Resumo: O Ministério Público é órgão autônomo da administração da justiça, não é órgão administrativo puro e nem exerce função judicial, apesar de, assim como os demais sujeitos do processo, dela participar. A promotoria natural é princípio-garantia constitucional que descende da legalidade e da impessoalidade dos atos dos agentes públicos, além dos princípios da independência funcional e da inamovibilidade do MP. Isto posto, se colocará as palavras da doutrina e da jurisprudência que confirmarão que tanto o órgão de execução do MP quanto o membro que atuará no feito devem ser definidos em momento anterior à realização do fato objeto do caso penal.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Processo Penal. Promotoria Natural. Imparcialidade. Independência.
1 Introdução
No processo penal, o Ministério Público é órgão autônomo da administração da justiça. Aproxima-se do conceito de órgão administrativo, todavia, por não ter discricionariedade, dele se afasta; igualmente, órgão judicial não o é, vez que não possui poder judicante e muito menos pode promover qualquer decisão que tenha a força da coisa julgada. Assim, tal como Jorge de Figueiredo Dias, entendemos que o Ministério Público é órgão autônomo da administração da justiça, nas palavras do professor português:
Devemos pois concluir que a posição jurídica do MP no processo penal se define com os princípios aplicáveis no domínio da administração da justiça; trata-se de um órgão autônomo desta administração – autônomo no sentido de independente dos tribunais, embora com eles material e funcionalmente conexionado, e dotado de uma estrutura e organização próprias – cuja actividade não se deixa reconduzir exactamente nem à <<função executiva comum>>, nem à <<função judicial>>.[1]
Isto posto, podemos enfrentar a querela relacionada à promotoria natural, pois é com base nesse conceito, que define o MP como próximo à função administrativa e, por sua vez, participante, tal como os demais sujeitos do processo, da função judicial, - sem ser um órgão puro de quaisquer dessas funções-, é que se poderá ter a melhor compreensão deste instituto.
2 A PROMOTORIA NATURAL
O Ministério Público é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF), sendo regido pelos princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional (art. 127, § 1º, da CF).
A unidade é o fato de todos os funcionários da instituição constituírem um só órgão, pela indivisibilidade se entende que a atuação de cada membro individual do MP é uma atuação da totalidade da instituição. Por fim, e especialmente importante para este estudo, como independência funcional se entende: a) a autonomia dos membros do MP individualmente considerados, no sentido de poderem exercer sem constrangimento as suas convicções, independente da orientação de superior hierárquico, respeitando, evidentemente o princípio da legalidade; e, b) autonomia do órgão Ministério Público, tanto interna, tal como na autonomia administrativa, quanto externa, como na autonomia orçamentária.
Juntamente a estes princípios, de acordo com o conceito exposto no “item 1”, deve-se também entender que o MP está vinculado aos princípios da administração pública, especialmente aos princípios da legalidade e da impessoalidade.
Pela relevância aqui do conceito de impessoalidade, citamos o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello:
[…] a impessoalidade traduz a ideia de que a Administração Pública tem que tratar todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos nem perseguições são toleráveis. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.[2]
Assim, tal como os agentes da administração, o MP deve ser o imparcial, e tanto é desta forma, que a norma processual penal prevê expressamente os casos de impedimentos e suspeições dos membros do MP (arts. 252 à 258)[3].
Ademais, acreditamos que tendo-se por premissa as inúmeras semelhanças entre a magistratura e o MP, tal como no tratamento constitucional de seus direitos e vedações, e também no próprio o art. 258 do CPP[4], deve ser aplicável a analogia entre o juízo natural e a promotoria natural, nos termos do art. 3º, do CPP: “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.”.
É o que pensa, por exemplo, Luigi Ferrajoli, que diz que, a exemplo do juízo natural, a acusação também não pode ser manobrada ou de qualquer modo condicionada por fatores estranhos ao processo[5].
Desta maneira por tudo dito já se poderia perceber a consagração do princípio da promotoria natural. Todavia, ante a complexidade do tema, estendemos um pouco mais os argumentos e as implicações de tal princípio-garantia.
Além da independência funcional (art. 127, § 1º, da CF), os membros do MP têm garantida em nossa Constituição a inamovibilidade (art. 128, § 5º, da CF), assim, além da proteção contra qualquer interferência externa ou pressão de qualquer ordem, é assegurado que devem ser respeitadas as atribuições legais em que estão investidos os membros do MP; quanto a isto, esclarecedoramente diz o Desembargador Paulo Rangel:
Não basta garantir apenas a inamovibilidade ao Ministério Público, pois isso de nada adiantaria se possível fosse, ao Procurador Geral, retirar do Promotor de Justiça (ou do Procurador da República) as atribuições que lhe são impostas por lei. A inamovibilidade não pode ser vista apenas sob o enfoque geográfico, territorial, do membro do Ministério Público, ou seja, o poder do Procurador Geral (ou de qualquer outra autoridade) de retirá-lo desse ou daquele órgão de execução, mas sim e, principalmente, sob o ponto de vista de respeito às suas atribuições legais. O que significa dizer: a avocação de um inquérito policial ou processo judicial do âmbito das atribuições de um membro do Ministério Público pelo Procurador Geral é uma afronta à Constituição Federal, que assegura à sociedade o princípio do Promotor Natural.[6]
Assim, o órgão de execução do Ministério Público deve ter suas atribuições definidas em lei em momento anterior ao fato objeto do processo, sendo vedado o chamado “promotor de encomenda”. Esta é verdadeira garantia do cidadão, que merece a atuação impessoal e segundo a legalidade de todos os agentes públicos; e, in casu, um terceiro interferir na capacidade processual de determinado membro do MP é verdadeira afronta ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF).
Para ter capacidade processual, o membro do MP, deve ter a competência administrativa definida em momento anterior ao fato objeto do processo, é o que ordena a Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; (Sem destaques no original)
Este também é o entendimento da mais avançada corrente dos tribunais. Segundo o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus de nº 67759/RJ, de relatoria do Eminente Ministro Celso de Mello:
O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. (STF, HC 67759/RJ, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 01/07/93)
E segundo o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial de nº 11722:
RESP - CONSTITUCIONAL - PROCESSUAL PENAL - MINISTERIO PUBLICO - PROMOTOR NATURAL - O PROMOTOR OU O PROCURADOR NÃO PODE SER DESIGNADO SEM OBEDIENCIA AO CRITERIO LEGAL, A FIM DE GARANTIR JULGAMENTO IMPARCIAL, ISENTO. VEDA-SE, ASSIM, DESIGNAÇÃO DE PROMOTOR OU PROCURADOR AD. HOC, NO SENTIDO DE FIXAR PREVIA ORIENTAÇÃO, COMO SERIA ODIOSO INDICAÇÃO SINGULAR DE MAGISTRADO PARA PROCESSAR E JULGAR ALGUEM. IMPORTANTE, FUNDAMENTAL E PREFIXAR O CRITERIO DE DESIGNAÇÃO. O REU TEM DIREITO PUBLICO, SUBJETIVO DE CONHECER O ORGÃO DO MINISTERIO PUBLICO, COMO OCORRE COM O JUIZO NATURAL. (STJ, REsp. 11722, 6ª T., Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJ 19/10/92)
Por fim, cabe uma última observação, conforme o artigo 128, § 5º, da Constituição Federal de 1988, apenas Leis Complementares da União e dos Estados estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público. Assim é totalmente inconstitucional a criação, modificação ou a extinção de órgãos de execução do Ministério Público por meio de Resoluções, por explícita ofensa ao princípio da promotoria natural, sendo cabível a impetração de Habeas Corpus, Mandado de Segurança e quaisquer medidas legalmente previstas para cassar o ato inconstitucional e cessar os efeitos que possa ter provocado[7].
3 CONCLUSÃO
Concluímos que no Estado Democrático de Direito os agentes públicos – no qual se incluem os membros do Ministério Público – devem obedecer aos princípios da legalidade e da impessoalidade. Além disto, em virtude dos arts. 127, e § 1º; 128, § 5º; 5º, LIV e LIII, da Constituição Federal; e dos arts. 3º e 252 ao 258 do Código de Processo Penal é consagrado em nosso ordenamento o princípio-garantia da promotoria natural, o que é reconhecido pela melhor doutrina e jurisprudência.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil anotada. São Paulo: Saraiva, 2001.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 11 jun. 2013.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios do Direito Processual Penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 30, n. 30, 1998, p. 163-198.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: 1974.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Comentários ao Código de Processo penal e sua Jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2012.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993.
[1] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: 1974, p. 368.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 70.
[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: 1974, p. 370.
[4] “Art. 258. Os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, e a eles se estendem, no que Ihes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes.”
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 545.
[6] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 36.
[7] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 40-42.
Advogado criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Marcus Vinícius Pimenta. A promotoria natural Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 ago 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36417/a-promotoria-natural. Acesso em: 23 dez 2024.
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