1. Introdução
Discute-se, atualmente, sobre a constitucionalidade do uso das “diretivas antecipadas de vontade”, prevista na Resolução 1995/2012 do CFM (Conselho Federal de Medicina). A possibilidade do paciente, ainda capaz de manifestar sua vontade, deixar por escrito (ou mesmo oralmente) que não deseja, num futuro certo e próximo, que sejam utilizados equipamentos que prolonguem seu estado crítico. O Ministério Público Federal, no uso de suas atribuições, ajuizou ação civil pública contra o ato do Conselho.
2. Diferença entre eutanásia, ortotanásia e distanásia
Eutanásia é a morte conferida por alguém a outrem que esteja em situação de sofrimento, doença incurável ou em estado terminal; uma morte piedosa. Não há, no ordenamento jurídico, qualquer previsão legal que permita a eutanásia, razão pela qual o agente responderá por homicídio, ainda que privilegiado (art.121, parágrafo 1º do Código Penal) ou auxílio ao suicídio (art.122, CP).
Ortotanásia significa morte certa. Orto (certo), tanásia (morte). Nesse caso, o paciente já está em processo natural de morte, recebendo ajuda do médico para que seu estado crítico siga seu estado natural e não se prolongue a vida por meios artificiais. Exemplo: Paciente com enfisema pulmonar em estado avançado, sofre parada cardíaca e, por choques elétricos, volta a respirar, mas é certo que terá novas paradas até que venha a falecer. O médico poderia não mais utilizar o “ressuscitador”. A ortotanásia é tema do presente artigo.
Distanásia é o prolongamento artificial da vida de forma exagerada e que causa profundo sofrimento no paciente. Segundo Maria Helena Diniz, a distanásia “não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte”.[1]
3. Diretivas antecipadas de vontade e Resolução CFM nº 1995/2012
À luz do art.1º da dita Resolução:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Tem-se, pois, um conjunto de desejos , prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer ou não receber no momento em que estiver incapacitado para declarar livre e espontaneamente sua vontade.
As diretivas podem ocorrer em: 1) não querer uma reversão do quadro de morte certa (ortotanásia); 2) não querer receber transfusão de sangue (testemunha de Jeová) e 3) os órgãos sejam removidos, para fins de transplante, em caso de morte encefálica.
Defende-se o direito à manifestação de vontade do indivíduo como expressão da dignidade da pessoa humana. Quem apoia a teoria, encontra fundamento na evolução de um paternalismo médico à autonomia do paciente e na visão da dignidade da pessoa humana como autonomia, tendo o indivíduo, capacidade de autodeterminação.
A figura da ortotanásia já era regulamentada e permitida pela Resolução nº 1805/2006. Não seria uma situação de concausalidade, como na eutanásia, em que o médico contribui para o resultado morte. Na ortotanásia, não se prolongaria o estado crítico do paciente, até porque seria uma situação paliativa que prolongaria um estado de vida irreversível.
Estabelece-se o direito de escolha do paciente em não mais prorrogar seu estado crítico de sofrimento, em prol de sua dignidade.
4. A ação civil pública
O problema da Resolução, no entanto, não está em permitir ou não a ortotanásia e, aqui, não se discutirá qualquer dogma religioso, porque o presente artigo quer apenas tratar do assunto sob um olhar jurídico, científico. O problema está na insegurança que o art.2º traz:
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
O texto mostrou-se muito vago, retirou o poder da família de opor-se à vontade do paciente e permitiu, ao médico que, diante da manifestação oral do paciente em querer a ortotanásia, diante de futuro quadro crítico e certo de sua doença, possa registrar em prontuário, sem qualquer solenidade maior. Isso porque o paciente pode estar inconsciente para questionar, sua família... Não há exigência de testemunhas. O próprio médico pode errar e anotar a diretiva em prontuário de outro paciente que esteja na mesma enfermaria.
O Ministério Público Federal promoveu uma ACP, questionando os parágrafos 2º e 4º do artigo supra, além da incompetência do CFM, por estar tratando de tema que deveria ter sido regulado em lei federal (ultrapassando seu poder regulamentar).
Esclarece-se que, a intentio do Parquet Federal não está em afastar a possibilidade da ortotanásia do ordenamento, mas em questionar sobre o extravasamento do poder regulamentar da dita autarquia em tratar de um tema tao polêmico em uma Resolução, não exigência de maiores solenidades para tal manifestação de vontade (segurança jurídica) e alijamento da família na tomada de decisões importantes.
Eis um trecho da ACP nº 1.18.000.001881/2012-38:
“Com efeito, as disposições contidas na normativa aqui impugnada extravasam os lindes da disciplina ética da medicina, notadamente por transcenderem a relação médico paciente. O tema subjacente à aludida regulamentação possui repercussões familiares, sociais e nos direitos de personalidade, que escapam ao poder de normatização do réu.
Não sem razão, o ambiente democrático adequado, construído pela Constituição da República, para que sejam discutidas as “diretivas antecipadas de vontade dos pacientes” é o Congresso Nacional, consoante seu artigo 49, caput, que defere ao Poder Legislativo federal “dispor sobre todas as matérias de competência da União”, dentre as quais se incluem os direitos de personalidade – subdivisão acadêmica do direito civil (artigo 22, I), as condições para o exercício de profissões (artigo 22, XVI) e saúde, jungida à seguridade social (artigo 22, XXIII).”
5. Conclusão
O pedido de liminar da ACP restou indeferido em março do corrente ano. A Resolução ainda se encontra em vigor, nos termos em que publicada.
O presente trabalho não quis adentrar na polêmica religiosa ou discutir se a dignidade da pessoa humana deve ser vista sob o prisma da autonomia ou heteronomia, até porque, tem-se o entendimento de que a posição difere de acordo com o caso concreto e, no caso em questão, melhor seguir a doutrina de Luís Roberto Barroso, que defende a autonomia de cada um decidir o que é melhor para si (dignidade como um fim em si mesmo, na expressão kantiana).
Contudo, o MPF tem razão na ACP. A ausência de critérios mais seguros e o próprio trato da matéria em uma Resolução poderá, em vez de ajudar, trazer legitimidade a posturas odiosas de médicos que não se preocupam com o bem estar dos pacientes e família, que atuam de forma omissa ou despropositada.
6. Bibliografia
http://www.testamentovital.com.br/sistema/arquivos_legislacao/inicial%20ACP%20testamento%20vital.pdf Sítio visitado aos 16 de setembro de 2013
http://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-sangue.pdf Sítio visitado aos 16 de setembro de 2013
Procuradora Federal. Advogada. Especialista em Direito Público (UERJ). Aprovada em concursos públicos para provimento de cargos de advogado do BNDES (2013); advogado da Caixa Econômica Federal (2010); analista judiciário do TRE-RJ (2012); técnico do Ministério Público do Rio de Janeiro (2011); analista judiciário do TJRJ (2011); advogado da Companhia de Desenvolvimento de Nova Iguaçu (2010). Foi estagiária da Procuradoria Regional da República na 2ª Região (2006-2008). http://about.me/fabiana_coutinho
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTINHO, Fabiana de Oliveira. Diretivas antecipadas de vontade - A possibilidade da ortotanásia no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36669/diretivas-antecipadas-de-vontade-a-possibilidade-da-ortotanasia-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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