Resumo: O juízo natural tem suas origens no direito inglês, americano e francês. Em virtude de a decisão jurídica não ser papel reservado ao juiz, mas sim papel atribuído à jurisdição e ainda por assim determinar nosso texto constitucional é tecnicamente correto a expressão “juízo natural” e não “juiz natural”. Além disto, tal princípio é, em verdade, requisito da legitimidade da decisão jurídica e implica na necessidade da competência ser criada por lei, anteriormente ao fato objeto do processo e de maneira taxativa.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Processo Penal. Juízo Natural. Imparcialidade. Isonomia.
1 Introdução
No presente artigo se estudará o princípio (requisito) do juízo natural dentro da matriz processual democrática, se indicando suas origens, apresentando a correta nomenclatura e o conceito mais tecnicamente adequado ao nosso modelo de Estado.
2 HISTÓRICO
O primeiro lampejo - cronologicamente falando - do que viria a ser o juízo natural para a cultura ocidental é a Magna Carta de João Sem Terra, de 1215. Nela se firmou um marco na determinação da competência, ao, em seu artigo 18, determinar norma de competência territorial:
(18) Inquests of novel disseisin, mort d'ancestor, and darrein presentment shall be taken only in their proper county court. We ourselves, or in our absence abroad our chief justice, will send two justices to each county four times a year, and these justices, with four knights of the county elected by the county itself, shall hold the assizes in the county court, on the day and in the place where the court meets.
Todavia, apenas com o Petition of Rights, de 1628, e o Bill of Rights, de 1689, se passou a proibir juízes extraordinários, sendo determinado que o juiz deveria ser definido anteriormente à realização do fato – é a proibição do juiz ex post facto.
Nos Estados Unidos, o juízo natural foi elevado a princípio constitucional pela Emenda VI, de 1791:
Amendment VI
In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of the state and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been previously ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the accusation; to be confronted with the witnesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in his favor, and to have the assistance of counsel for his defense.
Na França, que influenciou o direito brasileiro e mundial, a evolução do conceito se deu da seguinte forma, segundo Franco Cordero:
Quedan destruidos con el de la Bastilla (en donde estaban recluidos sin proceso los afectados por lettres de cachet o cartas reservadas) los residuos de la justicia retenida, en virtud del artículo 19 de la ley de 1º de octubre de 1789, con arreglo al cual ‘el poder judicial no podrá, en ningún caso, ser ejercido por el rey, ni tampoco por los cuerpos legislativos, ya que debe estar separado de ambos’; ‘la justicia será administrada en nombre del rey, únicamente por los tribunales establecidos por la ley, con arreglo a los principios de la Constitución y según las formas señaladas por la ley’; es, pues, inválida toda norma no legislativa sobre la competencia. La asamblea vuelve sobre este asunto en el artículo 17, título II, de la ley de 16 al 26 de agosto de 1790, que dice: ‘El orden constitucional de las jurisdicciones no podrá ser turbado, ni los acusados ser separados de sus jueces naturales por ninguna comisión, ni por otras atribuciones o avocaciones, si no por las que hayan sido determinas por la ley’. Así nació un arquetipo. Restaurados los Borbones, pasa a la Constitución aprobada por Luis XVIII, que dice: ‘Nadie puede ser separado de sus jueces naturales’, en consecuencia, no pueden establecerse tribunales extraordinarios. La misma disposición se encuentra en la Carta de 1830. Y del mismo tronco descienden los artículos 70 y 71 de Estatuto Albertino.[1]
Estes foram os embriões do atual conceito de juízo natural, e deste importante princípio se passará a tratar mais aprofundadamente, começando pela correção da nomenclatura.
3 NOMENCLATURA
Juiz é o agente e representante do juízo; juízo é o “Órgão estatal de julgar integrante do 'Poder Judiciário'”[2].
E, como anota Aroldo Plínio Gonçalves, após o Congresso Internacional de Direito Processual de Gand, na Bélgica, de 1977, a decisão jurídica não é mais entendida como papel reservado ao juiz, mas como papel atribuído à jurisdição[3].
Assim, nas palavras do Eminente Rosemiro Pereira Leal: “ [...] o provimento (sentença) já não é mais ato solitário do juiz, mas da jurisdição que se organiza pelo Poder Judiciário, em grau de definitividade decisória, na órbita de toda a jurisdicionalidade estatal.”[4].
Desta forma, se tendo como premissa primeira o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF), e se enxergando os avanços teóricos da democracia processual[5], a expressão técnica que mais se ajusta ao conceito do princípio ora estudado é “juízo natural” e não “juiz natural”; como diz nosso próprio texto constitucional: “não haverá juízo ou tribunal de exceção;” (art. 5º, XXXVII, da CF, sem destaques no original).
4 O JUÍZO NATURAL
Não sendo 'natural' no sentido de imanente à sociedade, mas surgido apenas após a criação do Estado, o princípio do juízo natural é verdadeiro requisito da atuação da jurisdição.[6]
Jorge de Figueiredo Dias conceitua o princípio como “direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente.”[7].
Conforme o professor de Coimbra isto implica num tríplice significado: a) em primeiro lugar, que apenas a lei é fonte legítima para instituir o juiz e fixar-lhe a competência; b) em segundo lugar, determina um critério temporal, em que a competência deve ser feita por uma lei vigente anteriormente ao fato objeto do processo, sendo evidentemente, irretroativa; c) e, como terceiro significado, o princípio deve ser entendido como uma ordem taxativa de competência que exclui qualquer arbitrariedade ou discricionariedade na determinação do foro – o que proíbe tribunais de exceção[8] criados ad hoc para decidir um caso concreto ou um grupo de casos, com as quebras das regras de competência[9].
Tourinho Filho por sua vez lembra que a proibição de tribunais de exceção implica também na proibição de juízes ad hoc[10]. O que igualmente é sustentado por Ferrajoli que aponta que “o único modo de satisfazer plenamente o princípio é pré-constituir por lei critérios objetivos de determinação da competência de cada magistrado singularmente, e não só dos órgãos a que eles pertencem.”[11].
Cumpre observar, por fim, que o princípio (requisito) do juízo natural é previsto em nosso texto constitucional em seu artigo 5º, incisos XXXVII: “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e LIII: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”. E, portanto, é garantia fundamental do cidadão.
Em conclusão, cabem as palavras sempre luminosas do professor Rosemiro Pereira Leal:
Um Estado que originalmente (naturalmente) não se manifestasse, de modo congênito, pela função de autocontrole jurisdicional e que nomeasse juízes para cada caso que lhe fosse submetido para julgar, não se legitimaria como Estado Democrático de Direito, porque o próprio Estado, em situações de conveniência e não por leis institutivas votadas pelo povo, por seus dirigentes, escolheria os juízes (tribunais de exceção) à medida das conjunturas e interesses governamentais. Daí se fala no requisito do juízo natural que estabelece, para a garantia de direitos fundamentais de liberdade, dignidade e ampla defesa, a coexistência do Estado Democrático de Direito e de seus órgãos jurisdicionais, com competências pré-definidas, ante os atos ou fatos a serem julgados. Não se trata de dizer que esse requisito assegura julgamento por juiz imparcial, porque a imparcialidade aqui não é qualidade intrínseca dos juízes, mas dever estatal constitucionalizado.[12]
5 CONCLUSÃO
Conclui-se que o juízo natural é conquista histórica do cidadão e verdadeiro requisito da jurisdição, sendo, pois, condição de legitimidade do exercício da atividade judicante; e que tal requisito implica na necessidade da competência ser criada por lei, anteriormente ao fato objeto do processo e de maneira taxativa.
Referências
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GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos: Pacto de San José da Costa Rica. 3. Ed. São Paulo: RT, 2010.
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[1] CORDERO, Franco. Procedimento Penal. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000, v. 1, p. 110.
[2] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 7. ed. São Paulo: Forense, 2008, p. 283.
[3] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 180.
[4] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 7. ed. São Paulo: Forense, 2008, p. 122.
[5] Por todos: LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010.
[6] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 7. ed. São Paulo: Forense, 2008, p. 122.
[7] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: 1974, p. 322.
[8] Luís Roberto Barroso comenta que “Ao apreciar um pedido de extradição, o STF considerou como tribunais de exceção: a) os que são criados após o fato que vai ser julgado (ex post facto); b) os que são instituídos para julgamento de determinadas pessoas ou de certas infrações penais; c) os tribunais regulares, quando desrespeitam o devido processo legal (STF, RDA 181-182/168)” em BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 47. Vide também STF, RTJ 160/1056 e STF, RT 744/489, HC 73.801-0-MG, Rel. Min. Celso de Mello.
[9] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: 1974, p. 322-323.
[10] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 54.
[11] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 545.
[12] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 7. ed. São Paulo: Forense, 2008, p. 122.
Advogado criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Marcus Vinícius Pimenta. O Juízo Natural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 ago 2013, 08:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36346/o-juizo-natural. Acesso em: 23 dez 2024.
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