INTRODUÇÃO
Versa o presente estudo acerca da possibilidade de utilização de áreas de uso sem fins comerciais, para implementação de empreendimentos públicos de relevante interesse da União, localizados nas proximidades ou no interior de terras indígenas.
DESENVOLVIMENTO
Nesse cenário, questiona-se sobre a possibilidade de utilização dessas áreas ainda que não tenha sido editada a Lei Complementar prevista no § 6º do art. 231 da Constituição Federal, verbis:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
(...)
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.”
Verifica-se do teor do art. 231 da Constituição da República, reproduzido em parte logo acima, que o legislador constituinte olvidou grande esforço para preordenar um sistema de normas e procedimentos que pudessem efetivamente proteger os interesses dos índios. E o conseguiu. Num limite bem considerável, diga-se de passagem.
É inegável que com o advento da Carta Política, em 1988, deu-se um largo passo à frente na questão atinente aos direitos dos índios. Pode-se dizer, sem medo de errar, que constitui núcleo desses interesses a questão referente ao direito sobre as terras, por representarem estas um valor de sobrevivência física, histórica e cultural à identidade étnica dos silvícolas.
A questão, altamente relevante, esteve em pauta com o julgamento da Ação Popular (petição 3388/STF), através da qual o Supremo Tribunal Federal, em emblemático julgamento, decidiu favoravelmente sobre a demarcação contínua das áreas indígenas na reserva Raposa do Sol.
Na ocasião, os ministros da Corte Suprema decidiram que é direito originário dos índios a posse das terras que ocupam, independente da demarcação, ato meramente declaratório. Por isso, consideraram nulos todos os títulos de propriedade dos não índios que ocupavam a reserva , conforme prevê o art. 231, § 6º, da Constituição Federal.
Também relevantes foram as ressalvas apresentadas pelo Ministro Menezes Direito em seu voto vista, e adotadas pelos demais ministros, no sentido de facultar ao Estado o pleno acesso à área para, entre outras possibilidades, permitir a instalação pela União de equipamentos públicos, redes de comunicação, construção de estradas, vias de transporte e demais construções necessárias à prestação de serviços públicos.
Dos itens salvaguardados pelo voto-vista, acima citado, constam esclarecimentos específicos sobre a coexistência e conciliação que pode haver entre as terras indígenas e a ocupação de não índios, para a montagem de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, inclusive com a abertura de estradas e outras vias de comunicação.
Confira-se, a esse respeito, trecho da ementa do histórico julgado, verbis:
“14. A CONCILIAÇÃO ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas.”
(grifei)
Portanto, o que se verifica é que, desde que cumpridos os requisitos elencados pela Corte Suprema, não há óbice à atuação da Administração Pública Federal nas terras que cercam áreas indígenas, mesmo porque, nos termos do inciso I do art. 20 da Constituição da República, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são consideradas como bens da União[1].
Ademais, há que se desmistificar a falsa crença existente quanto a um suposto antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento estatal. Essa alegada contradição não é real! Em pleno século XXI, a adoção de medidas extremas que tendenciem para qualquer um dos lados é por demais temerária e desaconselhável.
Sob esse aspecto, cumpre ressaltar, porque é relevante, que, assim como a questão indígena, a garantia do desenvolvimento nacional é mandamento consagrado pela Constituição Federal, tendo sido alçada pelo legislador constituinte como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Essa, a disposição prevista no inciso II do art. 3º da Magna Carta, verbis:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(...)
II – garantir o desenvolvimento nacional.”
O que deve haver, portanto, é uma harmonização entre os dois temas, que podem, e devem, caminhar juntos, de modo a permitir a construção de uma nação tão ecologicamente equilibrada quanto economicamente desenvolvida.
Quanto à regulamentação infraconstitucional acerca do tema, o art. 20, da Lei nº 6001/73, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, prescreve que a União poderá intervir em área indígena para a realização de obras públicas que sejam de interesse do desenvolvimento nacional, in verbis:
“Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República.
1º A intervenção poderá ser decretada:
(...)
d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional;
(...)
2º A intervenção executar-se-á nas condições estipuladas no decreto e sempre por meios suasórios, dela podendo resultar, segundo a gravidade do fato, uma ou algumas das medidas seguintes:
a) contenção de hostilidades, evitando-se o emprego de força contra os índios;
b) deslocamento temporário de grupos tribais de uma para outra área;
c) remoção de grupos tribais de uma para outra área.
3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas.
4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção.
5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio.”
Percebe-se da análise do dispositivo legal acima transcrito, que a intervenção da União em terras indígenas para a realização de obras públicas deve ser precedida de expedição de Decreto pelo Presidente da República. Ainda, a execução da intervenção também deverá obedecer as condições elencadas na regulamentação presidencial.
Ao tratar sobre o tema, o E. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no julgamento proferido na Apelação Cível nº 1997.01.00.010062-9/TO, relator Desembargador Federal João Batista Moreira, publicado em 19/04/2007, elencou outras condicionantes a serem cumpridas pela Administração para as hipóteses de atuação em terras indígenas. O julgado restou ementado nos seguintes termos:
“EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERRAS INDÍGENAS. CONSTRUÇÃO DE OBRAS PÚBLICAS PELO GOVERNO DO ESTADO DO TOCANTINS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MPF. ASSISTÊNCIA DA FUNAI. INOBSERVÂNCIA DO ART. 20 DA LEI 6.001/73. PARALISAÇÃO DAS OBRAS. DESFAZIMENTO DAS PARTES JÁ EXECUTADAS. RAZOABILIDADE AUSENTE. PUBLICAÇÃO DA SENTENÇA EM JORNAIS DE GRANDE CIRCULAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL.
(...)
3. A realização de obras públicas em terras indígenas (excetuada a mera conservação das já existentes) pressupõe, entre outras, a adoção das seguintes providências: decreto do Presidente da República determinando a intervenção em área indígena para a realização de obra que interesse ao desenvolvimento nacional; utilização preferencial de meios suasórios para viabilizar a realização da obra; destinação à comunidade indígena removida (entenda-se: privada total ou parcialmente de suas terras em razão da obra) de área equivalente à perdida, inclusive quanto às condições ecológicas; ressarcimento de todos os prejuízos suportados pela comunidade indígena; assistência direta da FUNAI (art. 231, §6º, CF/88, art. 20, L. 6.001/73).
4. Afigura-se ilegítima a realização de obras públicas (construção de ponte e pavimentação asfáltica de rodovias estaduais) pelo Estado do Tocantins em terras indígenas sem que haja prévio decreto presidencial, destinação de áreas equivalentes às perdidas às comunidades indígenas afetadas, ressarcimento de todos os prejuízos suportados por essas comunidades e assistência direta da FUNAI.
5. A necessidade de EIA/RIMA se trata de matéria suscetível de apreciação apenas na hipótese de se admitir a possibilidade de realização das mencionadas obras nas terras indígenas.
6. Os prejuízos e as dificuldades que a paralisação das obras questionadas podem causar ao Governo do Estado do Tocantins e às comunidades não indígenas não autorizam desconsiderar a tutela constitucional das terras dos índios.
7. Embora seja ilegítima a construção de ponte e a pavimentação de rodovia em terra indígena sem o preenchimento dos requisitos previstos na Lei 6.001/73, impõe-se reconhecer a possibilidade de tais obras virem a ser concluídas no caso de restarem satisfeitas tais exigências.
8. Quanto ao aspecto ambiental, observadas as prescrições da legislação pertinente, tais obras poderão ser executadas, preferencialmente onde se encontram, a fim de evitar novas alterações do meio ambiente.
9. Havendo possibilidade futura de conclusão das obras questionadas, a destruição das partes já executadas não se mostra razoável.
10. Não encontra respaldo no ordenamento jurídico a condenação do Estado do Tocantins a promover a publicação de sentença com 34 páginas em jornal de circulação local e em três jornais de grande circulação nacional.
11. Apelação do MPF não provida. Apelação do Estado do Tocantins e remessa oficial parcialmente providas.”
(grifei).
Portanto, de acordo com a Carta Magna, jurisprudência e legislação infraconstitucional, poderão ser realizadas em terras indígenas obras públicas no interesse do desenvolvimento nacional, sob a liderança institucional da União, com acompanhamento da FUNAI e demais instituições que porventura tenham vínculo com a matéria.
Ressalte-se a necessidade de destinação de novas áreas às comunidades indígenas, caso estas tenham que ser removidas, bem como o ressarcimento integral dos prejuízos suportados pelos índios que sejam decorrentes dos empreendimentos realizados pelo Poder Público.
Quanto à ausência de edição da Lei Complementar mencionada no § 6º do art. 231 da Constituição Federal, creio que não interfere na conduta a ser adotada pela Administração.
Isso porque a edição da citada lei serve para regulamentar o “interesse público da União” nos casos que tenham por objeto a ocupação de terras indígenas. Interesse, este, notório e presumido nos casos de construção de estradas e rodovias, por exemplo, tendo sido, inclusive, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da Petição 3388, referente à demarcação de terras indígenas na reserva Raposa do Sol, já fartamente abordado neste opinativo.
Ademais, a inércia do Poder Legislativo na regulamentação da matéria não pode servir de obstáculo para a continuidade da expansão econômica e social que se instalou no país. A ausência de lei complementar, nesse caso, fica suprida tanto pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quanto pela expedição do decreto presidencial autorizando a intervenção da União nas terras indígenas.
CONCLUSÃO
Desse modo, entende-se que, nos termos da Constituição da República, jurisprudência e legislação infraconstitucional, poderão ser realizadas em terras indígenas obras públicas no interesse do desenvolvimento nacional, sob a liderança institucional da União, com acompanhamento da FUNAI e demais instituições que porventura tenham vínculo com a matéria.
Procurador-Chefe Nacional do DNIT. Pós-graduado em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Tiago Coutinho de. O desenvolvimento estatal compatível com as garantias indígenas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 out 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36825/o-desenvolvimento-estatal-compativel-com-as-garantias-indigenas. Acesso em: 23 dez 2024.
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