1. Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil prevê em seu artigo 105, inciso III, alínea “c”, a competência do Superior Tribunal de Justiça para o julgamento de recurso especial em causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
O recurso especial foi contemplado pelo Constituinte com o duplo objetivo de preservar a autoridade da lei federal e uniformizar o seu entendimento[1]. Daí falar-se que o Superior Tribunal de Justiça exerce o papel de guardião e uniformizador do direito federal infraconstitucional[2], pois detém a última palavra sobre o tema, ressalvada a competência dos Tribunais Superiores das Justiças Especiais (militar, trabalhista e eleitoral).
Evidente que a segurança jurídica deve ser tutelada por este importante instrumento, permitindo que decisões que apresentem contrariedade na jurisprudência possam ser revisadas por uma Corte Superior.
Consciente das dimensões continentais e das profundas disparidades culturais existentes em nosso país, evidente a importância de se assegurar efetividade os meios extraordinários de impugnação (recursos extraordinários lato sensu) para o fim de a unidade material da legislação federal em todo o território brasileiro, bem como a uniformidade de sua inteligência[3].
Ao longo dos anos, alguns entendimentos se consagraram em Súmulas do Superior Tribunal de Justiça sobre o recurso especial lançado com tal fundamento. Neste sentido, a Súmula n. 13 do STJ, preconiza que a divergência entre julgados do mesmo Tribunal não permite a interposição de recurso especial, sendo imprescindível que a divergência estabeleça-se entre Tribunais distintos. Tal orientação deixa claro o escopo de zelar pela aplicação da lei em todo o território nacional, superando divergências meramente locais.
Outro verbete coletado dentre as Súmulas do Superior Tribunal de Justiça é o de n. 83, que dispõe não se conhecer do recurso especial pela divergência quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida. Ora, se cabe ao STJ a última palavra sobre a aplicação e a interpretação da lei federal, não há qualquer sentido em admitir um recurso contrário à jurisprudência pacífica nesta mesma Corte.
Também é oportuno mencionar que o art. 26, parágrafo único, da Lei n. 8.038/90, em seu artigo 26, parágrafo único, exige que o recorrente faça prova da divergência mediante certidão ou indicação do número e da página do jornal oficial, ou do repertório autorizado de jurisprudência, que o houver publicado. Além desta prova da divergência, para que o recurso seja conhecido, compete ao recorrente explicitar a divergência, transcrevendo e comparando as ementas e o núcleo da fundamentação de cada acórdão, analisando os pontos onde as interpretações tencionam[4].
É o chamado “cotejo analítico”, com a escolha de um Acórdão paradigma que deverá ser comparado com a decisão recorrida, a fim de demonstrar a semelhança entre os dois casos (paradigma e objeto do recurso), bem como a divergência na aplicação e/ou interpretação do direito em relação a eles.
Tal previsão decorre de norma regimental (art. 225, §2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça), mas é a forma de o órgão julgador verificar se está presente o requisito previsto no art. 105, inciso III, alínea c, da Constituição da República Federativa do Brasil[5].
Importante a advertência feita por Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, de que, na fase de admissibilidade “não é preciso discutir o mérito do recurso, bastando o recorrente sustentar a existência dos requisitos constitucionais para o cabimento do RE ou do Resp. A efetiva violação da CF ou da lei federal é o mérito do recurso, que deverá ser analisado em outro tópico das razões recursais”[6].
Também é válido ressaltar que, como assevera Rodolfo de Camargo Mancuso, em sua obra Recurso Extraordinário e Recurso Especial, a hipótese prevista na alínea c exige apenas uma “afirmação convincente” de que tenha ocorrido divergência de entendimento entre Tribunais. Observe-se: “Explicando: para que o STF ou o STJ admitam, respectivamente, um recurso extraordinário ou um recurso especial pelas alíneas b e c, basta que o recorrente tenha demonstrado (=afirmado convincentemente) que a decisão recorrida: (...) deu à Lei Federal interpretação divergente da que lhe dera outro tribunal (recurso especial). Note-se que nessas hipóteses, no plano da admissibilidade dos recursos não é exigido ao recorrente a demonstração cabal de que são fundadas essas alegações em que se estriba o recurso; ele será conhecido na medida em que a alegação coincida com o tipo constitucional, ‘tout court’”[7].
Assim, esclarecidas tais premissas, passa-se à análise da possibilidade de cassação superveniente do acórdão eleito como paradigma, o que recomenda o acolhimento da possibilidade de conhecer do recurso especial, com base em outro paradigma.
2. Análise de caso: cassação superveniente do acórdão paradigma.
Caso curioso ocorreu no julgamento do REsp nº 1.369.872 – SP, que cuidava de um recurso especial tirado contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relativa a condenação do recorrente como incurso no crime previsto no art. 214, c.c. art. 224, a, e art. 226, I, todos do Código Penal. No Acórdão recorrido, frisou-se que a presunção de violência outrora prevista no artigo 226, do Código Penal, era de natureza absoluta, bem como que “o consentimento da vítima não tem nenhum valor”, pois “a intenção do legislador foi proteger a vítima, que não é maior de 14 anos”. Sobre esses argumentos, a Corte a quo colacionou alguns julgados que reconheciam o caráter absoluto da presunção de violência.
Entretanto, o entendimento desposado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo estava, na ocasião, em conflito com a jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça, que havia sedimentado o entendimento de que a presunção de violência nos crimes sexuais tinha natureza relativa, admitindo prova em contrário, conforme foi julgado em sede de Embargos de Divergência (EREsp n. 1.021.634/SP). Na interposição do recurso especial em tela (REsp n. 1.369.872 – SP), elegeu-se como paradigma o próprio julgado do Superior Tribunal de Justiça que pacificou o entendimento sobre o tema, em sentido oposto à decisão recorrida.
Ocorre que, posteriormente à interposição do recurso especial em tela, sobreveio julgamento de Embargos de Declaração em relação ao Acórdão paradigma, que reconheceu a intempestividade dos Embargos de Divergência (EDcl nos EREsp 1021634/SP). Tal decisão foi publicada em 04.09.2012, isto é, após a interposição do Recurso Especial ora debatido, e que se traz à colação como estudo de caso para a elaboração do presente estudo (REsp 1.369.872/SP).
Ora, evidente que a superveniência de cassação do Acórdão paradigma, por questões meramente processuais (intempestividade dos Embargos de Divergência), não pode prejudicar o conhecimento do Recurso Especial, que se baseou, na época de sua interposição, na posição que prevaleceu no julgamento da Corte Superior.
Assim, conquanto o Acórdão paradigma não mais subsista, não se pode afirmar que as razões do recurso especial estejam em conflito com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Ao contrário, esta mesma Corte já reconheceu a existência de divergência jurisprudencial quando admitiu os Embargos de Divergência. É caso de aplicação da jurisprudência remansosa no Superior Tribunal de Justiça[8] de que admite o conhecimento do recurso especial quando se está diante de dissídio notório.
Ora, não se mostra semelhante à hipótese em que após a interposição do recurso, há mudança do entendimento da Corte, ou mesmo quando o recurso contraria jurisprudência que se firmou no Superior Tribunal de Justiça. Patente a diferença no caso.
Entretanto, no julgamento do Agravo Regimental no REsp n. 1.369.872 – SP, a Corte Superior surpreendentemente desacolheu a pretensão de conhecimento do recurso, mesmo diante da situação acima retratada.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça carece de reanálise, para se apurar se, efetivamente, está o Tribunal que se intitula como “da Cidadania”, cumprindo o seu mister constitucional.
3. Considerações finais.
Julgamentos desta natureza, revelam a essência da chamada jurisprudência defensiva, isto é, “a rigidez (rectius, exagero) na análise dos requisitos de admissibilidade recursal, de modo a não conhecer dos recursos por questões formais, ainda que de menor relevo – isso de modo a “proteger” ou “defender” os tribunais (especialmente os superiores) do grande número de recursos”[9]. Como bem ressaltou José Miguel Garcia Medina, tal problema não é resolvido com a criação de entraves, pretextos, desculpas ou algo que o valha, sem apoio legal, para que recursos não sejam admitidos[10].
No caso supracitado, um fato superveniente que prejudicou (cassou) o acórdão paradigma e conduziu ao não conhecimento do recurso especial, o que não se pode admitir, sobretudo quando ainda paira evidente controvérsia jurisprudência sobre o tema, que clama pela vinda definitiva da última palavra, que só pode ser lançada por quem de Direito. Como a controvérsia alcança as duas Turmas do próprio Superior Tribunal de Justiça, somente em sede de Embargos de Divergência é que o assunto pode ser resolvido em definitivo.
Por fim, o objetivo do presente trabalho é mais uma vez sustentar o abandono do formalismo excessivo em favor de um formalismo valorativo[11], que não sobreponha requisitos de admissibilidade à garantia do Acesso à Justiça[12]. Que as Cortes Superiores possam cumprir efetivamente o relevante papel que lhes fora confiado, em vez de criarem mecanismos de defesa contra o excesso de trabalho.
BIBLIOGRAFIA
DELLORE, Luiz. Novo capítulo da jurisprudência defensiva no STJ. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/dellore/2012/07/17/novo-capitulo-da-jurisprudencia-defensiva-no-stj/. Acesso em: 27.09.2013.
FARIA, Márcio Carvalho. O acesso à justiça e jurisprudência defensiva dos Tribunais Superiores. In: Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, v. 16, Belo Horizonte, p. 5-20.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no processo penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2005.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional. v. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso Extraordinário e Recurso Especial. 10 Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MEDINA, José Miguel Garcia. Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma utopia? In: Consultor Jurídico. Disponível em: www.conjur.com.br. Acesso em 25.09.2013.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. 10ª ed. São Paulo: RT, 2007.
______. Constituição Federal Comentada: e legislação constitucional. 2ª ed. São Paulo: RT, 2009.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[1] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada: e legislação constitucional. 2ª ed. São Paulo: RT, 2009, p. 540.
[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no processo penal. 4ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 269.
[3] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos... p. 283.
[4] LOPES JR., Aury. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional. v. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 580-581.
[5] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. 10ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 927.
[6] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. 10ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 927.
[7] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso Extraordinário e Recurso Especial. 10 Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
[8] Vide STJ, 2ª T., REsp 313279-DF, Rel. Min. Franciulli Neto, v.u., j. 28.8.2001, DJU 21.11.2001, p. 145).
[9] DELLORE, Luiz. Novo capítulo da jurisprudência defensiva no STJ. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/dellore/2012/07/17/novo-capitulo-da-jurisprudencia-defensiva-no-stj/. Acesso em: 27.09.2013.
[10] MEDINA, José Miguel Garcia. Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma utopia? In: Consultor Jurídico. Disponível em: www.conjur.com.br. Acesso em 25.09.2013.
[11] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, passim.
[12] FARIA, Márcio Carvalho. O acesso à justiça e jurisprudência defensiva dos Tribunais Superiores. In: Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, v. 16. Belo Horizonte, p. 5-20.
Defensor Público do Estado de São Paulo; mestre em direito processual pela Universidade de São Paulo (USP); especialista em direito civil e direito processual civil pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente; professor do curso de Direito da Univem em Marília - SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEONARDO, César Augusto Luiz. Recurso Especial com fundamento em divergência jurisprudencial: possibilidade de alteração do paradigma em razão de fato superveniente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 set 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36748/recurso-especial-com-fundamento-em-divergencia-jurisprudencial-possibilidade-de-alteracao-do-paradigma-em-razao-de-fato-superveniente. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.