1. INTRODUÇÃO
Tema que desperta a curiosidade dos candidatos a cargos públicos diz respeito àquelas enfermidades que seriam aptas a caracterizar a deficiência, o que permitiria concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência.
De fato, a Administração Pública, o candidato portador de deficiência e aqueles não portadores, todos eles têm interesse no assunto, sendo que a discussão, corriqueiramente, aporta no Poder Judiciário, que tem que analisar a questão com toda a cautela possível, até mesmo para que as decisões judiciais não acabem gerando maior injustiça ou desigualdade no certame.
2. DESENVOLVIMENTO
O artigo 37, inciso VIII, da Constituição da República, assim dispõe:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão; (...)”.
No âmbito da administração pública federal, o art. 5º, §2º, da lei nº 8.112/90, preceitua que:
“§ 2º Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”.
Há uma infinidade de situações fáticas que ensejam controvérsia entre o concursando e a administração pública durante o concurso para provimento de cargos, especialmente quando se trata da análise da deficiência para fins de enquadramento dos candidatos nas vagas reservadas aos portadores de deficiência.
O ponto objeto de análise no presente artigo diz respeito à surdez unilateral. Em uma simples pergunta, pode-se enquadrar a surdez unilateral como deficiência apta a garantir ao candidato o direito de concorrer dentre aquelas vagas reservadas aos portadores de deficiência?
O decreto nº 3.298/99 – que regulamenta a lei nº 7.853/89, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências – preceitua, em seu art. 4º, que:
“Art. 4o. É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências”.
A jurisprudência é bastante controvertida a respeito do assunto.
Há corrente que defende a tese de que a perda definitiva e total da audição em um dos ouvidos é causa suficiente para caracterizar a deficiência, a partir de uma interpretação sistemática do art. 3º, incisos I e II, do decreto nº 3.298/99, que assim dispõem:
“Art. 3o Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;
II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e
III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida”.
Nesse sentido, há julgados do Superior Tribunal de Justiça, conforme excertos a seguir:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCURSO PÚBLICO. POSSE DE DEFICIENTE AUDITIVO UNILATERAL. POSSIBILIDADE.
1. Hipótese em que o Tribunal de origem, embora reconheça a surdez unilateral, julgou improcedente o mandamus, considerando que a impetrante não se enquadra no conceito de deficiente físico preconizado pelo art. 4º do Decreto 3.298/1999, com redação dada pelo Decreto 5.296/2004 (vigente ao tempo do edital).
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que, no concurso público, é assegurada a reserva de vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais acometidos de perda auditiva, seja ela unilateral ou bilateral.
3. Reexaminando os documentos anexos à exordial, depreende-se que, segundo o laudo médico emitido, a candidata tem malformação congênita (deficiência física) na orelha e perda auditiva no ouvido direito, o que caracteriza a certeza e a liquidez do direito ora vindicado, na espécie.
4. Agravo Regimental não provido. (AgRg no RMS 34.436/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 22/05/2012 – grifou-se).
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. RESERVA DE VAGA. POSSIBILIDADE. DILAÇÃO PROBATÓRIA. DESNECESSIDADE. SURDEZ AFERIDA POR JUNTA MÉDICA.
1. A solução da controvérsia não exige dilação probatória, pois não se discute o grau de deficiência do recorrente, que já foi aferido por junta médica, mas, sim, determinar se a surdez unilateral configura deficiência física, para fins de aplicação da legislação protetiva.
2. Nos termos da Lei nº 7.853/1989, regulamentada pelos Decretos nos 3.298/1999 e 5.296/2004, toda perda de audição, ainda que unilateral ou parcial, de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz, caracteriza deficiência auditiva.
3. O laudo médico oficial confirmou que o candidato possui "deficiência acústica unipolar" no ouvido esquerdo, o que se revela suficiente para a caracterização da deficiência, porquanto a bilateralidade da perda auditiva não é legalmente exigida nessa seara.
4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que a pessoa que apresenta surdez unilateral tem direito a vaga reservada a portadores de deficiência. A propósito: AgRg no AREsp 22.688/PE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/4/2012, DJe 2/5/2012; AgRg no RMS 34.436/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 3/5/2012, DJe 22/5/2012; AgRg no REsp 1.150.154/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/6/2011, DJe 28/6/2011; RMS 20.865/ES, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 3/8/2006, DJ 30/10/2006.
5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no RMS 24.445/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 17/10/2012 – grifou-se).
Este também tem sido o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, como se extrai da ementa a seguir colacionada:
“MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATA INSCRITA COMO PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS. ENQUADRAMENTO COMO PNE NEGADO PELA COMISSÃO CENTRAL DO CONCURSO. DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. ARTIGOS 3º E 4º DO DECRETO 3.298/1999.
A interpretação dos arts. 3º e 4º do Decreto 3.298/1999 (com a redação dada pelo Decreto 5.296/2004) em harmonia com os dispositivos da Constituição da República, mormente com os seus arts. 1º, incs. II e III, e 3º, inc. IV, os quais evidenciam que, mediante as denominadas ações afirmativas, sejam efetivadas as políticas públicas de apoio, promoção e integração dos portadores de necessidades especiais, leva à conclusão de que a deficiência auditiva unilateral é suficiente para assegurar o direito do candidato concorrer a uma das vagas destinadas aos portadores de necessidades especiais a que aludem os arts. 37, inc. VIII, da Constituição da República e 5º, § 2º, da Lei 8.112/1990, não se exigindo que a deficiência auditiva seja bilateral. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS CORRESPONDENTE AO MONTANTE DOS VENCIMENTOS RELATIVOS AO PERÍODO DA DATA DE EVENTUAL POSSE DE OUTRO CANDITADO NA VAGA RESERVADA AOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS ATÉ A DATA DA POSSE DA IMPETRANTE. ‘Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação ao período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria’ (Súmula 271 do Supremo Tribunal Federal). Outrossim, o deferimento do pedido resultaria em sentença condicional, o que é vedado pelo parágrafo único do art. 460 do CPC. Recurso Ordinário a que se dá parcial provimento.” (RR 11800-35.2011.5.21.000, Rel. Ministro João Batista Brito Pereira, DJe de 15.10.12 – grifou-se).
Contudo, outra corrente advoga a tese de que, no que tange à deficiência auditiva, somente pode ser enquadrado como deficiente aqueles com perda bilateral igual ou superior a 41 (quarenta e um) decibéis, donde se conclui que a surdez unilateral não é suficiente para caracterização da deficiência para fins de se concorrer às vagas reservadas em certames para provimento de cargos públicos.
Recentemente, o tema voltou à discussão no Superior Tribunal de Justiça, desta feita afeto à Corte Especial, que, nos autos do mandado de segurança nº 18.966/DF[1], firmou entendimento, por maioria, no sentido de que somente a surdez bilateral seria apta à caracterização da deficiência, notadamente em virtude da atual redação do decreto nº 3.298/99, cujos dispositivos relacionados encontram-se transcritos acima.
Obtemperou-se que a alteração introduzida pelo decreto nº 5.296/04 no decreto nº 3.298/99 objetivou restringir a definição da deficiência auditiva, de modo que não caberia a realização de interpretação sistemática, pelo Judiciário, para negar o cumprimento do dispositivo infralegal.
Desse modo, vê-se que a Corte Especial firmou entendimento acolhendo a segunda corrente, fazendo interpretação restritiva do dispositivo regulamentar, com o que a surdez unilateral não se caracteriza como deficiência apta a garantir aos candidatos que a detém o direito de concorrer às vagas para provimento de cargos públicos destinadas aos portadores de deficiência.
Em linha de princípio, observa-se que uma pessoa que tenha perda auditiva total unilateral, conquanto não tenha exatamente a mesma condição que aqueles com audição normal – exatamente porque desprovida da audição em um dos ouvidos –, não enfrenta grandes dificuldades no mercado de trabalho, a menos que se trate de profissão que exija extrema acuidade auditiva, não se vislumbrando razões para o enquadramento do portador de surdez unilateral como deficiente.
Com esse entendimento, ainda se objetiva evitar que interpretações ampliativas do rol estabelecido no mencionado decreto possam acarretar verdadeira violação ao princípio da igualdade, que assegura tratamento isonômico àquelas pessoas que se encontrem em situação de igualdade e tratamento desigual para aquelas pessoas que se situem em condições desiguais, na medida de suas desigualdades.
Por fim, convém trazer à baila o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme ementa a seguir:
“Agravo regimental em mandado de segurança. 2. Concurso público. Decreto 3.298/99 prevê apenas a surdez bilateral como deficiência auditiva. Candidato pretende que surdez unilateral seja reconhecida como condição apta a qualificá-lo de portador de deficiência. 3. Necessidade de dilação probatória. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão agravada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.” (STF. 2ª Turma. MS 29910 AgR/DF. Rel. Min. Gilmar Mendes. Publicado no DJe de 01/08/2011).
3. CONCLUSÃO
Ante ao exposto, vê-se que o Superior Tribunal de Justiça, por meio da Corte Especial, firmou entendimento no sentido da impossibilidade de que pessoas portadoras de surdez unilateral concorram, em concursos públicos, nas vagas destinadas aos deficientes, em razão do fato de não reconhecer que aquela enfermidade constitua deficiência tal como previsto no decreto nº 3.298/99, com as alterações advindas do decreto nº 5.296/04, não podendo o Judiciário conferir interpretação ampliativa do dispositivo constante no regulamento.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
- MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. 5. ed. Niterói: Impetus, 2010.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
Procurador Federal .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Cristiano Alves. O recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito da descaracterização da surdez unilateral como deficiência auditiva para a participação de candidatos em concursos públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/36954/o-recente-entendimento-do-superior-tribunal-de-justica-a-respeito-da-descaracterizacao-da-surdez-unilateral-como-deficiencia-auditiva-para-a-participacao-de-candidatos-em-concursos-publicos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Ursula de Souza Van-erven
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