O emprego doméstico como é visto sócio e juridicamente na atualidade é o resultado de um conjunto de fatores desenvolvidos no decorrer da História. De modo a melhor compreender o emprego doméstico atual, analisar-se-á o histórico do emprego doméstico e sua estrita relação com a escravidão e o trabalho feminino.
O Determinismo é conceituado como o “princípio segundo o qual todo fato tem uma causa e, nas mesmas condições, as mesmas causas produzem os mesmos fatos, o que implica a existência de leis específicas que regem fatos e causas.”[1], sendo o pré-determinismo, uma cadeia causal pretérita que possibilita o conhecimento prévio da ocorrência de um fato ou resultado.
O Paternalismo possui definição variável conforme o âmbito no qual o termo é aplicado: na antropologia é “o sistema de relações baseado na autoridade do pai ou do chefe”; na política é “regime em que o excesso de autoridade assume formas de suposta proteção”; de suposta proteção”; em termos pejorativos é “atitude protetora que menospreza as potencialidades e limita o desenvolvimento daquele que é objeto dela”.; podendo ser ainda a “interferência na liberdade ou autonomia pessoa de uma outra pessoa, com justificativas de promoção do bem da pessoa ou prevenção de danos à mesma”.[2]
Os conceitos expostos são de essencial compreensão do histórico do emprego doméstico, visto que tanto o determinismo quanto o paternalismo foram características presentes desde a origem deste trabalho.
A crença em um conjunto de fatores físicos preexistentes (pré-determinismo), combinado à superioridade do gênero masculino e à necessidade de proteção do gênero feminino (paternalismo), resultou na chamada divisão sexual do trabalho, presente desde o surgimento das primeiras sociedades. Segundo tal divisão, a mulher estava predeterminada ao trabalho interno, e o homem, ao trabalho externo.
O trabalho doméstico está atrelado ao trabalho feminino desde a origem. No Paleolítico[3], período de surgimento dos primeiros hominídeos, cabia ao gênero feminino, o trabalho interno (cuidado com a cria, com o preparo da comida após a “descoberta” do fogo, a colheita dos vegetais); e ao homem, o trabalho externo (caça e procura por abrigo). No Período seguinte (Neolítico), desenvolveu-se o cultivo de plantas e domesticação de animais. As variações de trabalho aumentaram quantitativa e qualitativamente, mas a essência da divisão não sofreu alteração – à mulher, o trabalho interno, e ao homem, o externo.
O desenvolvimento da agricultura e de uma pecuária primitiva permitiu o surgimento de comunidades sedentárias, não mais nômades. A evolução dessas comunidades levou ao aparecimento[4] de grupos sociais (ricos e pobres), à formação do Estado, à divisão social do trabalho (com a produção de excedentes para armazenamento), ao aumento da produção econômica (troca utilizando os produtos armazenados), aos registros escritos.
Segundo Engels, com a consolidação da propriedade privada e a monogamia temos a “derrota histórica do sexo feminino”, pois tais institutos consolidaram a opressão feminina. A formação de sociedades organizadas e suas alterações requisitaram força impositiva que possibilitasse sua mantença: nasce assim o direito positivado, o qual desde a origem é um direito paterno (homem como ser superior à mulher).[5]
Relacionando escravidão e emprego doméstico, têm-se que na civilização Grega Antiga, em seus períodos Homérico, Arcaico, Clássico e Helenístico, vimos cidades-Estado ou pólis organizadas politicamente, com poderio econômico e militar, onde os escravos eram um grupo de excluídos da sociedade, sendo responsáveis por trabalhos variados.
Os escravos, por sua vez, eram prisioneiros de guerra ou filhos destes, considerados objeto, parte do patrimônio da família: “[...] uma família rica chegava a ter 20 escravos domésticos; a família que não tivesse pelo menos um escravo demonstrava levar vida miserável” [6]. O serviço executado pelo escravo era tratado como inferior, indigno de um cidadão, sendo tal ideia tão inserta no pensamento da sociedade que esta considerava o escravo como predeterminado àquele serviço, inclusive com o corpo já fisicamente adaptado: “A natureza faz o corpo do escravo e do homem livre diferentes. O escravo tem corpo forte, adaptado para a atividade servil. O homem livre tem corpo ereto, inadequado para tais trabalhos, porém apto para a vida do cidadão.”[7]
No Brasil, a escravatura foi essencial à mantença dos meios de produção agrícola nos séculos XVII e XVIII, principalmente a produção de cana-de-açúcar. De maneira semelhante ao escravo ateniense de muitos séculos antes, o escravo no Brasil era tratado como ser predestinado a serviços subalternos, inadequados a um cidadão livre, como cuidado com gado, colheita dos cereais, nas lavouras de exportação, nos serviços domésticos.[8]
Enquanto para a escravidão grega antiga o escravo poderia denunciar seu senhor em caso de agressão, no Brasil eram permitidas agressões físicas, tratamento visto como direito do senhor de castigar. Tal condição traduzia a inexistência do respeito para com o escravo e para com seu serviço.
Após a Revolução Industrial no século XVIII, os países industrializados que já possuíam relações comerciais com o Brasil (recém-independente) e o viam como alvo consumidor para seus produtos pressionaram o Brasil para abolir a escravatura – afinal, quanto mais assalariados, maior o mercado consumidor. O tráfico internacional de escravos negros para o Brasil foi proibido em 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, passando a ocorrer o tráfico regional de escravos.
Após a Guerra do Paraguai (1865-1870), houve movimentos populares pela abolição da escravatura, além das pressões internacionais. Esses movimentos resultaram na Lei do Ventre Livre (1871) – a partir da qual todo filho nascido de mãe escrava já seria livre e permitia ao escravo que conseguisse dinheiro o direito de comprar sua liberdade -, e Lei dos Sexagenários (1885) que declarou livres escravos acima de 65 anos. Somente em 1888, após “manifestações políticas e populares” a favor da abolição[9] que a Lei Áurea foi promulgada.
Não obstante a abolição da escravatura em 1888, o ex-escravo via-se sem real liberdade. Numa sociedade embebida em preconceito, não havia emprego para um ex-escravo. Sem opção, o ex-escravo necessitava ficar na casa de seu antigo senhor – desprovido de bens ou residência, trocava seu trabalho pela moradia e alimento, em condições não muito diferentes de antes de sua libertação.
Surgiu assim a figura do patrão benevolente: o ex-senhor que, não deixando seu ex-escravo passar fome, “acolhia-o”, dava-lhe comida e moradia em troca do serviço do ex-escravo em sua casa e lavoura. O ideal de assistência do patrão doméstico em relação ao empregado doméstico e rural tem assim sua origem.
Entendido como trabalho de mínima valorização, executado por alguém necessitado como meio de troca, o trabalho doméstico inicia-se no Brasil, aonde viria a evoluir em condições e tratamento, mas sem deixar a ideia original de caridade.
Objeto de discriminação tanto pela natureza do trabalho (entendido como subalterno) quanto pela pessoa que o executa (mulheres, em sua maioria, ou negros libertos), o trabalho doméstico era “economicamente desvalorizado”, visto que não quantificável.[10]
Aprofundando a análise histórica acerca do emprego doméstico sob a perspectiva da mulher, esta também era excluída da sociedade Grega Antiga, à mulher cabia a organização da casa, sendo do homem a liderança do poderio familiar. As mulheres não possuíam direitos políticos ou sobre o próprio corpo, sendo de responsabilidade do pai e, após o casamento, do marido.
Tal condição feminina prolongou-se nas sociedades ocidentais dos séculos seguintes, ocorrendo situação semelhante no Brasil, na vigência das Ordenações Filipinas e Afonsinas. Segundo análise de Azevedo acerca destas Ordenações, no que tange ao patrimônio: “[...] em princípio, parece o legislador não ter muita confiança no agir das mulheres quanto aos bens que possuam ou ainda na administração desse patrimônio”. Em relação ao próprio corpo, as mulheres estavam sujeitas a castigos executados pelos maridos, podendo estes avocar como excludentes em caso de “‘penas pecuniárias dos que matam, ferem ou tiram arma na Corte”, a “legítima defesa, castigo a criado, discípulo, filho, escravo e... mulher”.[11]
Ainda nos séculos XVII e XVIII, a condição da mulher no Brasil pouco se alterou, acrescendo como direito da mulher maior de dezoito anos, casada, o exercício da atividade comercial (Código Comercial de 1850), desde que autorizada pelo marido.
Muitos pensadores defenderam a predeterminação da mulher ao trabalho doméstico ao longo da história. D’Incao, elucidando acerca da mulher na sociedade burguesa no Brasil do século XVIII, explicita:
Cada vez mais é reforçada a ideia de que ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera da família “burguesa e higienizada” [...]. A mãe [...] não sabe nada sério que acontece na casa, a não ser as coisas apropriadas para a mulher saber, coisas da administração doméstica.[12]
Michelle Perrot, em seu livro Os Excluídos, cita autores que defendem tal predeterminação. Entre eles, Hegel e Augusto Comte, contemporâneos do século XIX. Hegel defende a “vocação natural” dos sexos:
O homem tem sua vida real e substancial no Estado, na ciência ou em qualquer outra atividade do mesmo tipo. Digamos de modo geral no combate e no trabalho que o opõem ao mundo exterior e a si mesmo. [...] Se se colocam mulheres à frente do governo, o Estado se encontra em perigo. Pois elas não agem conforme as exigências da coletividade, mas segundo caprichos de sua inclinação e seus pensamentos.[13]
Perrot também aborda o entendimento de Augusto Comte, o qual é ainda mais incisivo: “inaptidão radical do sexo feminino para o governo, mesmo da simples família” em virtude da “espécie de estado infantil contínuo” que caracteriza o sexo feminino.[14]
O trabalho externo feminino era complementar e acessório ao trabalho principal doméstico, e geralmente executado por mulheres casadas. O trabalho doméstico não é remunerado, é dever do marido promover a mantença econômica da casa:
[...] (supõe-se que este o seja pelo trabalho do pai de família). Ela tem acesso ao dinheiro apenas por meio dos trabalhos complementares que se esforça sempre em colocar nos interstícios de tempos deixados pela família: atividades mercantis – venda em uma barraca ou com uma cesta, à maneira das camponesas, persiste apesar de todas as regulamentações que exigiam cada vez mais patentes e autorizações [...].[15].
No século XX, com a Primeira e Segunda Guerra Mundial, o mercado exigiu a mão-de-obra feminina em setores variados, especialmente no comércio e na indústria. Contudo, havia ainda espécies de trabalho tipicamente femininos como a costura, a indústria têxtil, lojas, correios, secretária de escritório, sendo a mulher impedida de exercer certas profissões como a advocacia: “acórdão do Tribunal Civil e Criminal do Distrito Federal, o qual expressamente declara que ‘mulher, embora diplomada em direito, não podia exercer a advocacia” [16].
Com a Lei nº 4.121/1962 (Estatuto da Mulher Casada), a condição jurídica da mulher alterou em maiores proporções: as mulheres casadas, durante a sociedade conjugal, “deixavam de ser incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer”[17]. Com a aprovação da Emenda constitucional nº9 de 1977, foi instituído o divórcio e a dissolução do casamento.
Concluindo, o emprego doméstico foi desvalorizado desde a sua origem com os escravos recém-libertos e assim permaneceu ao longo da história por ser exercido principalmente por mulheres.
Atualmente, há a igualdade formal de tratamento entre homem e mulher, instituída pela Constituição de 1988, em seu artigo 5º. Entretanto, a diferença de tratamento ainda é uma realidade, visto que, em 2011, as mulheres percebiam 72,3% do rendimento dos homens, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).[18]
Referências
1 KOOGAN, Abrahão; HOUAISS, Antônio. Enciclopédia e dicionário. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995.
2 AUDI, Robert (Ed.). The cambridge dictionary of philosophy. 2nd. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/paternalismo>. Acesso em: 28 fev. 2013. Tradução nossa.
3 COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 6. ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2002.
4 Ibid.
5 ENGELS, 1884 apud PERROT, 1988.
6 PERROT, 1988, p. 175.
7 ARISTÓTELES. Política. Tradução Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 19 e 239.
8 COTRIM, op. cit.
9 Ibid.
10 PERROT, 2005.
11 AZEVEDO, Luiz Carlos de. Estudo Histórico sobre a condição jurídica da mulher no direito luso-brasileiro desde os anos mil até o terceiro milênio. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2001. p. 45 e 46. Grifo nosso.
12 D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 229, 240, 241. Grifo nosso.
13 PERROT, 1988, p. 177 e 178.
14 Ibid., p. p. 178.
15 Id., 2005, p. 201 e 202.
16 AZEVEDO, op. cit., p. 68.
17 Ibid., p. 70.
18 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Mulher no mercado de trabalho: perguntas e respostas. 2012. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Mulher_Mercado_Trabalho_Perg_Resp_2012.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2013.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Clara Maria Carneiro. Histórico do emprego doméstico e correlação com a escravidão e trabalho feminino Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36336/historico-do-emprego-domestico-e-correlacao-com-a-escravidao-e-trabalho-feminino. Acesso em: 23 dez 2024.
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