1. Introdução
Na jurisprudência, há muito se discute sobre a compatibilidade (ou não) entre a figura do furto qualificado (art. 155, §4º, do Código Penal), com a aplicação do privilégio (art. 155, §2º, do mesmo códex).
A divergência jurisprudencial vem de longa data, sendo possível coletar na jurisprudência diversas decisões que negam a aplicação do privilégio ao caso em razão de se tratar de furto qualificado.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de incidente de recursos repetitivos (conforme rito do 543-C, do Código de Processo Civil), sedimentou o entendimento da compatibilidade do privilégio com as qualificadoras de natureza objetiva[1].
É oportuna a transcrição da Ementa do julgado:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PENAL E PROCESSO PENAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. DISSÍDIO NOTÓRIO. INCIDÊNCIA DO PRIVILÉGIO NO FURTO QUALIFICADO. POSSIBILIDADE. CIRCUNSTÂNCIAS DE NATUREZA OBJETIVA. ACÓRDÃO ESTADUAL EM
DESCONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DA TERCEIRA SEÇÃO. CONFIRMAÇÃO DO ENTENDIMENTO PRECONIZADO NO ERESP 842.425/RS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Consoante entendimento pacificado pelo julgamento do EREsp. 842.425/RS, de que relator o eminente Ministro Og Fernandes, afigura-se absolutamente "possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do Código Penal nos casos de furto qualificado (CP, art. 155, § 4º)", máxime se presente qualificadora de ordem objetiva, a primariedade do réu e, também, o pequeno valor da res furtiva .
2. Na hipótese, estando reconhecido pela instância ordinária que os bens eram de pequeno valor e que o réu não era reincidente, cabível a aplicação da posição firmada pela Terceira Seção.
3. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008.
Assim, pela atual jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça é plenamente possível a aplicação do privilégio ao furto qualificado (desde que se trate de qualificadora de caráter objetiva), sendo o réu primário e a coisa de valor inferior ao do salário mínimo vigente.
DO ALCANÇE DO PRIVILÉGIO NO DELITO DE FURTO.
O art. 155, § 2º do Código Penal, assim determina:
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
Pela leitura do dispositivo, fácil se perceber que o reconhecimento do furto privilegiado tem como condicionante a presença de dois requisitos: a primariedade do agente e o pequeno valor da coisa subtraída. Referido dispositivo legal não exige qualquer outro requisito para a benesse; tampouco faz qualquer referência ao caput do dispositivo.
Interpretando os requisitos, na precisa lição de DELMANTO, a jurisprudência admite dois critérios principais na aferição do “pequeno valor”: referente prejuízo efetivamente sofrido pelo ofendido e relativo ao valor da coisa e não ao prejuízo, ambos geralmente considerados pequenos quando o valor for igual ou inferior ao salário mínimo, sendo possível a sua superação em casos especiais[2].
É certo que a jurisprudência das Cortes Superiores têm admitido o valor do salário mínimo como referência, ressaltando-se que não se trata de um teto máximo e intransponível. Neste sentido, STJ, RT 787/578; STF, RT 579/433.
Sobre a primariedade e os bons antecedentes, como se sabe, só podem ser infirmados por decisões transitadas em julgado anteriormente à data dos fatos, não sendo possível levar em consideração processos em andamento ou mesmo em grau recursal, muito menos absolvições, arquivamentos e a existência de inquéritos.
Ora, o atual ordenamento jurídico constitucional (art. 5º, LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), repetindo princípio que já estava previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, assegura o princípio da presunção de inocência (não culpabilidade), de modo que não se pode permitir que meras passagens policiais e/ou processos em andamento, sejam sopesadas como antecedentes. Não é outro o entendimento pretoriano, reiterado em diversas ocasiões:
“O ato judicial de fixação da pena não poderá emprestar relevo jurídico-legal a circunstância que meramente evidencie haver sido, o réu, submetido a procedimento penal persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo trânsito em julgado, qualquer condenação de índole penal.” (STF – HC 68.465-3 – Rel. Celso de Mello).
“Na individualização da pena, o juiz deve atender aos elementos essenciais e circunstanciais do delito e aos outros pormenores que projetam a culpabilidade (censurabilidade). A ilação deve apoiar-se em fato concreto, demonstrando quanto à existência e suas conseqüências. Impossível raciocinar com meras conjecturas. A simples instauração de processo criminal ou de inquérito policial é insuficiente, impróprio mesmo, para recrudescer a pena. Um e outro são as hipóteses de trabalho, cuja conclusão poderá demonstrar inexistência do fato, negativa de autoria ou excludente de ilicitude. Afronta, sem dúvida o princípio da presunção de inocência (Const. Art. 5º, LVII)” (STJ – RHC 1772-0 – Rel. Vicente Cernicchiaro).
Destarte, se estiverem presentes os requisitos do artigo 155, §2o, do Código Penal, deve ser aplicado o privilégio ao caso sub judice, com a consequente diminuição da pena ou substituição por multa.
A melhor e mais atualizada doutrina penal tem asseverado, de forma praticamente uníssona, que a lei penal, ao fixar que determinado benefício “pode” ser concedido ao réu pelo juiz, isso quer significar, na realidade, que, reunindo, o réu, condições para ser beneficiado ou ocorrendo a hipótese factual que autoriza a concessão, o juiz é obrigado a tomar a providência legal mais benéfica. A despeito do verbo “pode”, trata-se de direito público subjetivo do acusado que, satisfazendo tais requisitos, tem assegurada a aplicação obrigatória deste.
Ora, o art. 155, § 2º do Código Penal constitui um privilégio, que obriga o juiz, na dosimetria da sanção, substituir a pena de reclusão pela de detenção; diminuí-la de um a dois terços, ou, aplicar somente a pena de multa. A providência é claramente benéfica ao réu não podendo ser ignorada, sob pena de julgamento “contra legem”.
Embora discutível o uso do privilégio às figuras qualificadas do crime de furto, inexiste fundamento lógico e jurídico que explique essa impossibilidade.
O embasamento utilizado para justificar a inaplicabilidade do dispositivo recai fundamentalmente no argumento de que o furto qualificado merece repúdio mais severo pelas circunstâncias da prática do crime, consideradas de maior gravidade, e, principalmente pela posição topográfica do parágrafo no artigo, que se encontra localizado antes das qualificadoras.
Nestes termos, há manifesta ilegalidade ao atribuir, em prejuízo do réu, condições não expressamente previstas na norma penal para concessão do privilégio.
É cediço que no nosso ordenamento jurídico vige o princípio da reserva legal, sendo imprescindível que a lei defina expressamente as regras propensas a punir, restringir direitos e excluir a aplicação de benesses. Não caberia ao julgador, nestes casos, interpretar restritivamente o preceito em desfavor do recorrente. Neste prisma:
“Furto privilegiado. Compatibilidade. É admissível, no furto qualificado (CP, art. 155, § 4º), a incidência do privilégio legal que autoriza a substituição da pena restritiva de liberdade por pena pecuniária, desde que presentes os pressupostos inscritos no art.155, § 2º, do CP. A circunstância de situar-se o preceito benigno em parágrafo anterior ao que define o furto qualificado não afasta o favor legal dessa espécie delituosa” (STJ - Resp. 114.131-RS - 6ª T. - Rel. Min. Vicente Leal - DJU 16.6.97 - RJ 238 - ago/97 - Jurisprudência criminal, p. 139).
Conforme já se afirmou alhures, o dispositivo legal não exige expressamente que se trate de furto simples para a incidência do privilégio: basta que se façam presentes os requisitos.
O argumento topográfico é falacioso e viola frontalmente a função que o privilégio traz para a individualização da pena, bem como as diretrizes de política criminal; ignora, ainda, o entendimento praticamente pacífico da doutrina e o sistema de garantias do direito penal.
Oportuna a transcrição de ementa coletada da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em julgado de inquestionável clareza, no qual elucida-se o tema, conforme segue:
RESP - PENAL - FURTO - FURTO DE PEQUENO VALOR E FURTO QUALIFICADO - O crime de furto (CP, art. 155) é disciplinado organicamente. O tipo fundamental de crime coordenado com os tipos derivados. Harmonizam-se. Não há contradição. As normas intercomunicam-se. Não impedem, em conseqüência, o - furto qualificado (art. 155, § 4º) - compor-se com a causa especial de substituição, ou redução de pena (art. 155, § 2º). O tratamento normativo traduz a característica jurídica do fato - infração penal. Em evidenciando complexidade (qualificação e substituição, ou redução da pena), evidente, têm que ser considerados. Caso contrário, a pena deixará de projetar a expressão dada pelo Direito. Correto, portanto, o furto qualificado ser também de pequeno valor. (REsp 187141 / SP, Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, DJ 01.07.1999 p. 214).
Conforme se vê, não há óbice quanto à aplicação do conteúdo do § 2o também ao § 4o, todos do artigo 155, do Código Penal. Aliás, a tese que defende a incompatibilidade da qualificadora com o privilégio nunca enfrentou o argumento de que, se são incompatíveis as figuras, deve prevalecer a mais benéfica, tudo em conformidade com o princípio do favor rei.
Ora, se inviável a aplicação do privilégio para o delito qualificado, estando presentes os requisitos, deve-se aplicar a norma mais benéfica ao réu!
Todavia, a conclusão a que se chegou na jurisprudência da Corte Superior, é que o privilégio é, sim, compatível com as qualificadoras, pois não obstam os requisitos do dispositivo legal.
E o entendimento jurisprudencial caminha a pari passu com as lições de Alberto Silva Franco, cuja transcrição se mostra oportuna:
Embora a figura privilegiada venha disposta no art. 155, § 2o, antes, portanto, do furto qualificado, é possível sua compatibilidade com esse crime, devendo tal critério nortear o juiz também na individualização da pena mais justa e adequada à situação e ao comportamento do agente no furto qualificado. Isso se justifica porque, a par de não existir vedação legal, não se pode perder de vista que o pequeno valor da coisa não se liga, necessariamente, ao furto simples, mas tipo penal de furto. Nesse sentido: “[...] como a presente faculdade legal é mais um instrumental de que disporá o magistrado para melhor individualizar a pena, tem-se decidido pela sua aplicação mesmo em casos de furto qualificado. Satisfeitos os requisitos da primariedade e do pequeno valor, o benefício é automático” (Paulo José da Costa Junior, Curso... cit., p. 77)[3].
Rogério Greco preleciona ainda que é cabível a possibilidade de aplicação da redução de pena constante do §2º do art. 155 do Código Penal às modalidades qualificadas, em observância a questões de política criminal, independentemente da situação topográfica dos parágrafos que preveem as qualificadoras e o privilégio[4].
Superado o silogismo costumeiramente empregado pela jurisprudência, é forçoso se reconhecer que o tema não é pacífico. Mas não se pode ignorar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já vinha, de há muito, apontando no sentido de admitir a viabilidade da figura do furto privilegiado-qualificado. Neste sentido:
PENAL. FURTO QUALIFICADO. PRIVILEGIO. 1 - E COMPATIVEL A INCIDENCIA DO PRIVILEGIO LEGAL AUTORIZATIVO DE SUBSTITUIÇÃO OU REDUÇÃO DE PENA (PRIVILEGIUM) NO FURTO
QUALIFICADO DE PEQUENO VALOR. 2. EMBARGOS DE DIVERGENCIA CONHECIDOS E REJEITADOS. (STJ, EREsp 67458 / SP, 3ª Seção, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca; Rel. para o Acórdão Min. Fernando Gonçalves; DJ 18.08.1997, p. 37780).
PENAL. FURTO QUALIFICADO. FURTO PRIVILEGIADO. COMPATIBILIDADE. - É admissível, no furto qualificado (CP, art. 155, § 4º), a incidência do privilégio legal que autoriza a substituição da pena restritiva de liberdade por pena pecuniária, desde que presentes os pressupostos inscritos no art. 155, § 2º, do Estatuto Punitivo. - A circunstância de situar-se o preceito benigno em parágrafo anterior ao que define o furto qualificado não afasta o favor legal dessa espécie delituosa.- Recurso especial conhecido e desprovido. (STJ, REsp 237918 / SP, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, DJ 04.08.2003, p. 445).
Em idêntico sentido: STJ, REsp 292438, Rel. Min. Vicente Leal, DJ 06.05.2002, p. 334; STJ, REsp 66885, Ministro VICENTE LEAL, DJ 29.11.1999 p. 210. Enfim, inúmeros são os precedentes neste sentido, além dos que já foram mencionados alhures e daqueles que se seguirão.
Mas, conforme já foi dito, embora a doutrina mais moderna se incline pela compatibilidade do furto qualificado com o privilegiado, o mesmo Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em inúmeros os julgados, negando a coexistência da qualificadora com o benefício do §2o, do artigo 155, do Código Penal.
Diante da divergência então instaurada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em 1997, instada a se manifestar sobre o tema, a 3a Seção afirmou que:
PENAL. FURTO QUALIFICADO. PRIVILEGIO. 1 - E COMPATIVEL A INCIDENCIA DO PRIVILEGIO LEGAL AUTORIZATIVO DE SUBSTITUIÇÃO OU REDUÇÃO DE PENA (PRIVILEGIUM) NO FURTO QUALIFICADO DE PEQUENO VALOR. 2. EMBARGOS DE DIVERGENCIA CONHECIDOS E REJEITADOS. (STJ, 3a Seção, EREsp 67458 / SP, Min. José Arnaldo da Fonseca, Rel. para Acórdão Min. Fernando Gonçalves, DJ 18.08.1997, p. 37780).
Diversos são os argumentos suscitado em favor da possibilidade do furto qualificado-privilegiado. A jurisprudência chegou, inclusive, a afirmar que seria ilógico impedir a sua aplicação ao furto qualificado, se a lei penal, quanto à apropriação indébita qualificada, manda aplicar o benefício do §2o do art. 155 do CP (TJSJ, RT 762/694)[5].
Aliás, importante se destacar este último fundamento, que também remete aos princípios constitucionais, em especial, o princípio da isonomia.
Ora, o artigo 170, do Código Penal, dispõe que: “nos crimes previstos neste Capítulo, aplica-se o disposto no art. 155, § 2o.”, sem fazer qualquer distinção quanto a figura simples ou qualificada (ou com causa de aumento de pena). Desta feita, como é sabido, a apropriação indébita é delito muito semelhante ao furto, e, por vezes até difícil precisar qual o tipo penal adequado. A similitude é tal que a pena cominada é idêntica.
Sem maiores questionamentos, aplica-se o privilégio à apropriação indébita, ainda que presente causa de aumento de pena prevista no §2o, do artigo 168, do Código Penal.
Assim, condutas semelhantes, com penas cominadas de maneira idêntica, cujo desvalor da conduta e do resultado não diferem, e, ainda, que atingem o mesmo bem jurídico (patrimônio), recebem da jurisprudência tratamento diferenciado, o que viola frontalmente o princípio da isonomia! Neste sentido também já decidira a Corte Superior[6].
Por fim, e apenas a título de argumentação, importante destacar que, no que tange ao delito de homicídio (art. 121, do Código Penal), cujo privilégio é previsto no §1o, enquanto as qualificadoras encontram-se no parágrafo subsequente (§2o), não se questiona a topografia do tipo penal, mas apenas a compatibilidade entre o privilégio (que é subjetivo), e as qualificadoras (que podem ser subjetivas ou objetivas), sendo pacífica a aplicação do privilégio à forma qualificada quando se trate de qualificadora objetiva. Doutrina e jurisprudência maciçamente dominantes admitem o concurso de privilégio com a qualificadora para o homicídio, crime indiscutivelmente mais grave.
Não há qualquer fundamento que justifique aplicação distinta a tais situações similares.
Repise-se que não há qualquer incompatibilidade entre os requisitos para a concessão do privilégio (pequeno valor da coisa e agente primário) e as qualificadoras previstas no § 4o, do art. 155, do Código Penal, razão pela qual pouco importa a posição que o Legislador organizou os parágrafos do tipo penal.
No mesmo sentido, preleciona o eminente penalista Rogério Greco:
Quando analisamos a causa especial de aumento de pena relativa ao repouso noturno, concluímos que ela não se aplicava às modalidades qualificadas em razão da situação topográfica, ou seja, pelo fato de se encontrar anteriormente às qualificadas, somente poderia ser aplicada ao caput do art. 155 do Código Penal, de acordo com as regras de hermenêutica. Agora, temos outro parágrafo que também antecede a previsão das modalidades qualificadas. Entretanto, ao contrário do repouso noturno, o §2o, do art. 155 do Código Penal beneficia o agente. Dessa forma, pergunta-se: Poderá ter aplicação às modalidades qualificadas? A resposta, aqui, por mais paradoxal que possa parecer, só pode ser positiva. Isso porque, ao contrário do raciocínio anterior (furto praticado durante o repouso noturno), a aplicação do mencionado §2o beneficia o agente, razão pela qual, por questões de boa política criminal, faz-se mister a sua aplicação. Dessa forma, é possível o raciocínio, por exemplo, do agente, primário que subtraía coisa de pequeno valor, rompendo um obstáculo. Deverá, portanto, ser responsabilizado pelo furto qualificado pelo rompimento de obstáculo, aplicando-se-lhe, ainda, uma das conseqüências elencadas no §2o, do art. 155 do estatuto repressivo, surgindo, portanto, aquilo que se denomina de furto qualificado-privilegiado.[7]
Por derradeiro, toda a controvérsia parece agora superada, como já se salientou acima, pois o Superior Tribunal de Justiça, em agosto de 2011, no julgamento dos embargos de divergência (EREsp n. 842.425), realizado pela 3ª Seção – órgão responsável pelo julgamento dos feitos criminais – decidiu pela compatibilidade do privilégio com as qualificadoras de natureza objetiva. Recentemente, em julgamento realizado em 28.08.2012 e em sede de incidente de recursos repetitivos (conforme rito do 543-C, do Código de Processo Civil), sedimentou o entendimento da compatibilidade do privilégio com as qualificadoras de natureza objetiva[8]. Segue ementa do julgado: RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PENAL E PROCESSO PENAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. DISSÍDIO NOTÓRIO. INCIDÊNCIA DO PRIVILÉGIO NO FURTO QUALIFICADO. POSSIBILIDADE. CIRCUNSTÂNCIAS DE NATUREZA OBJETIVA. ACÓRDÃO ESTADUAL EM DESCONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DA TERCEIRA SEÇÃO. CONFIRMAÇÃO DO ENTENDIMENTO PRECONIZADO NO ERESP 842.425/RS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Consoante entendimento pacificado pelo julgamento do EREsp. 842.425/RS, de que relator o eminente Ministro Og Fernandes, afigura-se absolutamente "possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do Código Penal nos casos de furto qualificado (CP, art. 155, § 4º)", máxime se presente qualificadora de ordem objetiva, a primariedade do réu e, também, o pequeno valor da res furtiva . 2. Na hipótese, estando reconhecido pela instância ordinária que os bens eram de pequeno valor e que o réu não era reincidente, cabível a aplicação da posição firmada pela Terceira Seção. 3. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008. Há de se frisar que tal julgamento servirá de diretriz para todos os julgamentos futuros do colendo STJ, permitindo o julgamento monocrático sobre o tema. CONCLUSÃO |
Embora a questão da compatibilidade do privilégio com as modalidades qualificadas de furto sempre tenha sido tormentosa na jurisprudência pátria e, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não existe nenhum fundamento apto a repelir tal aplicação, se presentes os requisitos legais para o privilégio (primariedade do agente e o pequeno valor da coisa subtraída). Ao revés, fundamentos relevantes podem ser invocados para tal aplicação, que vão desde o princípio da reserva legal, princípio da isonomia, individualização da pena e passa até mesmo por questões de política criminal. Toda a polêmica está superada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que pode aplicar tal entendimento mesmo em sede de julgamento monocrático.
BIBLIOGRAFIA
DELMANTO, Celso; et al. Código Penal Comentado. 7a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
FRANCO, Alberto Silva; et al. Código Penal e sua Interpretação: doutrina e jurisprudência. 8a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. V. 2. Niterói: Impetus, 2008
[1] Vide julgamento do incidente de recursos repetitivos com os seguintes recursos: REsp n. 1.193.194; REsp n. 1.193.554; REsp n. 1.193.558 e REsp n. 1.193.932.
[2] DELMANTO, Celso, et al. Código Penal Comentado. 7a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 459.
[3] FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua Interpretação: doutrina e jurisprudência. 8a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 785
[4] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. V. 2. Niterói: Impetus, 2008, p. 631
[5] DELMANTO, Celso. Ob. cit., p. 461.
[6] PENAL. 'FURTO QUALIFICADO. RES FURTIVA' DE PEQUENO VALOR (QUATRO CAIXAS DE SORVETES). COLOCAÇÃO TOPOLOGICA DE 'FAVOR LEGIS' EM DISPOSITIVOS RELATIVOS A FURTO SIMPLES (CP, ART. 155, PARAGRAFO 2.) NÃO TEM O CONDÃO DE AFASTAR O 'PRIVILEGIUM' EM FURTO QUALIFICADO. POSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO ANALOGICA (APROPRIAÇÃO INDEBITA), COM VISTAS A AFASTAR O RIGOR DA LEI, QUE DEVE SER INTERPRETADA DENTRO DO CONTEXTO FATICO-SOCIAL. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO, MAS IMPROVIDO. (STJ, REsp 67458 / SP, 6ª Turma, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJ 10.06.1996, p. 20400, LEXSTJ vol. 87, p. 361).
[7] GRECO, Rogério. Ob. cit., p. 23/24
[8] Vide julgamento do incidente de recursos repetitivos com os seguintes recursos: REsp n. 1.193.194; REsp n. 1.193.554; REsp n. 1.193.558 e REsp n. 1.193.932.
Defensor Público do Estado de São Paulo; mestre em direito processual pela Universidade de São Paulo (USP); especialista em direito civil e direito processual civil pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente; professor do curso de Direito da Univem em Marília - SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEONARDO, César Augusto Luiz. Furto qualificado-privilegiado: Da possibilidade de aplicação do privilégio diante de qualificadora de caráter objetivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36815/furto-qualificado-privilegiado-da-possibilidade-de-aplicacao-do-privilegio-diante-de-qualificadora-de-carater-objetivo. Acesso em: 23 dez 2024.
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