A aprovação da Emenda Constitucional nº 72/2013 (EC nº 72/2013) inflamou a discussão acerca dos direitos trabalhistas dos empregados domésticos, principalmente no que pese ao aumento dos encargos aos empregadores domésticos. Em defesa das alterações logradas a partir da EC nº 72/2013, ponderar-se-á sobre os fundamentos fático-jurídicos à diferenciação de tratamento jurídico entre a categoria das “diaristas” e dos domésticos, assim como se ponderará acerca dos fundamentos fático-jurídicos ao aumento qualitativo e quantitativo de direitos ao empregado doméstico, de forma a elevar o patrimônio jurídico dessa categoria ao mesmo patamar do rol de direitos dos empregados urbanos e rurais.
De forma a melhor compreender os fundamentos que levaram à aprovação da EC nº 72/2013, tratar-se do Princípio da Igualdade, o qual é aplicável em diversos âmbitos: entre indivíduos, em face do Legislador[1], do Executivo (ou administrador) e do Judiciário[2]. Platão entendia este princípio como “ideia de igualdade absoluta. Todos são iguais e devem ser tratados igualmente, independentemente da situação”.[3] Diversamente, Aristóteles defendeu o conceito de igualdade proporcional à desigualdade do indivíduo, ou seja, se desigual, deve ser tratado desigualmente “na medida proporcional à sua desigualdade”.[4]
Coadunando com o ideal de igualdade proporcional, Ihering entende este princípio:
[...] não como essa igualdade interior, absoluta, matemática, que dá a um a mesma parte que a outro, mas uma igualdade exterior, relativa, geométrica, mediando a parte de cada um segundo sua entrada. Não se detinham na ideia da igualdade abstrata dos indivíduos isolados, mas se preocupavam... da ideia da equivalência aplicada à sociedade.[5]
No que tange à igualdade, Rousseau defendeu o ideal de igualdade material, real, quanto às possibilidades concretas do cotidiano:
[...] não se entenda por essa palavra que os graus de riqueza e poder sejam absolutamente 0s mesmos; mas que, a respeito da potência, esteja ela salva de toda a violência e nunca a exerça, senão em virtude do posto e das leis; e quanto à riqueza, entendo que nenhum cidadão seja assaz opulento que possa comprar outro, e nenhum tão pobre que seja constrangido a vender-se [...].[6]
A Constituição Federal de 1988, Título II, Capítulo I, artigo 5º, primeira parte do caput, declara que “Todos são iguais perante a lei”.[7] A determinação “perante a lei” é vista sob duas perspectivas, segundo Celso Antônio Bandeira de Melo[8] e Robert Alexy[9]. Sob uma perspectiva, o comando é destinado ao legislador, devendo o conteúdo da lei, quando de sua edição, estar em harmonia com a isonomia, dispensando “tratamento equânime às pessoas”.[10] Sob outra, a determinação põe em mesmo nível todos os indivíduos frente à lei, quando do cumprimento desta pelo Poder Executivo (através da aplicação de sanção administrativa, ou da regulamentação da lei pela edição de atos normativos, decretos, instruções normativas, portarias, por exemplo), ou quando de sua aplicação pelo Poder Judiciário (julgamento de litígios).
De igual maneira, Tavares ilustra a extensão da aplicabilidade do Princípio da Igualdade ao expor:
A igualdade aplica-se, sobretudo, em face da atuação do Executivo, mas não apenas deste. Impõe-se, igualmente, como comando dirigido ao Legislativo e, também, ao próprio Poder Judiciário, no desenrolar do processo judicial (por ocasião do tratamento a ser dispensado a cada uma das partes).[11]
Expandindo esse pensamento, Moraes aponta a função limitadora do Princípio da Igualdade aplicada a três destinatários: “legislador, intérprete/autoridade pública e ao particular”.[12] Ao desenvolver a argumentação, explicita quatro destinatários: Poder Legislativo (ao editar normas), intérprete/autoridade pública (ao aplicar leis e atos normativos aos casos concretos, ou seja, no âmbito dos poderes Executivo e Judiciário) e o particular (que não poderá cometer conduta discriminatória, “sob pena de responsabilidade civil e penal”).
Faria ratifica o pensamento acerca daquele dispositivo constitucional (artigo 5º, caput, Constituição Federal), alegando que o comando é dirigido a todos os poderes: legislativo, executivo e judiciário. Legislativo, quando da edição da lei; executivo, quando do cumprimento da lei; judiciário, quando da aplicação da lei. Faria cita Pontes de Miranda quanto ao principio da isonomia: “É imperativo para a legislatura, para a administração e para a Justiça”.[13]
Faria ilustra o direcionamento a cada Poder, demonstrando que no exercício de suas funções precípuas, cada Poder aplica o Princípio da Igualdade. Quanto ao legislativo:
Aliás, o Poder Legislativo enquanto realiza, de modo normal, sua atividade, atende ao pressuposto da igualdade perante a lei. Realmente, cabe ao referido Poder a elaboração de leis. Ora, como vimos linhas acima, um dos característicos básicos da norma jurídica é o de que esta seja geral e abstrata. Estatuindo normas gerais e abstratas o Legislativo estará, ipso facto, respeitando a determinação constitucional da igualdade.[14]
Tratando-se do Poder Executivo, Faria demonstra a aplicação do Princípio da Igualdade quando da prática de atos e quando do tratamento em relação ao particular. Elucida o autor:
Em primeiro lugar, compete-lhe o rigoroso cumprimento da aludida regra. Em seu campo de atividades não pode praticar ato algum contrário ao preceito em análise. Não lhe é lícito fixar preferências ou estabelecer situações que levem a privilégios de alguns cidadãos em relação a outros.
[...]
Como dever positivo da Administração, decorrente do referido princípio, apontamos a intervenção do Estado na ordem privada, no sentido de impedir que a desigualdade reine em virtude de atos de particulares.[15]
Em sede de Poder Judiciário, há a concretização do Princípio da Igualdade tanto na possibilidade de acesso à justiça, quanto na atividade do juiz. Faria é categórico:
A aplicação do Princípio da Igualdade ao Poder Judiciário implica na igualdade perante a Justiça, com a extinção de todo e qualquer foro privilegiado ou de exceção, bem assim com a instituição do preceito do chamado ‘juiz legal’, ‘juiz natural’ ou, em nossos dias ‘juiz competente’.
[...]
Além da correção de eventuais atentados à isonomia, por meio de quaisquer recursos acima assinalados e aplicáveis à espécie, cumpre lembrar a possibilidade de se interpor (em casos para os quais inexiste possiblidade da adoção dos mesmos recursos) o remédio heroico do mandado de segurança [...].[16]
A máxima de Aristóteles[17] na qual a igualdade consiste em tratar igualmente os em igual condição e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade, é a verificada no espírito de nossa Constituição atual: a igualdade proporcional. Em harmonia com esse pensamento, Tavares explana:
[...] os tratamentos diferenciados podem estar em plena consonância com a Constituição. É que a igualdade implica em tratamento desigual das situações de vida desiguais, na medida de sua desigualação. Aliás, trata-se de exigência contida no próprio princípio de Justiça.[18]
Enfatizando a igualdade proporcional e o cabimento de discriminações em determinados casos, Moraes argumenta:
Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito [...].[19]
Entretanto, o grande questionamento recai não sobre a necessidade da igualdade enquanto direito, nem sobre a quem o comando de tratar igualmente se dirige, mas sim, em quem são os iguais e os desiguais para da maneira correta serem tratados – igualmente ou desigualmente. É necessário atentar para o limite do tratamento desigual, evitando praticar uma inconstitucionalidade.
Indaga-se “quais as discriminações juridicamente toleráveis”.[20] Bandeira de Mello[21], Tavares[22] e Moraes[23] ratificam que a discriminação intolerável é aquela fora da razoabilidade, fortuita, arbitrária, injustificada, abusiva, de pouco valor ao bem público, sem correlação entre motivo do discrímen e discriminação.
Segundo Moraes, a desigualdade na lei ocorre “quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas”.[24] Bandeira de Melo expõe três questões ao reconhecimento de diferenciações que violam a isonomia: o critério, justificativa e a correlação entre um e outro.[25] Exige a ocorrência concomitante e a correlação lógica abstrata e a concreta entre critério e diferenciação, no que explana o autor:
a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;
b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;
c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.[26]
No mesmo sentido, Tavares demonstra:
É preciso que haja uma correlação lógica entre: 1) o traço diferencial eleito como ponto de apoio da desigualação que se pretende instaurar; e 2) a desigualdade de tratamento sugerida em função do traço ou característica adotada.
A desigualdade tem de estar em relação direita com a diferença observada. Não se pode tratar diversamente em função de qualquer diferença observada. Do contrário, todos os tratamentos discriminatórios estariam, em última instância, legitimados, já que claro está que todos se diferenciam uns dos outros. Além disso, exige-se que essa relação de pertinência a ser assim estabelecida não viole algum preceito constitucional.[27]
Ressalva Bandeira de Melo que o critério de diferenciação escolhido não pode ser específico a ponto de determinar definitivamente o sujeito a quem a norma se refere, e que o diferencial deve estar inserto na própria coisa, situação ou pessoa sujeito da norma. Ainda segundo o autor, a primeira ressalva evita perseguições e favoritismos; e a segunda impede que regimes diferentes sejam aplicados a pessoas por motivo que não exista nelas mesmas, que lhes seja alheio. Portanto, fator neutro é inidôneo de ser tomado como critério discriminatório, a exemplo de “determinado local” por si só, sem outra circunstancia envolvendo esse local, seria inadequado. De igual maneira, o tempo não pode ser tomado como critério, cabendo como fator as circunstancia e situações ocorridas em determinado tempo, ou a reiteração da atividade laboral.[28]
Para ilustrar, têm-se o critério de reiteração da atividade laboral podendo ser tomado como discriminador, não devido ao tempo de repetição da tarefa, mas a reiteração da situação. A partir da repetição do exercício funcional resta caracterizado ou não determinado empregado: é este o fator à diferenciação de tratamento entre doméstico e “diarista”.
Tavares elucida acerca da possibilidade de discriminação pela Constituição:
O elemento discriminador erigido como causa da desequiparação deve estar predisposto ao alcance de uma finalidade. Esta, por sua vez, deve corresponder exatamente a algum objetivo encampado pelo Direito, seja expressa, seja implicitamente.
Mister se faz, ainda, que haja uma relação de proporcionalidade entre os meios e métodos empregados pelo legislador, para alcançar aquela finalidade (que, como se disse, deve encontrar eco no seio do próprio ordenamento), e essa finalidade perseguida. [...].[29]
Concretizando o exposto ao aplicá-lo ao empregado doméstico, temos que a diferenciação efetuada entre este e os empregados regidos pela CLT em sede constitucional e infraconstitucional baseava-se em circunstâncias peculiares ao doméstico, tais como: a prestação de serviço ocorrer em ambiente protegido pela Constituição como inviolável, em tese, impedindo uma fiscalização por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, fosse para averiguar as condições de trabalho e a quantidade de horas trabalhadas, por exemplo; a relação entre empregado doméstico e empregador é uma relação de confiança, não podendo ser exigidos rigores (como FGTS ou valor diferenciado por hora extraordinária trabalhada), pois estes abalariam a relação de confiança.
Contudo, entre a diferenciação de tratamento jurídico e as circunstâncias elegidas como plausíveis ao discrímen não havia total correlação lógica abstrata e concreta, posto que há meios de sopesar os direitos do doméstico e o direito de seu empregador à inviolabilidade de domicílio, assim como há meios de estender direitos aos domésticos sem que isso signifique rigor e quebra da relação de confiança entre empregado e empregador. Adequando-se o direito à realidade da relação empregatícia doméstica e ao ambiente de prestação de serviços, não mais se sustentam as circunstâncias específicas como fator suficiente para fundamentar a discriminação, cessando a correlação entre fator de discrímen e discriminação.
Concluindo, vê-se que não mais subsistindo a correlação, a diferenciação efetuada deixa de ser juridicamente tolerável e faz-se necessária a eliminação do discrímen, ocorrida com o advento da Emenda constitucional nº 72/2013. Todavia, ressalte-se ser imprescindível a adequação da norma às circunstâncias especiais nas quais o serviço doméstico é prestado. Sem a devida adequação, não haverá ponderação entre os direitos do doméstico e os do empregador, mas sim eliminação de um em função do outro, conjuntura desarmônica à ordem constitucional. É imperioso evadir-se de fatores tais que desequilibrem os direitos dos empregados e dos empregadores domésticos, buscando sempre a concretização do Princípio Constitucional de Igualdade.
Referências
1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 1993; FARIA, Anacleto de Oliveira. Do princípio da igualdade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais/Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
2 FARIA, Anacleto de Oliveira. Do princípio da igualdade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais/Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
3 PLATÃO. A república. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2000.
4 ARISTÓTELES. Política. Tradução Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2007.
5 IHERING, A. Evolução do direito. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1953 apud FARIA, op. cit., p. 6.
6 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 55 e 56.
7 BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 1 mar. 2013.
8 MELLO, Eficácia das normas constitucionais de direitos sociais. São Paulo: Malheiros, 2010.
9 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. In: THEORIE der griindrechte. Tradução Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986. p. 384.
10 MELLO, Eficácia das normas constitucionais de direitos sociais. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 9.
11 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 595.
12 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28. ed., rev. e atual. até a EC nº 68/11 e Súmula Vinculante 31. São Paulo: Atlas, 2012. p. 41.
13 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cahen Editora, 1947 apud FARIA, op. cit., p. 85.
14 FARIA, op. cit., p. 86.
15 Ibid., p. 99
16 Ibid., p. 105 e 112.
17 ARISTÓTELES, op. cit.
18 TAVARES, op. cit., p. 595.
19 MORAES, op. cit., p. 40.
20 MELLO, 2010.
21 Ibid.
22 TAVARES, op. cit.
23 MORAES, op. cit.
24 Ibid., p. 40.
25 MELLO, 2010
26 Ibid., p. 21.
27 TAVARES, op. cit., p. 597.
28 MELLO, 2010.
29 TAVARES, op. cit., 595.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Clara Maria Carneiro. O Princípio da Igualdade e a defesa da aproximação normativo-jurídica entre os empregados doméstico e urbano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 ago 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36431/o-principio-da-igualdade-e-a-defesa-da-aproximacao-normativo-juridica-entre-os-empregados-domestico-e-urbano. Acesso em: 23 dez 2024.
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