-se-á se o STF vai consagrar o entendimento desse julgamento para todos os casos semelhantes.
Todavia, informa-se que, após ser exarada a retromencionada decisão do Min. Carlos Brito na Reclamação 8070, que entendia pela inadequação da ação popular como forma de controle abstrato de normas, o peticionante requereu desistência da Reclamação, no que foi homologado pelo STF. Atualmente, o presente processo encontra-se extinto, com trânsito em julgado e arquivado. (BRASIL, 2009). Essa postura reflete a coerência com o pensamento jurídico defendido por este estudo.
Pelo exposto, infere-se o entendimento adotado por este trabalho, qual seja, as condicionantes impostas à demarcação da Terra Raposa Serra do Sol não se estendem à demarcação das demais terras ou nos demais processos judiciais estranhos ao caso TIRSS. Esse posicionamento foi extraído do cotejo das duas decisões do STF, qual seja, a ação popular acerca do caso Raposa Serra do Sol e a Reclamação que a invocou como paradigma
3 Fundamentos da decisão do caso Raposa Serra do Sol
O Supremo Tribunal Federal resguardou, nesse julgamento, as disposições constitucionais definidoras dos direitos dos índios. Exercendo a função de guardião da Constituição, seria de admirar que se esquivasse de dar cumprimento efetivo às determinações constitucionais. Assim, esse órgão procurou assegurar o direito territorial dos indígenas, considerando, absolutamente, a especialidade desse direito, sem enveredar a sua interpretação pelos elementos relativos à posse e propriedade estabelecidos no direito privado. Indiscutivelmente, esse acórdão do Supremo Tribunal Federal influenciará, em muitos aspectos, a interpretação das normas constitucionais definidoras dos direitos territoriais dos índios, para que tais direitos sejam respeitados e assegurados com plenitude.
Dessa forma, serão trazidos alguns fundamentos da presente decisão do Supremo Tribunal Federal que corroboram com alguns entendimentos defendidos pela boa doutrina.
3.1 O significado do substantivo “índios” na Constituição Federal
O Supremo Tribunal Federal trouxe o seu entendimento sobre aqueles que podem ser considerados como indígenas. Essa definição é importante para delimitar quais são as pessoas detentoras de uma proteção constitucional especial.
O substantivo 'índios' é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intraétnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. (BRASIL, 2009, p. 02)
Consoante o Supremo, não é obrigatório que o índio viva isolado do convívio da sociedade para ter os seus direitos especiais protegidos. Logo, também poderão ser consideradas indígenas, para fins de salvaguarda constitucional, aquelas pessoas índias que estão em contato com o restante da sociedade.
Este trabalho lembra, contudo, que os índios devem possuir uma ascendência pré-colombiana, manutenção de uma cultura peculiar, reconheçam-se como índios e sejam chancelados pela comunidade indígena, como tal.
Essa pacificação acerca do conceito de índio, pelo Supremo, vem a trazer luzes aos inúmeros questionamentos judiciais em torno da verdadeira etnicidade de comunidades indígenas. Observamos, no dia-a-dia forense, que o Judiciário[14] tem atravancado inúmeros processos administrativos de demarcação de terras. O argumento utilizado é que a discussão sobre a etnicidade de determinada comunidade indígena foi jurisdicionalizada, portanto deve-se aguardar até que, um dia, o Judiciário venha a decidir a questão para daí reiniciar o processo administrativo.[15]
Nota-se aí situação extrema, desarrazoada e inaceitável em que o Judiciário tem se imiscuído no mérito do ato administrativo. Ora, o Judiciário é um órgão, via de regra, afeto a dirimir questões litigiosas e definir a quem pertence o direito, não se concebe que exacerbe o seu papel de controle da Administração Pública e passe a exercer, com exclusividade, as atividades previstas por lei para o Executivo.
Assim, à Fundação Nacional do Índio foi destinada legalmente a realização do processo de demarcação de terras, com o consequente estudo antropológico para aferir a etnicidade de determinado grupo.[16] Portanto, nos casos em que o Judiciário se arvora como competente para definir a natureza indígena de uma pessoa, em antecipação à FUNAI, observa-se notável abuso de poder e avocação indevida de atribuições constitucionais.
3.2 A demarcação de terras indígenas como capítulo avançado do constitucionalismo fraternal
Com este parágrafo, o Supremo Tribunal Federal comprovou a sua adesão à concepção multiculturalista da CF 88, que trata, em linhas gerais, de uma ideia de promoção de todos os grupos étnicos. Aqui não prevalece a adoção do pensamento de uma só casta cultural, mas uma salvaguarda de todos.
Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. (BRASIL, 2009, p. 04)
Não obstante, por muito tempo predominou o modelo etnocêntrico no tratamento com os índios. Por essa ideologia, os índios mereceriam um tratamento distinto até serem incorporados pela sociedade civil e conhecido os costumes desta. A ideia era, aos poucos, restringir os direitos especiais dos indígenas, à medida dessa adaptação. (STRAUSS, 1952, p. 87)
Com o avanço dos direitos humanos a partir da 2º Guerra Mundial e, no Brasil, notadamente após o advento da Constituição Federal de 1988, a teoria pluriétnica passou a ganhar espaço. Nesse modelo, defende-se a coexistência dos grupos e o respeito às suas culturas originárias. Já não mais se busca uma uniformização dos elementos humanos presentes num só espaço, antes se tenta assegurar a sua pacífica convivência. Para conseguir essa igualdade material entre povos com passado e condições tão diversas, é indispensável que se dedique uma maior proteção legal aos grupos hipossuficientes. Assim, será possível que os mais espoliados historicamente venham a possuir no presente, meios de sobrevida e dignidade. (SANTILLI, 2009)
No que pertine às comunidades indígenas, o seu direito maior consiste em garantir a posse das terras que ocupam tradicionalmente. Só com a garantia desse direito fundamental, pretender-se-á a efetivação dos seus demais direitos.
3.3 Direitos “originários”
Constata-se que o Supremo tribunal Federal continua seguindo a sua linha de pensamento, segundo a qual reconhece o fundamento da posse indígena no instituto do indigenato, e não no Direito Civil comum.
Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se torna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de 'originários', a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como 'nulos e extintos' (§ 6º do art. 231 da CF). (BRASIL, 2009, p.05)
O direito indígena à posse de suas terras é considerado pela Constituição como um direito originário.[17] Essa relação é fundada no instituto do indigenato que é o manancial primário e congênito dessa posse territorial. A noção de indigenato tem base constitucional, daí a sua aplicação incondicional.[18]
No indigenato, vislumbra-se um instituto jurídico que antecede a ordem jurídica nacional. A sua concepção alimenta-se de uma noção do justo, ao atribuir a cada um aquilo que lhe pertence desde as mais remotas datas.
Resta preclaro que a relação do índio com a terra é inaugural a sua própria existência, já que foram congenitamente apropriadas. Dessa feita, as terras indígenas foram destinadas aos diversos grupos étnicos, em razão da incidência de direito originário, ou seja, uma prerrogativa anterior e prevalecente a toda outra que, por ventura, possa-se ter constituído sobre o território dos índios. Portanto, na área que foi ocupada por particulares, estaria implícito o resguardo das terras indígenas, que são seus naturais e primeiros donos.
Não se perquire aqui o título registrado para legitimar a propriedade nem se investiga a posse por meio da natureza da utilização da terra, muito menos, espera-se a sua demarcação, para o início deste direito. Ao contrário, parte da concepção geral de que, nos primórdios, se determinada terra já era ocupada pelos índios, então esta lhe pertence. Assim, tornam-se nulos e inexistentes os registros civis em nome de não-índios, pois muitos deles foram conseguidos por meio de violência, quer seja física, quer seja moral.
3.4 O conteúdo positivo do ato de demarcação das terras indígenas
O Supremo Tribunal Federal entende que, para a demarcação das terras indígenas, é preciso respeitar vários marcos, quais sejam, temporalidade, tradicionalidade, finalidade e proporcionalidade, a saber:
11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse esteja coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das 'fazendas' situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da 'Raposa Serra do Sol'. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as 'imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar' e ainda aquelas que se revelarem 'necessárias à reprodução física e cultural' de cada qual das comunidades étnico-indígenas, 'segundo seus usos, costumes e tradições' (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra Indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras 'são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis' (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado 'princípio da proporcionalidade'. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado 'princípio da proporcionalidade', quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. (BRASIL, 2009, p.05)
O acórdão considera como marco temporal a data da promulgação da CF 88. Assim, somente as terras que, nessa época, eram habitadas pelos índios poderão ser demarcadas. Abre-se exceção para os casos em que os índios foram impedidos, por terceiros, de entrar na área, [19]pois o fato de os índios terem sido expulsos de sua terra quer seja por ato de autoridade, quer seja por ação dos particulares não desconfigura a habitualidade e permanência de sua posse, pois se verifica que o fator violência foi empregado em substituição da variável vontade.
Quando o STF estabelece o marco da tradicionalidade, assim como estudado no Capítulo 3, refere-se a um tempo razoável de ocupação da terra, pois há que haver uma certa ancestralidade e ligação com o passado que justifique a demarcação em um dado local. Contudo, não se busca ir até o fim da árvore genealógica de determinada comunidade indígena ou verificar a posse em dada terra desde à época do descobrimento do Brasil, posto que é próprio da cultura indígena a sua natureza nômade.[20]
Assim, esse marco deve ser interpretado diretamente com o marco da proporcionalidade. Portanto, quando a Constituição fala que as terras tradicionalmente[21] ocupadas serão de posse permanente dos índios, não se remete apenas a requisitos temporais para que se legitime a posse indígena. Ao reverso, uma vez verificado que a terra é ocupada nos moldes tradicionais da cultura indígena, lança uma garantia para o futuro[22], de forma a consagrar para frente o direito dos índios sobre as terras que habitam.
Assim, para que a terra indígena se considere tradicionalmente ocupada, não se procura saber somente a quantidade de anos que a população habita a gleba. Deveras, o que se investiga é se os índios empregam a tradição de seus antepassados e de seus costumes peculiares na ocupação da terra e na inter-relação com seus elementos vivos.
A destinação da terra para a prática de atividade produtiva também é outro fator que caracteriza a posse indígena. Então, localiza-se o marco da finalidade, haja vista que é da cultura popular aborígine uma destinação útil do seu ambiente, quer seja na moradia, quer seja na extração dos recursos, ainda que não seja nos moldes capitalistas atuais.
Portanto, o real alcance do conceito da posse indígena tem o afã de salvaguardar a subsistência física e cultural do índio. Isso é verificado pela busca das suas atividades de subsistência, bem como pelas práticas das atividades religiosas, lúdicas e recreativas pelos primitivos. O acórdão ainda faz algumas considerações sobre a diferença da posse indígena para a civil e a legitimidade das normas constitucionais.
Assim, entende-se que a posse civil é aferida consoante o uso econômico que se dá ao bem da vida, enquanto a posse indígena é verificada quando os índios a utilizam de acordo com suas tradições, como já faziam os seus antepassados naquela área.[23]
A Constituição de 1988, art. 20, XI, proclama que as terras ocupadas tradicionalmente pelos índios são de propriedade da União. Agrega-se, entretanto, que essas terras indígenas destinam-se à posse permanente e ao usufruto exclusivo da Comunidade Indígena (§ 2° do art. 231 da CF e art. 22 da Lei n 6.001/73). Consequência direta dessas máximas é que as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis (art. 231, § 4º, CF); e a impossibilidade constitucional de remoção dos índios do seu quinhão (art. 231, § 5º, CF).
Observa-se, outrossim, a característica da autoaplicabilidade das normas constitucionais atinentes ao direito indígena. Tal eficácia decorre da força cogente desse tipo de regras e, principalmente, conforme se defende neste estudo, por se tratar de uma característica inata de todos direitos fundamentais.
Para a regularização da terra indígena, existe um processo administrativo realizado pela Fundação Nacional do Índio que visa à delimitação e demarcação dessas terras. Todavia, a proteção da posse das terras habitadas pelos índios independe de que já tenha sido concluído esse processo, já que a natureza deste não é constitutiva de uma situação nova, antes é declaratória de um direito pré-existente. Dessa feita, é possível, desde já, exigir administrativa e judicialmente o implemento de sua proteção e resguardo jurídico.[24]
3.5 O falso antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento
Nesse ponto, cabe fazer uma aproximação entre a defesa dos interesses indígenas e a busca do desenvolvimento econômico, para frisar a indissociável aplicação do princípio da proporcionalidade a toda causa indígena. Esse standart preconiza uma aplicação razoável do direito ao caso concreto, medindo a relação custo-benefício e cotejando entre os fins e os meios da decisão ao caso concreto.[25]
Igualmente, na qualidade de direito fundamental[26] que é a posse indígena, por vezes, entra em conflito aparente com outros direitos fundamentais, tais como, a propriedade e o desenvolvimento econômico. Nessas situações, vem se estabelecer a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade, para garantir uma solução menos egoística e mais condizente com o interesse público e a dignidade da pessoa humana. Passa-se a aferir o entendimento do STF:
Ao Poder Público de todas as dimensões federativas, o que incumbe não é subestimar e, muito menos, hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de 'desenvolvimento nacional' tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. (BRASIL, 2009, p.04)
Logo, entende o Supremo que o desenvolvimento econômico não pode ser usado como desculpa para ignorar a preservação da riqueza cultural das minorias. A preservação de um grupo étnico equivale à própria salvaguarda do patrimônio humano nacional, sem o qual não se conseguiria um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Desprezar as garantias constitucionais à posse dos índios sobre suas terras deslindaria graves riscos à formação do povo brasileiro, haja vista a possibilidade de comprometimento da diversidade cultural. Ademais, admitir esse comportamento poderia abrir perigoso precedente contrário à garantia das demais minorias.
Logo, de uma forma geral, entende-se que o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado de forma compatível com a doutrina mais protecionista aos direitos indígenas, conclusão obtida a partir do cotejo com os fundamentos utilizados na decisão do caso da TIRSS, um dos mais emblemáticos e recentes a respeito da causa indígena brasileira.
A Constituição Federal de 1988, ao constituir o Brasil em um Estado Democrático de Direito, firmou um compromisso maior com os valores da cidadania, da dignidade da pessoa humana, de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como da erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais.
O direito dos índios às suas terras, ou seja, a posse indígena faz gerar o direito de propriedade para um outro sujeito - a União. Aos índios cabem a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas destas terras. Qualquer ato que tenha por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras indígenas será consequentemente nulo, tendo por extintos todos os seus efeitos. Ademais, defende-se, neste trabalho, a natureza de direito fundamental da posse dos índios sobre as suas terras tradicionalmente ocupadas.
Por fim, observa-se que o Supremo Tribunal Federal coaduna seu entendimento com muitos dos posicionamentos da doutrina mais protecionista aos direitos indígenas, o que é constatado pela análise dos fundamentos da decisão sobre o caso Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em vista disso, confirma-se que os índios que mantém contato com a civilização não perdem a titularidade dos direitos indígenas; reconhece-se a realidade pluriétnica trazida pela Constituição Federal de 1988 para o trato com os índios; consagra-se a aplicação do indigenato para a fundamentação da posse indígena; entende-se que a posse indígena é uma forma cultural de lidar com a terra, de maneira a chancelar a sua diferença com o instituto da posse civil; considera-se a Constituição Federal como um verdadeiro estatuto do índio, dotando os seus artigos de autoaplicabilidade e ainda adere-se à aplicação do princípio da proporcionalidade na aplicação dos direitos indígenas à posse de suas terras em face ao desenvolvimento econômico.
Entretanto, mesmo que o Ordenamento Jurídico brasileiro e o Supremo Tribunal Federal tenham estabelecido os parâmetros para proteção da posse das terras de ocupação tradicional indígena, ainda é possível constatar, na realidade, o desrespeito a esses direitos. Trata-se, de um turno, da inércia administrativa na demarcação das terras indígenas à revelia até mesmo do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que estabeleceu um prazo até 1993 para que todas as terras indígenas fossem efetivamente demarcadas. Por outro ângulo, observa-se a continuidade de permanência de particulares nas terras indígenas que, em muitos casos, abrigam potenciais energéticos e turísticos. Por fim, denuncia-se a verificação de julgamentos, principalmente em primeira instância, que desacatam as normas protetivas indígenas e recalcitram em tratar a posse indígena nos mesmos moldes que a meramente civil. Tudo isso tem privado os indígenas da completa disposição sobre a posse de suas terras. E essa espoliação gera um efeito progressivo e negativo nos seus demais direitos básicos, tais quais, à educação, saúde, moradia, segurança, reprodução física e cultural e ao meio ambiente.
Nota-se que os direitos indígenas têm, como seu tema central, a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, no que se circunscreveu, principalmente, o objeto deste estudo. Destarte, os índios, que representam menos de 1% (um por cento) da população nacional, ocupam em média 12% (doze por cento) de um território rico em biodiversidade e riquezas naturais. (ABRAMOVAY, 2009). Contudo, contemporaneamente a terra não é o valor único para esses povos. Surgem novos desafios para o Estado brasileiro na proteção dos direitos dos índios.
Nessa conjuntura, o debate acerca da questão indígena ganhará novos ares, dentre eles, a convivência de tantas culturas diferentes em um mesmo território e a proteção de seus bens imateriais; cita-se a proteção do patrimônio genético e o combate à pirataria sobre os conhecimentos tradicionais.
Outro ponto será o tratamento das terras indígenas em face do desenvolvimento nacional, o que demandará respeito ao meio ambiente e à cultura indígena. Nesse contexto, o Estado brasileiro deve atentar-se para a exploração dos minérios, das águas e das terras indígenas feita por particulares. Hão, ainda, de ser feitos projetos de autossustentabilidade, pois não basta demarcar as terras se os índios não conseguirem sobreviver dignamente.
Assim, o índio não deve ser tratado como empecilho ao desenvolvimento econômico, pois nenhum progresso patrimonial se justifica se é obtido através do descaso aos direitos fundamentais. Isso seria retrocesso!
Portanto, repare que, para além da terra, muitos são os outros direitos que ainda se devem salvaguardar para a plena efetivação da dignidade humana da pessoa indígena, meta de difícil consecução, mas decorrente de inafastável compromisso constitucional. Recorda-se, então, Eduardo Galeano que comparava as utopias ao horizonte:
Utopia: ela está no horizonte, acerco-me um passo e ela se afasta dois. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos mais. Por muito que eu caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso. Para nos fazer caminhar.
Assim, parece que a efetividade completa do direito dos índios sobre a posse das terras tradicionalmente ocupadas é uma questão que não prescinde, mas transcende à tão-só existência de normas jurídicas garantistas no Ordenamento brasileiro, ao entendimento favorável do STF e às construções da literatura jurídica guarnecedoras desses direitos. É necessário, portanto, continuar os passos para um maior grau de consciência na defesa dos direitos indígenas e a sua realização de forma mais articulada entre os sujeitos sociais.
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[1] Todos os dados fáticos e processuais sobre o caso TIRSS, descritos nesse tópico, foram extraídos do site da Fundação Nacional do Índio. (FUNAI, 2009, on line)
[2] Citam-se aqui alguns dos principais dispositivos legais que regem o procedimento de delimitação e demarcação das terras indígenas: Lei nº 6.001, de 19.12.1973 – Estatuto do Índio: “Art.19. § 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço de Patrimônio da União (S.P.U.) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.” Decreto nº 1.775, de 08.01.1996: “Art. 2º A demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação. § 1º O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação. [...] § 7º – Aprovado o relatório pelo titular do órgão de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel. § 8º – Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localizem a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior. [...] § 10º Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá: I – declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação; II – prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias. [...] Art. 5º A demarcação das terras indígenas, obedecido pelo procedimento administrativo deste Decreto, será homologado mediante decreto. Art. 6º. Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.
[3] Pet 3388 / RR - RORAIMA PETIÇÃO Relator (a): Min. CARLOS BRITTO Julgamento: 19/03/2009 Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009.EMENT VOL-02375-01 PP-00071. Parte(s) REQTE.(S): AUGUSTO AFFONSO BOTELHO NETO ADV.(A/S): CLÁUDIO VINÍCIUS NUNES QUADROS.ASSIST.(S): FRANCISCO MOZARILDO DE MELO CAVALCANTI .ADV.(A/S): ANTONIO GLAUCIUS DE MORAIS E OUTROS REQDO.(A/S): UNIÃO. ADV.(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO. EMENTA: AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. (grifo proposital). (BRASIL, 2009, p. 01)
[4] A redação das 19 condicionantes, aqui apresentada, sofreu ligeiro resumo para fins didáticos, tentando-se tomar o cuidado de não modificar o sentido. Contudo, a decisão sobre a TIRSS, com a redação original das 19 condicionantes está anexa a esta Dissertação.
[5] A norma que disciplina a ação popular é a Lei n.° 4.717/65.
[6] Código de Processo Civil (CPC), “Art. 472 - A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros [...]”
[7] Utiliza-se, nessa dissertação, simplificadamente o termo “proprietários” para se referir aos detentores de títulos de propriedade sobre a área. Contudo é importante relembrar que a CF considera nulos, tais títulos de domínio sobre terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
[8] A expressão “relações jurídicas” deve ser compreendida aqui como diversa de “relação processual”, posto que essa pressupõe que as partes estejam litigando em juízo, já aquela refere-se aos casos em que há direitos em comum, muito embora não se esteja compondo um pólo do processo.
[9] Transcrevemos as palavras de Alexandre de Moraes (2006, p. 577), a respeito do controle abstrato, a quem chama também de controle concentrado ou por via de ação direta: “Através deste controle, procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em tese, independente da existência de um caso concreto.”
[10] Também conhecido como controle por via de exceção ou defesa, caracteriza-se pela permissão a todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição Federal. (MORAES, 2006, p. 561)
[11] Ao tratar sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo STF no controle incidental, Alexandre de Moraes (2006, p. 565), dispõe: “[...] tais efeitos ex tunc, (retroativos) somente tem aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração”.
[12] Será trazido o entendimento do STF sobre os efeitos erga omnes da ação civil pública, haja vista a sua semelhança com a ação popular, tentando-se assim, uma aplicação analógica da posição jurisprudencial.
[13] A norma que versa sobre a ação direta de inconstitucionalidade em sede do STF é a Lei 9.868/99.
[14] É de se informar, conforme já tratado no capítulo 3, que essa postura é mais comum no primeiro grau de jurisdição e que, normalmente, é revista em sede de recurso para os Tribunais Regionais Federais (TRF), STJ e STF. Contudo, essas decisões geram muitos prejuízos e instabilidade aos interesses indígenas até que sejam derrubadas pela via recursal.
[15] Para ilustrar a prática dessa desproporcional intervenção do Judiciário nas atividades administrativas, em prejuízo à questão indígena, cita-se recente caso enfrentado pela Procuradoria Federal (AGU), com participação deste subscritor. Essa questão reveste-se de superior importância no atual contexto cearense, por envolver área com interesse turístico dentro de terras indígenas, pretendido por conglomerados empresariais. Trata-se de ação cautelar, processo n°0002211-56.2009.4.05.8103, que na tramita na 18° Vara Federal do Estado do Ceará, proposta pela Nova Atlântida LTDA em face da FUNAI, e que é incidental à Ação Civil Pública, processo n° 0000413-11.2005.4.05.8100. Naquele feito a autora pleiteava a suspensão da portaria que nomeava grupo técnico para a “primeira fase” do procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena Tremembé de São José e Buriti (comunidade indígena situada no município de Itapipoca-CE). Pretendia, ainda, que a FUNAI se abstivesse de praticar qualquer ato administrativo em relação ao caso. Essa primeira fase do procedimento administrativo refere-se, basicamente, à investigação da etnicidade da comunidade, por um grupo técnico da FUNAI, composto por antropólogos e outros profissionais (ver a nota de rodapé seguinte). Posteriormente, em fase de julgamento, o juiz concede a liminar, para suspender os efeitos da portaria e determinar que a FUNAI se abstenha de efetuar qualquer procedimento administrativo. A liminar funda-se numa suposta imparcialidade da FUNAI e no entendimento de que a questão está jurisdicionalizada e, portanto, a decisão sobre a etnicidade indígena da comunidade deveria ser tomada pelo Judiciário e não mais pela Administração. A seguir, serão citados alguns enxertos da decisão: “[...] Nos autos da ação civil pública referida, a FUNAI é parte interessada, portanto, em provar, perante este juízo, que a área em questão é efetivamente formada por terras indígenas. Ora, em assim sendo, que credibilidade resta à FUNAI para conduzir o processo administrativo em questão, se em juízo assumiu sua parcialidade? Além disso, que valor jurídico teria a demarcação administrativa levada a efeito pela FUNAI, se a última palavra a respeito daquelas terras serem ou não indígenas continuaria com o poder Judiciário, em nome da inafastabilidade da Jurisdição (art. 5°, XXXV, CF)? [...] Estou seguro de que o simples fato de haver pesquisadores da FUNAI cadastrando supostos índios, nesse momento em que o Judiciário ainda não se posicionou sobre o assunto, seria negativo para o deslinde da questão. Além do que a parcialidade dos prepostos da FUNAI, como bem destacou a autora a respeito do periculum in mora, pode encorajar as pessoas interessadas a atitudes ilícitas, que ameaçam a segurança jurídica.” (CEARÁ, 2010). Nas razões invocadas pelo magistrado, nota-se que houve desconsideração da “presunção de boa fé dos atos praticados pela Administração Pública”, atributo dos atos administrativos pelo qual a Administração Pública tem legitimidade para desenvolver o seu mister e que, para se conseguir a invalidação do ato, necessita de prova em contrário da outra parte que confirme o vício da conduta administrativa, fato que não ocorreu. De outro quadrante, observa-se que o juiz faz confusão entre imparcialidade da FUNAI e o imperativo deste órgão de cumprimento do dever legal. Nesse contexto, esse órgão tanto tem a obrigação legal de ser parte em processo judicial em que sejam discutidos interesses indígenas, quanto tem por atribuição legal, a realização do procedimento administrativo de delimitação e demarcação de terras indígenas. Logo, o que a lei determina, não pode ser entendido como imparcialidade, máxime não pode ser motivo de desconfiança e objeto de invalidação pelo Judiciário. Importa informar, entretanto, que essa decisão liminar do juízo de primeiro grau foi derrubada pelo TRF -5° região proc. número 0112134-76.2009.4.05.0000, que determinou o prosseguimento do procedimento administrativo pela FUNAI, com a conseqüente realização, por esse órgão, da investigação da etnicidade indígena da comunidade ali envolvida. Na situação atual, a FUNAI esta dando cumprimento à decisão do TRF e o processo administrativo, encontra-se em andamento. (RECIFE, 2010)
[16] DECRETO Nº 1.775, DE 08.01.1996: “Art. 2º A demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação. § 1º O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.
[17] “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam; competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
[18] Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de julho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas. (SILVA, 1993, p. 48)
[19] Nas palavras de Fernando Tourinho Neto (apud SANTILLI, 1993, p. 20): “Os indígenas detêm a posse das terras que ocupam em caráter permanente. Certo. Todavia, se provado que delas foram expulsos, à força ou não, não se pode admitir que tenham perdido a posse, quando sequer, como tutelados, podiam agir judicialmente; quando sequer desistiram de tê-la como própria.”
[20] Nas palavras de Themístocles Cavalcanti (1956, p.146): “Para que se possa dar ao texto Constitucional o seu sentido próprio e uma aplicação prática, é indispensável ajustar ao conceito de habitação e ao sistema de vida dos silvícolas e à sua natureza mais ou menos nômade. Assim a sua posse estaria vinculada não à idéia de habitação como a entendemos, mas de acordo com os costumes indígenas e as necessidades de sua subsistência, levando em consideração a importância da caça e da pesca na vida do indígena.”
[21] Nas palavras de José Afonso da Silva (1984, p. 470): “[...] O tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.”
[22] Nas palavras de José Afonso da Silva (1984, p. 472): “Quando a Constituição declara caber aos silvícolas a posse permanente das terras por eles habitadas, isto não significa um simples pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat.”
[23] Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Neto (apud SANTILLI, 1993, p. 20): é de assinalar-se, também, que não se pode igualar a posse indígena à posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível. Eis o conceito dado pela Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio) – “Art. 23 - Considera-se posse do índio ou silvícola a ocupação efetiva da terra que, de acordo com os usos, costumes e tradições tribais, detém e onde habita ou exerce atividade indispensável à sua subsistência ou economicamente útil”. Deve-se, por consequente, atentar para os usos, costumes e tradições tribais. Há de se levar em conta as terras por eles ocupadas tradicionalmente.
[24] Acórdão do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO (AMS nº 2001.36.00.008004-3/MT – Rel. Des. Federal Daniel Paes Ribeiro – DJU de 19.04.2004, pág. 58):
“ADMINISTRATIVO. TERRAS INDÍGENAS. IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO PELA FUNAI. PRETENSÃO DE EXPLORAÇÃO DE MADEIRA E FORMAÇÃO DE PASTAGENS. IMPOSSIBILIDADE. 1. Delimitada a área de propriedade do impetrante como integrante da Terra Indígena Kayabi, compete à FUNAI zelar pela sua integridade, apesar de não ter sido ainda demarcada, eis que “a demarcação não é constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena sobre as suas terra é a própria presença indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi efetuado pela Constituição Brasileira”. [...] (BRASIL, 2004, p. 275)
[25] O método da ponderação de interesses é informado pelo princípio da proporcionalidade, pelo qual a busca da solução de equilíbrio será encontrada: a) quando a restrição imposta a determinado interesse for realmente adequada, idônea, apta a promover a realização do outro interesse; b) quando, mesmo assim, tal restrição seja aquela que menor gravame trouxer ao interesse que está sendo afetado em benefício do outro contraponto e c) ainda que a restrição ao interesse seja a menor possível, quando os aspectos negativos decorrentes desta restrição sejam inferiores aos aspectos positivos decorrentes da realização mais intensa do interesse contraposto. (LINHARES, 2001, p. 239-240)
[26] Defende-se, neste trabalho, a natureza de direito fundamental da posse dos índios sobre as suas terras tradicionalmente ocupadas. Isso é possível ainda que o artigo 231 da Constituição Federal, que versa sobre o direito dos índios, esteja fora do catálogo constitucional que elenca os direitos fundamentais. Esse argumento ampara-se no art. 5°, §2°, CF que estende a fundamentalidade às disposições previstas em tratados internacionais sobre direitos humanos que o Brasil faz parte, bem aos direitos decorrentes do regime e princípios desta Constituição. A importância de se considerar os direitos dos índios como um direito fundamental decorre das prerrogativas que essa classe especial de direitos possui no Ordenamento pátrio. Dentre elas, cita-se a possibilidade de aplicabilidade direta e eficácia imediata, a impossibilidade de sofrer emenda constitucional que lhe restrinja sobremaneira o conteúdo ou exclua sua existência, a sua priorização na implantação de políticas públicas e, principalmente, a sua equiparação em importância constitucional, com o direito de propriedade particular, que, por vezes, demandará o princípio da proporcionalidade para melhor resolução de conflitos.
Procurador Federal (atualmente Coordenador do Contencioso, Cobrança e Recuperação de Crédito do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUíS DE FREITAS JúNIOR, . Perspectivas atuais do direito dos índios à posse de suas terras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36334/perspectivas-atuais-do-direito-dos-indios-a-posse-de-suas-terras. Acesso em: 23 dez 2024.
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